31/01/2012

O Brasil reinventa o totalitarismo – a nova máquina policial

Estamos dentro de uma espiral de violência e repressão policial que ultrapassa a média histórica, já extremamente alta, que caracterizou sempre a história de um país elitista e discriminador.”

Bajonas Teixeira de Brito Junior*

Há muitos sintomas que hoje indicam a eclosão de uma forma peculiar de totalitarismo no Brasil. Thomas Mann, exilado durante a maior parte do tempo que durou o Terceiro Reich, definiu a Alemanha do período como o “bem que infeccionou”.  O bem, porque o alemão era tradicionalmente conhecido por seu senso de ordem, disciplina, dedicação ao trabalho e obediência às leis. O agigantamento de alguns poucos sentimentos alemães (o anti-semitismo, o nacionalismo, a necessidade de obediência e hierarquia, o revanchismo, o misticismo) levaram à catástrofe. No Brasil de hoje, ainda temos que descobrir o que está por trás dos traços totalitários que se avolumam.

Observamos esses traços se ramificarem em diversas direções: nas alterações (sempre para cima) dos contratos bilionários das empreiteiras; nas concessões inconstitucionais para as obras da Copa e outros megaeventos esportivos — que, como tem enfatizado o professor Carlos Vainer, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da UFRJ, assumem a forma de um efetivo Estado de Exceção, com as garantias constitucionais anuladas em benefício da especulação imobiliária e outros grandes interesses econômicos; o mesmo aparece nos projetos colossais, como o do Plano Nacional de Banda Larga, em que salta aos olhos o modo com que, como faca quente sobre a manteiga, os “parceiros” do governo federal infringem ou denunciam os acordos no mesmo dia em que os firmam e obtém os privilégios que Estado algum concederia.

Por fim, o que provoca estremecimento e pavor, temos as operações policiais destinadas aos pobres e aos movimentos sociais, cada vez mais aparatosas em que se pode admirar a pujança do aparelhamento da repressão: helicópteros blindados em sobrevôo rasante, enormes carros blindados, viaturas novinhas em folha, armaduras articuladas com proteção amortecedora e design futurista, semelhantes às dos soldados americanos no Iraque, veículos especiais para transporte rápido de grande quantidade de cavalos, utilização da cavalaria como técnica de cerco e perseguição, etc.

Uma atenção especial merece esse último aspecto, a força repressiva, em vista da escalada da violência policial que se cristalizou em diversos acontecimentos repulsivos nos últimos tempos. Para entender suas causas é preciso, primeiro, mostrar os fatos que se acumulam e, em seguida, buscar as raízes do presente surto de totalitarismo no país. Citamos alguns dos fatos marcantes:

1. 02 junho de 2011. Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Durante uma manifestação contra as altas tarifas dos ônibus e melhoria do transporte público, a tropa de choque local atua com grande violência contra estudantes universitários e secundaristas. O vídeo no You Tube pode ser visto aqui. E reproduzo parcialmente o pequeno, mas preciso, relato que acompanha o vídeo:

“Durante manifestação pacífica, o BME-ES (Batalhão de Missões Especiais do Espírito Santo [...] ) age com bombas, tiros de balas de borracha (muitos à queima-roupa), spray de pimenta e tapas/pontapés contra manifestantes desarmados (em sua maioria estudantes).

Detalhe 1: a tropa atira nos manifestantes antes de qualquer iniciativa de confronto por parte deles, apontando para dentro da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), ferindo gente desde o pescoço (!) até o pé, inclusive acertando pessoas que não estavam na manifestação.

Detalhe 2: A tropa age sob ordem do governador Renato Casagrande, que havia baixado nota dizendo que abria mesa para diálogo com os manifestantes, mas não atenderia a nenhuma das reivindicações (no entender da autoridade fascista, isso é abertura para diálogo).”

2. 21 de Outubro de 2011. Durante a greve de professores e estudantes da Universidade Federal de Rondônia (Unir) — contra a administração corrupta do reitor Januário Amaral, que se viu ao fim obrigado a renunciar e é hoje acusado pelo promotor do Ministério Público Estadual de Rondônia (MPRO) Pedro Abi-Eçad de ter liderado uma organização criminosa dentro da universidade — a Polícia Federal (PF) efetuou a prisão, não do reitor, mas de um professor presente nos protestos, o professor e doutor em história Valdir Aparecido de Souza. É interessante observar a perfeita calma e autocontrole do professor, característica da coragem sem arrogância, em contraste com a histeria dos policiais federais, que chegam a mostrar uma arma no momento da prisão arbitrária do docente. Parecem duas vertentes da humanidade, entre as quais não há ponte possível. O vídeo não deixa dúvidas.

3. 08 de novembro de 2011. A desocupação da USP. Um policial aponta a arma para o rosto de uma aluna. Cavalaria, tropa de choque, alarido de sirenes, explosões, bombas de gás lacrimogêneo, helicópteros voando próximos ao prédio. A moradia estudantil (CRUSP) fica sitiada por grande contingente policial. Enfim, cenas de horror e desespero. O saldo de 73 estudantes presos.

4. 09 de janeiro de 2012. Um estudante negro na USP foi tratado com extrema violência por um policial militar, levou tapas, foi arremessado contra os móveis que estavam no caminho, humilhado de forma assombrosa por um agente público em serviço. Isso foi feito, sem o menor escrúpulo e sem qualquer hesitação, diante de câmeras. Fica-se a imaginar o que acontece longe das câmeras.

5. 03 de janeiro de 2012. Longe das câmeras, acorrem as abordagens sempre cruéis e marcadas pela brutalidade. Um doutorando em Filosofia, em Barão Geraldo, Campinas, se atreveu a questionar a forma de tratamento dada por policiais aos jovens pobres e negros da localidade. Recebeu uma série de ameaças e teve que enfrentar vários constrangimentos, inclusive desfile de viaturas na sua porta. Não se intimidou e, num segundo questionamento das abordagens policiais, foi preso por “desacato”. Ele fez então, por temer represálias ainda mais graves, o relato dos fatos que foi publicado no site do Yahoo, na coluna de Walter Hupsel.

6. 05 de janeiro de 2012. Com os métodos truculentos que se tornaram a rotina da atividade policial nas ruas, se procede à “limpeza” da região da Cracolândia em São Paulo. O pretexto é o revigoramento do Centro. O motivo real, apontado por todos os movimentos sociais, é a simbiose de interesses políticos e especulação imobiliária. Na desocupação de Cracolândia, não só se desconsiderou qualquer ação para amenizar a síndrome de abstinência dos dependentes químicos, mas se explicitou o que está no íntimo do tratamento brutal oferecido pela polícia, e a política, aos miseráveis da sociedade brasileira: a Prefeitura de São Paulo declarou que sua estratégia se baseava em “dor e sofrimento” para atingir os seus objetivos. Veja-se a matéria do Estadão: SP usa ‘dor e sofrimento’ para acabar com cracolândia.

7. 22 de janeiro de 2012. Desocupação de Pinheirinho em São José dos Campos (SP). Reproduzo o texto de Raquel Rolnik que, junto com Walter Hupsel, tem sido uma das poucas vozes indignadas com a escalada policial:  “Milhares de homens, mulheres, crianças e idosos moradores da ocupação Pinheirinho são surpreendidos por um cerco formado por helicópteros, carros blindados e mais de 1.800 homens armados da Polícia Militar. Além de terem sido interditadas as saídas da ocupação, foram cortados água, luz e telefone, e a ordem era que famílias se recolhessem para dar início ao processo de retirada. Determinados a resistir — já que a reintegração de posse havia sido suspensa na sexta feira  – os moradores não aceitaram o comando, dando início a uma situação  dramaticamente violenta que se prolongou durante todo o dia e que teve como resultado famílias desabrigadas, pessoas feridas, detenções e rumores, inclusive, sobre a existência de mortos.”

Os fatos listados deixam pouca margem a dúvidas. Sua concentração em janeiro de 2012, é sintomática. Estamos dentro de uma espiral de violência e repressão policial que ultrapassa a média histórica, já extremamente alta, que caracterizou sempre a história de um país elitista e discriminador.  Um tripé repressivo, que envolve o judiciário, a polícia e a política, manipulando uma consciência pública cada vez mais debilitada, em que os próprios intelectuais praticamente se recolheram ao mais absoluto mutismo, salvo raríssimas exceções, está bem montado e, tudo indica, atuará daqui para frente sempre com maior ferocidade.  Estamos já muito além de acontecimentos episódicos e passageiros. Há por trás de tudo isso um comércio de armamento, viaturas, blindados, helicópteros, munições, armas, etc. O Rio de Janeiro já é palco de uma das maiores feiras mundiais, a Feira Internacional de Segurança, para a aquisição de armamentos destinados à repressão pública.

O que já está em prática é um projeto, que foi articulado pelo então ministro da defesa, Nelson Jobim, que evocou à época a “expertise” adquirida pelo exército em conflitos urbanos na missão do Haiti, e cujos aspectos mais perturbadores tentamos apresentar num artigo publicado aqui nesse site em 2008 — Nelson Jobim e o projeto de super polícia. Uma conclusão que se pode tirar nessa altura é a seguinte: se um ministro da defesa é quem articula um projeto policial, em que o exército, a marinha e aeronáutica são peças decisivas, então o inimigo contra o qual o país pretende se defender é um inimigo interno. Ao longo da história, nos regimes totalitários, o ponto crucial foi sempre o domínio sob o aparato policial visando a liquidação do “inimigo interno”.

O que não é fácil de compreender é como, no governo de um partido que sempre se disse comprometido com as causas populares, foi chocado o ovo da serpente. Enquanto há pouco mais de uma década discutia-se ainda o absurdo da existência de duas polícias, a militar e a civil, e se falava na extinção de uma delas para a consolidação do sistema democrático, o que acompanhamos nos últimos tempos foi o reforço de toda a maquinaria policial: o uso da Polícia Federal contra mobilizações sociais (como no caso da Unir, citado acima), a criação da Força Nacional de Segurança Pública, a mobilização das Forças Armadas para operações em favelas, o fortalecimento da divisão da polícia em Civil e Militar, a quase que autonomia dos batalhões especiais, como o Bope.

Surtos de totalitarismo se deram em muitas partes do mundo. Hannah Arendt e Herbert Marcuse, para citar um caso, apontaram diversos  desses sintomas nos EUA nas décadas posteriores à Segunda Guerra. Pode-se dizer que desde a chamada guerra ao terror esses traços não só retornaram como se revestiram de evidência muito maior.  No cenário da crise econômica iniciada em 2008, originada de acordo com vários economistas pelos gastos astronômicos da guerra no Iraque e no Afeganistão, o combate ao terror teve sua prioridade rebaixada. Já o Brasil, nesse mesmo período, criou sua própria versão da guerra ao terror, na forma da guerra contra o tráfico. Para compreender seu sentido, é preciso dar uma passada de olhos sobre nossa história colonial e ver, como nela, se enraíza a figura do “inimigo interno”. Só assim compreenderemos como o nosso Ministério da Defesa pode, hoje, estar envolvido no combate dentro do front interno.

O inimigo a ser erradicado, desde os primórdios da colonização, tem sido entre nós principalmente o inimigo interno. Esse inimigo foi, primeiramente, desenhado pela pena da teologia dos padres como o portador por excelência do mal. Primeiros foram os indígenas, depois os escravos, quilombolas, negros livres e mestiços, e, atualmente, esses inimigos são os que se abrigam em favelas, ocupações e invasões. O historiador inglês Charles Boxer definiu o princípio fundamental da colonização portuguesa nos termos seguintes: “Salvar suas as almas imortais associado com o anseio de escravizar os seus corpos vis”. Trata-se de uma troca metafísica, em que os padres e a Igreja Católica representam a salvação, impondo o cristianismo aonde chegavam e, como complemento inseparável, os traficantes escravistas, os bandeirantes, os capitães-do-mato e as forças policiais, garantiam a subjugação.

Ser escravo era o preço pago por ser cristianizado e adquirir uma alma imortal. O Brasil, ou aquilo que veio a ser chamado Brasil, era visto como um paraíso terreno (o que, na perspectiva portuguesa, significava um campo aberto à exploração extrativa indefinida) habitado, porém, por demônios que deviam ser redimidos ao mesmo tempo pela cruz e pela espada. Um dos melhores exemplos dessa parceria é a do major Vidigal, chefe de polícia no Rio de Janeiro na época em que a Corte esteve no Brasil. Além de reprimir barbaramente qualquer rebeldia negra na cidade, Vidigal destruía os quilombos próximos e, em troca, recebia presentes e homenagens.

Como é bem conhecido, os monges beneditinos o presentearam com uma grande área no Morro Dois Irmãos, em 1820, por serviços prestados. Que interesses teriam os beneditinos?  Um viajante, poucas décadas antes, anotou que eles possuíam 1,2 mil escravos, que usavam na exploração de quatro enormes engenhos de açúcar. Assim, o major Vidigal, na sua época, foi uma engrenagem fundamental para assegurar os bens da ordem. Isto talvez já estivesse esquecido, ou enterrado sob grossa crosta de dissimulação histórica, não fosse um detalhe irônico: o terreno doado a Vidigal foi ocupado posteriormente por Sem Tetos, e recebeu o nome de Favela do Vidigal.

O Brasil foi dominado por quatro séculos por traficantes. As maiores fortunas nesses 400 anos de escravidão eram as dos traficantes de escravos e, abaixo deles, a dos exploradores de mão de obra escrava nas monoculturas, como os beneditinos (ver o livro de João Luis Ribeiro Fragoso, Homens de grossa aventura). Mas esses traficantes, motores de uma trama genocida que trucidou mais de 10 milhões de escravos, só na América, nunca foram punidos. Ao contrário. Foram presenteados com títulos de nobreza, premiados, promovidos, honrados e festejados. Como paradoxo histórico bem característico do Brasil, deparamos hoje com uma guerra aberta contra os descendentes das vítimas da escravização. E essa guerra foi chamada de guerra contra o tráfico.

A nossa guerra contra o tráfico segue o modelo colonial da guerra ao inimigo interno. Em todas as justificativas dos atos violentos praticados pelas forças policiais, se repete o mesmo relatório: “foram encontradas tais e tais armas e munições; tantos e tantos quilos de cocaína; presos diversos evadidos do sistema prisional, etc.”. A lógica permanece, sem tirar nem pôr, a lógica da colonização sendo os lugares atacados os que abrigam os maiores contingentes de herdeiros do pesadelo escravista, isto é, o maior contingente de negros e mestiços. Por isso é engraçado ler coisas como essa:

“O ministro Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral da Presidência) disse nesta segunda-feira que a Policia Militar transformou em “praça de guerra” a ação de reintegração de posse da área invadida do Pinheirinho, em São José dos Campos (97 km de São Paulo), determinada pela Justiça estadual.” Folha.com: Ministro chama de “praça de guerra” episódio em Pinheirinho.

Mas como é possível tanto cinismo, se os instrumentos dessa guerra foram criados por esse governo e por sua base política?

Enquanto isso os grandes interesses, os negócios gigantescos, predatórios para o Estado, mas indispensáveis para a política, têm seus contratos bilionários sempre reajustados para cima, recebem todo tipo de incentivo, e se esquivam a toda responsabilidade. Compara-se isso com a explosão dos trabalhadores dos canteiros de obras de Jirau, que forma um afresco histórico dos mais claros sobre o Brasil de hoje. Milhares de trabalhadores em condições miseráveis de trabalho aguardam providência de um Estado que não passa de um simulacro de garantidor do interesse público. Em 2009, 38 trabalhadores foram libertados de condições de trabalho análogo à escravidão; em 2010, já foram 330 os autos de infração por crimes trabalhistas e em 2011, no mês de abril, depois de compreenderem que nenhum apoio viria do governo federal, os trabalhadores cederam ao desespero e promoveram uma explosão de fúria. Só então o Estado se fez presente: a Força de Segurança Nacional, veloz como um raio, apareceu e tocou para longe os trabalhadores, demitidos e expulsos da área. Nenhuma reparação lhes foi dada ou prometida. Agora, surge o conflito entre as empreiteiras e as seguradoras para o pagamento dos prejuízos e, como era de se esperar, o BNDES já entrou na discussão. E a discussão diz respeito ao pagamento, ao consórcio construtor, de uma soma que pode chegar a US$ 1,3 bilhão. Indenização alguma cabe aos trabalhadores tratados como bestas de carga.

É interessante notar que, ao que parece, todas aquelas operações grandiosas da polícia federal contra os muito ricos (como a Operação Satiagraha), não deram em nada. Ou entraram no processador lento dos tribunais, na caverna obscura na qual muitos processos entram, porém, raros saem. Serviram só para proibir as “humilhações” e “exposições” a que antes eram sujeitos banqueiros ou especuladores: fim das algemas, imposição do segredo de justiça, etc. Por outro lado, na esfera dos conflitos sociais normais em toda sociedade democrática, a polícia das balas de borracha, dos gases de pimenta e lacrimogêneo, das pancadas e humilhações, das mortes que no meio do tumulto nunca são responsabilidade dos agentes públicos, avançam sobre um território novo e inexplorado: o público universitário.

Ao mesmo tempo em que se reforça sobre as periferias, favelas e ocupações, em que intimida e maltrata mais os negros e mestiços do que nunca, a polícia começa a sentir o gostinho de estender a mão também a um público mais seleto, carne nova, de classe média, que, até pouco tempo, não fazia parte do seu cardápio habitual: alunos do ensino secundário, estudantes de universidades federais, doutorandos, professores doutores.

Como foi possível ao PT criar esse aparelho repressivo? Foi possível porque para os intelectuais, políticos e setores religiosos que formam o partido, a grande referência permanece a Europa e a sua brancura mítica. Ao pensar em refazer as estruturas sociais do país, em desenvolvimento e modernização, o inconsciente do PT almeja por algo parecido com o que considera o Bem, isto é, algo semelhante a um país europeu e uma população branca. Nessa lógica, as massas de negros, mulatos, mestiços, e também índios, não esqueçamos deles — todas essas faces estranhas e inquietantes para quem só vê beleza em corpos brancos — aparecem como um estorvo estético, um desvio moral e um sinal da vocação para o crime.  As classes dominantes delinqüentes sempre fizeram assim: transferiram a sua própria carga criminosa para seus subordinados sociais.

O que fazer com eles?  O PT pôs em prática a mesma teologia e a mesma interação de público e privado da nossa história colonial. Os brancos, e quanto mais brancos melhor, os donos de empreiteiras, bancos, latifundiários, especuladores, etc., afiguram o Bem. A ‘plebe’ descendente da escravidão, surge como a raiz de todo Mal. Esse mal, o pior mal, o mais concentrado, foi fixado na figura do traficante — síntese e prova do mal que se engendra nas favelas. Os pobres, em sua grande maioria negros e mestiços, os índios,  devem ser salvos pelo Bem, mas por essa salvação têm que pagar um preço muito alto.  Esse preço é hoje, não mais a cristianização meramente cosmética, mas a submissão à ordem pela violência, como se, em sua essência, esses setores constituíssem focos de infecção social. As UPPs, em cujo projeto inicial se incluía muros e guaritas em torno das favelas (Ver o nosso artigo publicado aqui no site: A Alpha Ville das Comunidades – a Alpha Vella) mostram claramente isso.  Repetem os aldeamentos e missões, em que os índios eram totalmente extraídos de sua cultura original e submetidos a mais rígida ordem sob a vigilância cruel dos monges.


O que o PT parece perder de vista é que, como sempre acontece na história com os partidos fracos, gelatinosos, dispostos a todas as concessões e vilanias, a sua política policial se voltará, mais cedo ou mais tarde, contra ele mesmo. E isso pode acontecer logo que, despido de sua auréola e credibilidade, por força da violência que criou e tem gerido, deixe de ser um instrumento útil nas garras da fauna de bilionários que hoje se alimenta do Estado.  Nesse momento, o criador será entregue como repasto para sua criatura.

PS: Tenho muita simpatia pelos meus colegas que se dedicam aos estudos pós-coloniais, especialmente pela seriedade de seus trabalhos acadêmicos e pelo seu engajamento crítico, mas, não obstante isso, para o caso brasileiro, não posso deixar de alimentar sérias dúvidas. Em que sentido o Brasil se mostra como uma sociedade pós-colonial? O que caracteriza a nossa história são as mudanças sem rupturas, as transições transacionadas. Assim, falar em “pós” pressupõe um corte efetivo, coisa que nunca ocorreu em nossa história marcada pela ambivalência. Parece-me muito mais explicativa a idéia de neo-escravismo, sublinhando a velha continuidade da corrupção, da violência contra os cativos, dos privilégios escancarados para as elites.

*Doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. Foi duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil. É coordenador da revista eletrônica, Revista Humanas , órgão de divulgação científica da Cátedra Unesco de Multilinguismo Digital (Unicamp) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes



29/01/2012

Pinheirinhos - (Por Plínio de Arruda Sampaio)

A reintegração de posse no Pinheirinho, em São José dos Campos, deveria ter acontecido? 

Não 

O conluio entre os poderes econômico e político
Até quando os noticiários dos jornais e da televisão mostrarão as cenas degradantes dos despejos de famílias sem-teto?
A mais recente delas, realizada em uma área de São José dos Santos, expulsou famílias que ocupavam, há oito anos, uma área periférica da cidade.
Oito mil policiais foram desviados das suas funções de manutenção da segurança da população para essa inglória tarefa.
Agindo com violência, esses policiais feriram as pessoas, destruíram as casas e os objetos dessa pobre gente, atingindo até as crianças. Foi uma barbaridade.
O promotor público, obrigado por lei a presenciar essas operações, brilhou pela ausência.
Chama a atenção igualmente a ausência de parlamentares, especialmente daqueles pertencentes aos partidos de esquerda.
Com a exceção honrosa do senador Eduardo Suplicy, é muito raro ver parlamentares presentes nesses eventos com a finalidade de prevenir excessos da força policial.
O mais incrível é que o mesmo Estado que realizou o despejo estava negociando com o proprietário do terreno a aquisição da área, para vender aos ocupantes.
Os advogados dessas famílias fizeram um grande esforço para demonstrar à juíza do processo que a solução do problema era uma questão de dias.
Indiferente ao drama humano que sua decisão causaria, a juíza aplicou mecanicamente a lei e determinou o despejo.
Não contente, um juiz de direito acompanhou o despejo e indeferiu de plano, em pleno local, todas as petições que foram apresentadas pelos advogados com o proposito de evitar a execução do mandado.
Só se justificaria a presença de um magistrado em eventos desse tipo se fosse para prevenir excessos da força policial.
No entanto, a presença de um juiz de direito no Pinheirinho não causou nenhuma inibição nos soldados, em uma evidente demonstração do conluio entre o poder econômico e o poder político nos Estados hegemonizados pela burguesia.
Nesses Estados, a prioridade primeiríssima é sempre a defesa do sacrossanto direito de propriedade. Todo o resto -os direitos humanos, a integridade física, os pequenos pertences das pessoas- fica subordinado ao direito maior.
Por isso, o direito à propriedade de um milionário relapso, que deve milhões de tributos não pagos ao Estado brasileiro, justifica o espancamento de pessoas e a destruição de seus bens.
E agora? Como ficam as famílias despejadas? Quem cuidará delas?
Elas obviamente irão ocupar outra área. Serão novamente expulsas e voltarão a sofrer os mesmos vexames e as mesmas violências.
Isso acontece e continuará acontecendo enquanto não houver uma legislação que coíba a especulação imobiliária, porque é ela que causa o aumento extorsivo do preço dos terrenos e, desse modo, exclui as famílias pobres do mercado.
Pacífica, despolitizada e sem organização, essa população tem aceitado a situação intolerável sem recorrer à violência. Até quando?
Isso vai continuar acontecendo enquanto os partidos de esquerda deixarem de cumprir seu papel de conscientizar e organizar essa massa, para que ela resista a esses ataques de armas na mão.
Na hora em que isto for uma realidade, não haverá violência, porque a consciência dessa realidade será suficiente para manter os cassetetes na cintura.
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PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 81, advogado, foi deputado federal pelo PT-SP (1985-1991), consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) e candidato a presidente pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade)


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Werneck Sodré e a teoria do Brasil

É de fundamental importância um olhar detido sobre o legado teórico e as posturas políticas do historiador centenário
 Miguel Yoshida

Em 2011, Nelson Werneck Sodré teria completado 100 anos de vida. Por ter sido importante figura na luta do povo brasileiro ao longo do século 20, é de fundamental importância um olhar detido sobre o seu legado teórico e suas posturas políticas.

Militar de carreira – ingressa no colégio militar no ano de 1924 –, Sodré sempre sustentou posições democráticas dentro do exército brasileiro, o que lhe causou uma constante perseguição pelas forças reacionárias. Além disso, também foi professor do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) no qual contribuiu juntamente com outros intelectuais brasileiros na reflexão sobre a formação social brasileira.

Sodré teve uma produção intelectual intensa: escreveu ao longo de sua vida mais de 50 livros e aproximadamente 3 mil artigos, nos quais buscou elaborar uma “teoria do Brasil”. Duas características são marcantes em seu pensamento: a busca de compreender a realidade brasileira em seus diversos aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos; e o marxismo como fio condutor de sua interpretação. Segundo José Paulo Netto, autor do perfil biográfico Nelson Werneck Sodré: general da democracia e da cultura: “a unidade de sua obra teve como base o rigoroso empenho, valendo-se dos recursos do marxismo, para compreender a particularidade histórica da formação social brasileira (...) o objeto que imantou todo o seu trabalho (marxista) de pesquisa, por mais de meio século, foi a história do Brasil.”

É importante ressaltar que Sodré não foi o primeiro a construir uma teoria do Brasil; o século 20 foi marcado por várias formulações sobre a realidade brasileira, desde conservadores, como Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, progressistas, como Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado, até marxistas, como Caio Prado Jr.

Experiência militar

A evolução intelectual de Sodré se dá não apenas a partir de seu acúmulo teórico – sua bagagem cultural era algo extraordinário – mas também pela sua experiência política como militar. Ainda segundo José Paulo Netto, duas experiências marcam sua reflexão: “seu envolvimento nas eleições para o Clube Militar e a sua inserção no Iseb”.

Como decorrência da primeira, ele assume a direção do Departamento Cultural do Clube Militar, em uma gestão constitucionalista e democrática. Apesar disso, as forças reacionárias, com força e influência considerável na estrutura do exército, conseguiram desarticular tal gestão e Sodré foi transferido para Cruz Alta, no Rio Grande do Sul. Esse foi o primeiro de outros deslocamentos que ele sofreria ao longo da vida, fruto de ofensivas conservadoras.

Uma de suas principais preocupações girava em torno da história, não como uma disciplina, mas como uma totalidade, tal qual Marx e Engels postularam: “Existe apenas uma ciência, a ciência da história”. Ao perscrutar os vários aspectos da formação social brasileira, Sodré sempre buscou compreender o seu processo histórico de formação.

Não ocasionalmente, suas principais obras são: História da literatura brasileira (Graphia, 2002), História militar no Brasil (Expressão Popular, 2010), História da Burguesia Brasileira, História da imprensa no Brasil (Ed. PUCRS, 2011).

Apesar de cada um desses volumes – salvo o primeiro – terem sido publicados em anos subsequentes, entre 1964 e 1966, todos são frutos de anos de pesquisa; alguns foram concebidos primeiramente como projeto coletivo e depois realizados individualmente por ele, como é o caso de História militar no Brasil, idealizado quando foi professor da Escola do Estado-Maior, em finais dos anos de 1940.

Cabe ressaltar que essa preocupação em formular uma teoria do Brasil não é uma iniciativa individual de Nelson Werneck Sodré; o clima de efervescência social e cultural do Brasil das décadas de 1950-1960 é algo marcante em seu pensamento.

Proximidade com o PCB

São várias as polêmicas em torno da vida e da obra de Nelson Werneck Sodré, desde sua não declarada vinculação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) até suas interpretações marxistas da realidade brasileira. No que toca ao primeiro ponto, é possível perceber a sua aproximação ao PCB, principalmente após a Declaração de março de 1958, na qual se adota uma nova orientação estratégica para a atuação política do partido, ampliando o seu leque e alianças e o horizonte político. É nesse marco que Sodré reúne elementos político-teóricos de membros do PCB para seguir em sua formulação de uma teoria do Brasil.

No que toca ao segundo ponto, é conhecida a polêmica instaurada entre ele e Caio Prado Jr. sobre o caráter da formação social brasileira; enquanto o primeiro analisa o processo de colonização sobre o prisma da coexistência de um escravismo e de elementos de regressão feudal em algumas áreas específicas do território brasileiro, o segundo afirma o caráter capitalista mercantil do Brasil desde a sua colonização.

Dessas longas polêmicas, deve-se ressaltar a postura de Nelson Werneck Sodré que, sem nunca abandonar suas convicções político-teóricas, sempre buscou apreender as críticas que recebia e incorporá- las à sua teoria. Não cabe aqui a discussão do acerto ou não de sua teoria do Brasil, entretanto, a compreensão de seu pensamento é de fundamental importância para todos aqueles que buscam entender a realidade brasileira em seus diversos aspectos com o intuito de transformá-la.

Centenário

Por muito tempo Nelson Werneck Sodré sofreu grande isolamento por parte de vários setores da academia. Ele era injustamente considerado por muitos como um marxista mecanicista e ortodoxo. Esse isolamento começa a se romper em finais da década de 1980. Desde 2009 há um esforço de re-edição de suas principais obras e um reavivamento de seu pensamento dentro da universidade e sua divulgação para além dela.

Em 2011, ocorreram várias atividades em comemoração ao centenário de Sodré em universidades, centros culturais etc. No Rio de Janeiro, o Instituto Casa Grande, juntamente com a Escola Nacional Florestan Fernandes – nos marcos de comemoração dos 45 anos do Teatro Oi Casa Grande –, realizou duas sessões de debate sobre a vida e a obra de Nelson Werneck Sodré, sendo que uma delas contou com a presença da filha e curadora de sua obra, Olga Sodré, e a outra com intelectuais comunistas próximos, como Marly Vianna, Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto.

Marly Vianna ressaltou a influência do PCB no pensamento de Sodré e a preocupação que ele nutria com relação à compreensão da história para a transformação social. Segundo Carlos Nelson Coutinho, Sodré – assim como Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes – elabora uma imagem marxista do Brasil, ou seja, busca compreender a formação social brasileira com uma visão global, extrai raízes de nosso passado para contribuir na compreensão do futuro em seus vários aspectos que a compõem. Para José Paulo Netto, são inegáveis as transformações ocorridas no Brasil nas últimas décadas do século 20 e na primeira do século 21.

O Brasil interpretado e analisado por Nelson Werneck Sodré certamente não é o mesmo de hoje, entretanto, sem compreendermos o Brasil de meados do século 20, dificilmente conseguiremos compreender nossa realidade hoje.

Miguel Yoshida é mestrando em letras pela Universidade de São Paulo.

GRIFO MEU (PK)

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24/01/2012

CIRCULAR A TODOS OS MILITANTES, SIMPATIZANTES E AMIGOS DO PCB

Partido Comunista Brasileiro – PCB


Comitê Central: Rua da Lapa, 180 – Grupo 801 – Centro -. Rio de Janeiro. RJ - CEP: 20.021-180


Tel/Fax.: (21) 2262-0855 / 2509-3843





COMITÊ CENTRAL

90 ANOS DO PCB!

Em 25 de março de 2012, o PCB estará comemorando 90 anos de uma extraordinária história, de alegrias e tristezas.

Em função de vários períodos de clandestinidade, da repressão de ditaduras e da ação de oportunistas, dispomos em nossos arquivos de poucos documentos (livros, fotografias, áudios, vídeos, objetos e outros registros políticos, históricos e literários) que retratem a intensa vida do PCB nestes 90 anos.

Carecemos também de depoimentos escritos ou gravados, com narrativas sobre aspectos diversos da vida partidária, curiosidades, histórias inéditas, alegres ou tristes.

O Secretariado Nacional do PCB está encarregado de centralizar a recepção de todo este material espalhado pelo país. O material pode ser enviado ao PCB pessoalmente, por via postal ou eletrônica.

Com a tecnologia hoje disponível, você não precisa se desfazer do seu acervo pessoal, que certamente tanto lhe orgulha. Fotos e documentos podem ser escaneados e enviados por via eletrônica. Se o doador não tiver conhecimentos tecnológicos ou recursos materiais para a reprodução e remessa de sua contribuição, providenciaremos formas de ajudá-lo, inclusive com a interação de camaradas do PCB em sua região.

Todo este material será divulgado nos sítios eletrônicos do PCB e da Fundação Dinarco Reis, ligada ao Partido. Muitas das doações serão aproveitadas para publicações e outras iniciativas comemorativas dos 90 anos. Os doadores só serão identificados, se desejarem.
VEJAM AS FORMAS DE ENTREGA DO MATERIAL:

Por via postal:
- PCB – Partido Comunista Brasileiro
Rua da Lapa, 180 – grupo 801 – Lapa (Rio de Janeiro) – CEP 20.021-180.

Por telefone:
- PCB: 021-2262-0855 (secretária eletrônica)

Por via eletrônica:

(Secretariado Nacional do PCB), janeiro de 2012


23/01/2012

Sepe se solidariza com moradores de Pinheirinho

O Sepe se solidariza com os mais de 6 mil habitantes da localidade conhecida como “Pinheirinho”, em São José dos Campos (SP), que ontem (dia 22) foram retirados de suas moradias, violentamente, pela Polícia Militar, a mando do governador Geraldo Alkmin (PSDB). O governador descumpriu uma decisão do Tribunal Regional Federal, que determinava que a desocupação estava suspensa, segundo despacho assinado pelo juiz Samuel de Castro Barbosa Melo.


O prefeito Eduardo Cury (PSDB) e o governo do estado se aproveitaram da trégua determinada pela Justiça Federal para atacar o movimento de surpresa, no domingo pela manhã. A invasão ocorreu por volta das 6h, com helicópteros, blindados, armas de fogo, bombas de gás e pimenta e 2 mil homens vindos de 33 municípios. Até a Rota, uma força de elite policial reconhecida pela sua violência, foi utilizada.

A imprensa informa que um homem foi atingido nas costas por uma bala de um revólver calibre 38 por um guarda civil. O homem levou um tiro nas costas e está hospitalizado. Outras nove pessoas ficaram feridas - entre elas um assessor da Presidência da República, presente ao local. O advogado dos moradores, Antonio Ferreira, disse ter sido baleado na virilha, no joelho e nas costas com balas de borracha. Paulo Maldos, secretário de Articulação Social da Presidência da República, foi atingido nas costas.

De fato, um verdadeiro exército foi usado para desalojar trabalhadores – na verdade, estes cidadãos são vítimas da especulação imobiliária, já que o Pinheirinho fica próximo a uma região considerada “nobre”.

Durante a ação policial, muitos moradores foram feridos por disparos de bala de borracha. Há muitos relatos de agressão policial contra idosos, mulheres e até deficientes físicos. Inúmeras mães denunciam que foram impedidas pela polícia de pegar roupas, fraldas e até mesmo os próprios filhos dentro da ocupação.

Terreno é do empresário Nahas, preso em 2008 por corrupção e lavagem de dinheiro:
Guilherme Boulos, do MTST, sendo espancado pela Guarda Civil
O terreno pertence à massa falida da empresa Seleta do empresário Naji Nahas (preso, junto com Daniel Dantas e o ex-prefeito Celso Pita, pela Polícia Federal durante a operação Satiagraha, em 2008, que investigava desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro. Nahas foi solto, já que a Justiça considerou inválidas as provas obtidas pela PF). Pinheirinho foi ocupado pela população em 2004. Na última quarta-feira à noite, houve um acordo entre a massa falida da empresa e os ocupantes do terreno. Haveria uma espécie de trégua por 15 dias, para um entendimento entre as partes envolvidas. Mas o governador e o prefeito ignoraram o acordo.

A reintegração de posse da área aconteceu em meio a um imbróglio jurídico, envolvendo uma disputa de competência entre magistrados estaduais e federais. No domingo, na hora da operação, estavam em vigor duas determinações: pela Justiça estadual, a ordem era para desocupar a área. Pela federal, nada poderia ser feito. Só no início da noite de ontem e, portanto, após a retirada das famílias terminar, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) emitiu uma decisão liminar, dizendo que a competência sobre a permissão de reintegração de posse era da Justiça Estadual.

Durante a execução da ordem judicial pela PM, dois oficiais federais de Justiça estiveram no local para determinar a suspensão da reintegração de posse. Os moradores chegaram a comemorar, mas os servidores federais foram ignorados pela polícia.
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Fonte: SEPE 


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21/01/2012

A cena do Big Brother é um problema do Brasil

Outras Palavras - [Antônio Martins] Às vezes repetir um argumento cansa. Quando os interlocutores não estão dispostos a abandonar seus próprios preconceitos e aprender um pouco, ainda mais. A repetição é exaustiva.

Pois é assim que me sinto hoje, escrevendo esta coluna para o Outras Palavras. Um assunto que vai e vem e que não é resolvido praticamente em país nenhum: estupro de vulnerável.

Provavelmente muitos leitores daqui ouviram por alto — e sequer acompanham ou se preocupam com o Big Brother Brasil. Outros devem ser da opinião de que a indignação com o caso de estupro registrado pelas câmeras do programa no final de semana seria mais útil para expulsar o Sarney do Senado. Aí é que se enganam.

A opressão de gênero, que se utiliza frequentemente de violências sistemáticas como o estupro ou o controle sobre o corpo para se manter, independe do Senado, do sistema político, da economia, do tipo de organização social, do sistema produtivo. Achar que a corrupção deve ser mais importante do que isso, é a verdadeira falácia. Se vocês assistem Big Brother Brasil ou não, entendam: discutir o que ocorreu no programa não é apenas discutir o que ocorreu no programa. É discutir uma prática constante de violência sexual de gênero que assola todos os grupos sociais no Brasil e fora dele.

Durante a festa a mulher bebe, se diverte, como todo mundo. Diz ao homem que não quer ficar com ele. Isso já deveria bastar para um homem com um mínimo de senso ético desencanar da dita mulher. Pois não. Ele fica lá, enchendo o saco. Ela continua dizendo que não quer ficar com ele. No final da noite, ela trêbada se deita. Ele vai lá e começa a abusar dela. Carícias não só não-solicitadas, como repelidas, não são carícias. São atos de violência. Se a mulher não diz não, isso não significa um "sim" automático, até porque ela não estava em condições de dizer nenhum dos dois.

No nosso Código Penal, casos como esse são chamados "estupro de vulnerável" (1), porque não havia condições de consentir. É violência presumida. Mas este não é o primeiro, único ou último caso desse tipo de violência. Perguntem às moças e moços e verão que muitas e muitos já tiveram que defender uma amiga ou desconhecida desacordada, dormindo, embriagada ou não.

"A festa era grande, havíamos contratado um segurança até. Meu quarto trancado a chave, vejam o absurdo, para caso eu quisesse dormir quando ainda houvesse convidados. O medo do ataque. A chave no bolso. Os pufes num canto, ela dormia, sem estar bêbada nem nada. Apenas dormia, cansada, no meio da festa. Podia ser que houvesse trabalhado naquele dia. Tudo podia ser, ali. Não importava. Ela dormia no canto da pista, sobre os pufes, tranquila. Ouço um rebuliço, vejo um homem andando rápido, quase correndo pelo casarão. (...) Ele se misturava à multidão, fugitivo. Encontro alguém que me diz que um homem tentara agarrar a menina que dormia. Que as amigas lançaram-se sobre ela para impedi-lo, que ele as havia agredido. Uma menina machucada contava a história em meio à música alta da pista já vazia. Acionamos o segurança, este homem seria expulso da festa e, caso se recusasse a sair, chamaríamos a polícia."

[Trecho do post Mulheres, Em Três Episódios, de minha autoria, no Blogueiras Feministas]

Tão grave quanto o ataque do estuprador são os comentários que consideram que a culpa do estupro é da vítima. Estar bêbada, usar determinadas roupas e até mesmo "olhar" de certo jeito são argumentos frequentemente usados por defensores de estupradores para culpar a vítima. Ora, se o estupro fosse causado por uma saia curta, quase todos os homens heterossexuais seriam estupradores e todas as mulheres teriam sido estupradas. O que causa estupro não é a roupa, o comportamento da vítima (corrobora com isso, inclusive, o fato de que a maior parte dos casos de violência sexual acontece dentro da família da vítima, em casa). É o estuprador.

O mito de que a culpa do estupro é da vítima leva, inclusive, a um tratamento desumano da justiça nos poucos casos em que é julgado como crime, como mostram o filme "Acusados" (1988), baseado numa história real, e a reportagem do The Guardian:

"Neste ano [2010], também foi publicada a maior pesquisa sobre estupro já realizada no Reino Unido. Conduzida pela organização de advocacy e lobby feminista Campaign to End Rape (CER) ["Campanha pelo Fim do Estupro"] as entrevistadas, todas mulheres, responderam perguntas sobre suas próprias experiências de estupro, acesso aos serviços de apoio a vítimas de violência sexual, e sobre o que poderia ser feito para melhorar o processo de registro de ocorrências e acusação. A pesquisa mostra que a forma como muitas mulheres são tratadas pelo sistema judiciário criminal — onde não são levadas a sério e são vistas com suspeição — leva outras mulheres a tratá-las do mesmo jeito. O fato de tantos homens acusarem vítimas de estupro de mentirosas tem um efeito devastador sobre as mulheres. Enquanto amostragem não-aleatória, a pesquisa mostrou resultados alarmantes: 40% das entrevistadas tinham sido estupradas, a maioria por homens que elas já conheciam. Apenas 42 dos 123 casos registrados de estupro chegaram a serem julgados como crime."
[Trecho do post Culpem o Estuprador, Não a Vítima, tradução livre minha de um artigo do The Guardian)]

O que aconteceu no Big Brother Brasil no final de semana não é, como podem ver, um problema do Big Brother Brasil, apenas. É um problema social muito maior. O problema do Big Brother Brasil é ter uma equipe de produção acompanhando os fatos, presenciando um crime, e se omitindo ao não chamar a polícia, não levar o estuprador à delegacia nem fazer exame de corpo delito com a vítima. Sem falar que o estuprador estava sem preservativo... É um problema do Brasil, porém, caso o Ministério Público não se pronuncie, não exija a prisão e retirada do participante da casa e acredite que a Globo está acima da lei. Não está.

Nota

(1) A lei 12.015, (7.08.2009, incorporada , ao Código Penal, diz, em seu artigo. 217-A, que incorrer em crime de estupro de vulnerável é "Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos". A pena é reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. O § 1° acrescenta: "Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência."

Fonte: Diário Liberdade

A importância do livro para a educação e o desenvolvimento

Envolverde - [Dieter Brandt] No final de 2011, quando as agências internacionais noticiaram que a economia brasileira já era a sexta do mundo, ultrapassando a da Inglaterra, num primeiro momento houve euforia. A seguir, analistas nacionais e internacionais ponderaram que ainda falta muito para o país chegar ao nível de qualidade de vida e infraestrutura existentes nas nações mais desenvolvidas.


Ao lado de fatores como renda per capita muito mais baixa e problemas com transportes, saneamento (como mostram as recentes inundações, que se repetem todos os anos), um especial se destacou: a educação. Hoje, no Brasil, um dos aspectos que ainda retardam o crescimento é a falta de mão de obra especializada e um ensino de alta qualidade. Ora, todos sabemos que só por meio do aprendizado conquistamos a verdadeira plenitude, que alia a qualidade de vida profissional e pessoal e nos completa como cidadãos.

Felizmente, nos últimos anos, notícias como a de que o brasileiro comprou mais livros em 2010 – segundo dados da CâmaraBrasileira do Livro (CBL), ou que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) fechou, em agosto passado, negociação para a compra de 162,4 milhões de livros didáticos a serem utilizados por alunos da rede pública neste ano de 2012 – mostram que os brasileiros estão atentos a esse aspecto.

Karine Pansa, presidente da CBL, declarou recentemente que "é gratificante observar que o preço do livro no Brasil vem mantendo uma tendência de queda. Isto estimula o crescimento do número de leitores e desenha um futuro com mais educação, cultura e efetivo desenvolvimento". A indústria gráfica brasileira está atenta e preparada para essa demanda da sociedade. Sabemos que um dos itens importantes de um país educado é o hábito da leitura.

Nesse sentido, o livro impresso, a despeito das mídias digitais, continua sendo o mais importante, completo e abrangente meio para a difusão de conhecimento com conteúdo didático, científico e literatura, contribuição para um país mais competitivo e com melhores condições de conseguir o verdadeiro progresso.

Tal condição é referendada em matéria no jornal New York Times de 20 de novembro de 2011, contendo a opinião de famílias e especialistas sobre as vantagens dos livros impressos. O jornal ouviu vários pais que, embora usem em sua vida diária os tablets, fazem questão que seus filhos pequenos sejam cercados por livros impressos, para que possam virar as páginas e ter a mesma experiência física com que eles mesmos aprenderam formas e cores.

Junlo Yokota, professor e diretor do centro de ensino por meio de livros infantis da National Louis University, em Chicago, afirma que a forma e o tamanho do livro são muitas vezes parte da experiência de leitura. Páginas mais amplas podem ser usadas para transmitir paisagens amplas, ou um formato mais alto pode ser escolhido para histórias sobre arranha-céus, por exemplo.

O jornal termina a matéria com o que acreditamos seja um dos maiores elogios ao livro impresso como indutor de educação. Mateus Thomson, de 38 anos, executivo de um site de mídia social, acredita que seu filho de cinco anos vai aprender a ler mais rápido no papel impresso: "os sinos e assobios de um iPad se tornam mais uma distração. Quando vamos para a cama, ele sabe que é a hora da leitura. Se pegar o iPad, ele vai querer jogar um jogo. Desta forma, a concentração pela leitura sai pela janela". Melhor explicado, impossível.

Dieter Brandt é presidente da Heidelberg América do Sul.

Fonte:Diário Liberdade

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A cruzada da velha mídia contra os trabalhadores

Em um sistema político representativo, que tem como característica básica a parca possibilidade de participação efetiva da população nas decisões, somado a um sistema econômico no qual a exploração do trabalhador – pelas empresas privadas e pelo próprio Estado que deveria defendê-lo – é a tônica principal, as mobilizações grevistas são um mecanismo fundamental de luta contra a opressão.
 
Garantido pelo artigo 9º da Constituição Federal e regulado por leis específicas, o direito de greve não é aceito pela mídia hegemônica brasileira. A cada mobilização dos trabalhadores determinados setores da mídia se mobilizam do outro lado. Os artifícios são sempre os mesmos.

Na última terça-feira o Blog do Miro publicou um texto em que mostra como o Estadão atacou a greve dos trabalhadores da Petrobras antes mesmo que ela começasse. Aqui mesmo no Jornalismo B já fizemos, neste ano, pelo menos quatro posts denunciando os baixos ataques do Estadão, da Folha, da Band e da Zero Hora (AQUI e AQUI) contra movimentos grevistas.

É papel da mídia independente comprar essa briga e defender os sindicatos e os trabalhadores contra as mentiras, distorções, omissões e pressões da velha mídia. A greve é um instrumento básico de exigência de direitos, e é em si mesma um direito garantido. Estar ao lado dos trabalhadores é estar ao lado dos avanços democráticos e ao lado dos setores oprimidos da sociedade, e é esse o lugar da mídia contra-hegemônica.

Da mesma forma, é preciso que os sindicatos e movimentos sociais se afastem dos veículos que os condenam, e percebam também neles seus inimigos no caminho da emancipação. Por outro lado, esses grupos devem apoiar a mídia independente, que também deve apoiá-los não apenas como estratégia política, mas como tarefa fundamental. Dessa forma, fortalece-se a mídia contra-hegemônica e fortalecem-se os movimentos populares, que vêem suas vozes ampliadas na sociedade. A aproximação de sindicatos de trabalhadores e movimentos sociais os mais diversos com a mídia independente é uma necessidade para ambos os lados, se queremos fazer de nossas lutas nossas futuras conquistas.
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Manual da velha mídia: como cobrir ( E DESCONSTRUIR ) uma greve

Jornalismo B - [Alexandre Haubrich] A cada movimento grevista, os ataques da mídia dominante se sucedem. Isso acontece porque determinados setores da mídia atuam não como espaços informativos, mas como instrumentos discursivos das elites.

Abaixo, um imaginado (ou nem tanto) manual prático da velha mídia brasileira sobre como cobrir uma greve. Baseado em fatos reais:

1. Para tentar esvaziar a greve:

1.1. Diga que a greve é “de vanguarda” e que os trabalhadores não foram devidamente consultados;

1.2. Caso você seja obrigado pelos fatos a admitir que houve uma Assembléia Geral, diga que a Assembléia teve pouca participação;

1.3. Diga que a Assembléia que definiu a greve teve grande quantidade de discordantes;

1.4. Faça todo o possível para mostrar os trabalhadores como simples massa de manobra das lideranças sindicais

1.5. Ignore o fato de que as lideranças sindicais são eleitas pelos próprios trabalhadores;

1.6. Ignore a obrigação legal que as lideranças sindicais têm de convocar uma Assembléia Geral para votar uma proposta de greve;

1.7. Afirme, reafirme e repita quantas vezes for possível que a greve está esvaziada, estando ela como estiver.

2. Para pressionar o governo contra os grevistas:

2.1. Escreva que os grevistas estão provocando o governo;

2.2. Diga que o resultado das mobilizações vai demonstrar “quem realmente manda” no governo;

2.3. Garanta que o governo perderá força se ceder às exigências dos grevistas;

2.4. Ameace: escreva que ceder é demonstrar fraqueza, e que governos fracos não se sustentam no poder;

2.5. Coloque a sociedade contra o movimento, fazendo o governante ver que perderá votos na próxima eleição caso ceda.

3. Coloque a sociedade contra o movimento:

3.1. Destaque todos os prejuízos que o cidadão “de bem” terá com a greve;

3.1.1. Se for uma greve de professores, ressalte os danos às férias escolares, ao vestibular e ao aprendizado das crianças;

3.1.2. Caso alguma manifestação dos grevistas interrompa o trânsito, faça imagens do congestionamento, e não esqueça de falar que os “trabalhadores” foram prejudicados por não conseguirem chegar às empresas onde trabalham.

4. Na hora das entrevistas:

4.1. Evite ao máximo entrevistar grevistas. Se precisar fazê-lo, pouco espaço, e apenas no final da matéria;

4.2. Entreviste muitos “populares” prejudicados pela greve;

4.2.1. Se for uma greve de professores, entreviste diretores de escolas preocupados, pais desesperados, e não hesite em procurar desesperadamente crianças que adorariam estar na escola, mas não podem estudar por causa da greve;

4.2.2. Caso alguma manifestação dos grevistas interrompa o trânsito, entreviste motoristas tensos e anti-greve, mas não esqueça de variar com outros que afirmam “até concordarem” com as reivindicações, mas que também precisam ir trabalhar.

5. Na hora da redação da matéria:

5.1. Comece o texto sempre com os problemas que a greve (“os grevistas”) causa à população;

Obs.: Nos casos em que é possível aproximar ações dos grevistas de atos “criminosos”, os transtornos à população devem ceder o primeiro posto e serem transformados em uma segunda questão a ser colocada no texto;

5.2. Esforce-se para mostrar posicionamento das instituições do governo contra a greve;

5.3. As reivindicações dos grevistas devem aparecer em um ou dois parágrafos, no máximo, no fim da matéria;

5.4. Possíveis denúncias dos grevistas devem aparecer sempre acompanhadas de “suposto” ou derivados.

6. Glossário subjetivo:

Grevista = vagabundo
População = desrespeitada
Greve = vagabundagem
Mobilização = baderna
Empresas = coitadinhas
Reivindicações = privilégios


 GRIFO MEU (PK)


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20/01/2012

A COPA E A MÍDIA: reflexões sobre e a mais-valia ideológica, a soberania a comunicacional e o jornalismo o

 Elaine Tavares

Resumo 

O texto traz uma reflexão sobre a forma como a mídia comercial tem atuado no que diz respeito ao anúncio das benesses da realização da Copa do Mundo no Brasil em 2014. A análise se faz a partir dos conceitos de mais-valia ideológica, proposto por Ludovico Silva, soberania comunicacional, uma construção coletiva dos comunicadores populares venezuelanos e brasileiros, e o jornalismo como forma de conhecimento, proposto por Adelmo Genro Filho. Parte-se da pedagogia de sedução capitalista, incensada pela mídia, e chega-se a propostas de controle popular soberano e jornalismo libertador.

A Copa do Mundo de 2014 começou a ser “vendida” ao povo brasileiro muito antes do início da copa de 2010, na África do Sul. Essa “venda” apareceu e segue aparecendo nas reportagens dos programas de esporte, nos noticiários gerais e até nos programas de entretenimento. E tudo isso tem uma razão muito simples. A copa não é mais só um espaço lúdico de competição do futebol, em que qual os países disputam uma linda taça de ouro praticando um futebol arte, dançante, alegre. Este evento é um dos mais importantes espaços de venda de mercadorias do mundo, talvez as mais raras e caras: seres humanos com habilidades especiais,ou ainda,para melhor compreensão, os jogadores. Não bastasse isso, ele alavanca a venda de outras tantas milhares de mercadorias que, apenas com a menção do nome “copa”, disparam no mercado mundial, tais como camisetas de time, bonés, bandeiras, fitinhas, etc..., além de aquecer o turismo, hotelaria, serviços e comércio de todo tipo. No Brasil já existe até um portal na internet que,desde maio de 2010, divulga todas as notícias que saem nos veículos de comunicação sobre o tão esperado evento.

A cobertura da mídia aos preparativos da Copa 2014 é carregada de ufanismo e boas novas. Quem escuta os repórteres imediatamente vincula o evento a benfeitorias, emprego, alegria, progresso, novas tecnologias. Esses são os pilares de sustentação de uma proposta que, na verdade, ao passar, deixa um profundo e quase irrecuperável lastro de destruição. Mas, então, por que não há um debate crítico na televisão brasileira sobre o que significaverdadeiramenteserasede de um certame mundial de futebol? Temos algumas hipóteses e vamos procurar refletir sobre elas.
 
A primeira delas diz respeito à lógica do futebol como mercadoria que, como bem conta o professor Nilso Ouriques no seu livro “A Miséria do Esporte”,lançado em julho deste ano pela editora catarinense Insular,começou com a “perigosa” relação entre a FIFA (Federação Internacional de Futebol) e a empresa de material esportivo Adidas, no longínquo 1974. Essa entidade, que era apenas uma pequena federação européia, acaba se transformando ela própria numa megaempresa, uma espécie de multinacional de venda de seres humanos e outras tantas coisas relacionadas ao futebol. O contrato entre a FIFA e Adidas alia a venda de materiais relacionados à prática do esporte, com a negociação de seres humanos, os jogadores, que se transformam também numa mercadoria de alta rentabilidade. O processo iniciado então chega hoje ao seu mais elevado nível. Tudo é negócio. Na verdade, o jogo em si, muito pouco importa. O que vale é o volume de dinheiro que o “evento” envolve e movimenta. Não é sem razão que o evento Copa do Mundo 2014 já tenha começado a gerar lucro, porque, afinal, a roda do capital não pode parar.

Nessa roda viva de promessas de benesses que o evento gera, a mídia faz todo o esforço para potencializar a pedagogia da sedução e manipulação, típica do capitalismo. É por isso, que apesar de ainda faltar tanto tempo para a copa, os programas de televisão já insistem em divulgar as possíveis coisas boas que virão.

Nos programas de esporte é onde se percebe com mais clareza  o jogo da “distração”, como bem aponta Noam Chomski no texto “As 10 estratégias de manipulação midiática”2 . As reportagens mostram, de maneira bastante descontraída, como ficarão bonitos os estádios das cidades brasileiras, como serão modernos e funcionais, desviando assim com textos alegres e ufanistas - a atenção das questões que verdadeiramente importam, como por exemplo, o custo destas obras e o que se poderia fazer pelo esporte comunitário caso essa verba fosse aplicada em projetos desse tipo.No caso do dinheiro gasto para os Jogos Pan-Americanos no Brasil, por exemplo,já se sabe que se fosse usado para criar espaços de prática de esporte e lazer comunitários, poder-se-ia cobrir praticamente todos os municípios do país. Mas, esse acobertamento das questões cruciais relativamente à copa faz parte da proposta de manter o público sempre na ignorância e beirando a mediocridade,para que não possa desenvolver o senso crítico. Como bem já dizia George Orwell, uma opinião pública bem informada é coisa perigosa demais para os poderosos de plantão.

Outra estratégia da pedagogia da sedução capitalista promovida de maneira bastante eficaz pela mídia é mostrar as “belezas” pontuais que a verba usada para a modernização dos estádios trará para as cidades sedes, como se fosse uma espécie de redução de danos, mas que soa sempre como a última maravilha do mundo. É o caso de uma reportagem sobre os ônibus ecológicos que serão colocados em circulação no Rio de Janeiro. Diz a repórter que, durante a copa, circularão ônibus da mais alta tecnologia, movidos parte por diesel e parte por energia elétrica, reduzindo em mais de 30% o consumo de combustível. O tom da notícia é ufanista e alegre,como se a jornalista falasse com crianças. “Vai ser um gol de placa”. Nenhuma informação sobre o número de linhas, os bairros que ganharão os ônibus, os roteiros etc... Na verdade, o tal ônibus deverá ser usado apenas para levar e trazer as delegações, já que se trata de um lançamento ainda não usado em grande escala. Possivelmente, acabada a copa, os ônibus desaparecerão da cidade, que seguirá com todos os transtornos atuais do transporte público nas grandes cidades.

Por isso é espantoso ver a alegria com que os repórteres falam dos números que serão gastos na Copa. Até agora, o governo já acenou com a possibilidade de injetar nas “obras da copa” mais de 23 bilhões de reais, mas é bem possível que estas cifras aumentem ainda mais. Ninguém explica que serão necessários empréstimos a juros altíssimos, e que o uso destes valores implicará em redução de investimento em áreas estratégicas como a educação, a saúde, a segurança. O setor hoteleiro, por exemplo, receberá mais de um bilhão. Dinheiro público sendo usado de forma privada, sob a alegação de que é para melhor atender ao turista. Fala-se com a boca cheia que 86 projetos de infraestrutura serão criados em 12 cidades. Ótimo! E as demais cinco mil cidades? Sobre essas, silêncio.

Da mesma forma aparecem matérias falando das linhas de metrô que serão criadas, novos hotéis que serão construídos, modernização das frotas de táxi, ampliação de aeroportos e outras tantas maravilhas que, no frigir dos ovos, não representam muita coisa no universo das monumentais obras que serão feitas nos estádios, que, na verdade, devem consumir a maior parte dos recursos. Esses ficam depois para uso dos clubes, e nada mais que isso, de certa forma privatizando um dinheiro público. Assim, o povo paga por um lugar onde possivelmente nunca porá os pés. No caso dos jogos da copa, muito menos, pois os ingressos são caríssimos, e quem acaba fruindo são os turistas ricos do Brasil e de outros países. Passada a copa, os brasileiros comuns ainda terão de pagar muito mais caro pelos ingressos nos jogos normais, como tem acontecido em vários países que investiram horrores na “modernização” dos estádios. Isso quando eles não se transformam em elefantes brancos, sem serventia para nada.

Mas, na grande imprensa comercial, essas informações sobre como ficaram os países que passaram por projetos semelhantes, não aparecem em lugar algum. Um caso bastante flagrante é o da Grécia, que atualmente vive nas telas de TV como um lugar onde se vive uma grande crise. O que ninguém diz, em meio às imagens de confrontos com a polícia, que parecem brotar do nada, é que muito desta crise grega – que hoje abala toda a Europa – começou antes de 2004, quando o governo arrebanhou nove bilhões de euros em empréstimos para “modernizar” os estádios para as Olimpíadas de 2004 e, de quebra, realizar outras benfeitorias nas cidades. Os anos se passaram, a dívida começou a ser cobrada e os gregos não têm como pagá-la, tamanha bola de neve se formou entre juros e mais juros. Isso sem contar que as tais benfeitorias não apareceram.Agora,ogovernopede ao povo que “faça o sacrifício” de reduzir salários, aumentar a idade para a aposentadoria e reduzir as pensões. Ora essa, e todas as belezas que tinham sido anunciadas com o dinheiro das Olimpíadas? Silêncio total!

A televisão como espaço da mais-valia ideológica

Toda essa algaravia que se vê na imprensa comercial e que tentamos em breves pinceladas mostrar, no que tange à pedagogia de sedução sobre um investimento que vai beneficiar apenas a alguns, foi muito bem analisada por um original pensador venezuelano chamado Ludovico Silva Discutindo questões como a ideologia e buscando compreender como ela aparecia no cotidiano e com tamanha força que conseguia manter cativas as mentes,ele verificou que a televisão desempenha um pape lfundamental na disseminação da ideologia capitalista. Marxista, ele buscou nas categorias do pensador alemão, os instrumentos para analisar os tempos atuais. Segundo Marx, a ideologia é uma formação social, algo que ocupa um lugar preciso dentro da sociedade, uma realidade subjetiva que se determina pela estrutura material dessa sociedade. Desde aí chegou ao conceito de mais-valia, esta como uma realidade concreta, material e mensurável que explica a força de trabalho como uma mercadoria. Assim, Ludovico, unindo a idéia de uma realidade subjetiva (a ideologia) e a realidade concreta (a mais-valia) Ludovico cunhou o conceito de mais-valia ideológica.

A mais-valia ideológica é, para Ludovico Silva, a matéria prima da televisão. Ele chegou a isso se colocando a seguinte questão: evando em conta a afirmação de Marx de que as relações de produção se reproduzem no plano da ideologia, não seria possível pensar que,assim como na oficina material capitalista se produz amais-valia,na oficina de produção espiritual, subjetiva, se produziria uma mais-valia ideológica? E que essa mais-valia ideológica serviria para fortalecer e enriquecer o capital ideológico do capitalismo, que por sua vez tem como objetivo proteger e preservar o capital material? 

A resposta ele apresenta no seu livro “A mais-valia ideológica”, editado em 1977. Para Ludovico Silva, os meios de comunicação de massa, com mais força a televisão, seriam o espaço da mais completa expressão dessa mais-valia que se produz na mente do ser que está exposto ao bombardeio sistemático dos meios. O capitalismo precisava de um instrumento para justificar-se perante os homens, e os meios massivos de comunicação vieram bem a calhar, pela sua capacidade de penetração. Segundo ele, a televisão é verdadeiramente uma extensão do mundo material do trabalho,e um homemouumamulher,sentadosdiante da telinha, seguem absolutamente conectados ao processo produtivo. Seja no intervalo das propagandas, quenadamaissãodoqueaideologia agindode maneiravoraz,ounosprogramas de entretenimento, novelas e de notícias. Tudo está eivado de ideologia. “É um mundo de escravos sem amos, via mais-valia ideológica”, diz. “A mente do homem está cheia de valor de troca. A força de trabalho espiritual se mercantilizou, se fez mercadoria e o homem médio do capitalismo não vê em sua força espiritual de trabalho um valor de uso, mas sim um valor de troca”(Silva.Ludovico.Laplusvalia ideológica.1977, p. 208).

Ludovico chama de “indústria ideológica” o que a escola de Frankfurt cunhou como “indústria cultural”, porque, segundo ele, o que menos essa indústria comunicacional produz é cultura, a menos que se veja o homem como um espaço de “cultivo” e aí, no caso, é nada mais, nada menos, do que um cultivo ideológico. Ele observa que uma criatura diante da televisão está usando sua energia mental como um valor de troca, daí ser este um espaço de produção da mais-valia ideológica. Tudo virou mercadoria, até o pretenso momento de lazer ou de entretenimento de quem está na sala de sua casa. Ao interagir com o mundo da produção que salta da telinha, aquele que descansa, na verdade não descansa, segue produzindo para o capitalismo no plano da energia mental.

O pensador venezuelano também destapa o óbvio (sempre tão difícil de ser visto) e mostra que a indústria dita cultural é completamente dependente da indústria em geral e, da mesma forma que a indústria concreta escraviza o ser pelo trabalho, a televisão e os meios de comunicação escravizam as consciências. O mundo que os meios apresentam aos seres humanos é o reino das mercadorias, daí a quase impossibilidade de se sair da alienação.

No que diz respeito ao nosso tema, a Copa do Mundo, este conceito é bastante eficaz. Durante as reportagens que abundam nos programas esportivos aparentemente espaços de entretenimento  além das falsas promessas que aparecem como maravilhas, todo o material noticioso está conectado com a venda de produtos.É o álbum de figurinhas, são as camisetas dos times, é o mascote da copa que vira chaveiro, os bonecos dos jogadores, enfim, todo um universo de produtos e mercadorias que aprisiona o espectador e faz com que ele perceba o momento da Copa como um momento único para fazer compras. Nos intervalos dos programas tudo aponta para isso. Promoções de celulares, televisão e até fogão. A Copa passa ser motivo para a troca de diversos equipamentos, mesmo aqueles que não têm qualquer relação com a competição. É porque, no fundo, o que verdadeiramente importa é a venda de mercadorias. Como bem diz Ludovico: é o capitalismo se justificando perante os homens e mulheres.A Copa é só uma filigrana neste universo de compras.

Fortalecimentodearquétipos e de preconceitos

Dentro do processo de produção de mais-valia ideológica à qual os“consumidores”dos meios de comunicação ficam submetidos em tempos de Copa do Mundo ou Olimpíadas, também há que se salientar outro elemento importante na concepção capitalista da organização da vida, que é o da competição. Há um fortalecimento da idéia de que o esporte é apenas isso: competição, espaço onde só os fortes são vencedores. Os atletas são mostrados como aqueles que superam todas as agruras de treinamentos intermináveis, uma espécie de super-homens ou mulheres, gente que vence os mais incríveis desafios apenas com a força bruta da sua vontade. O alto rendimento é elevado à última potência. Esses aparecem como os que devem ser imitados, os exemplos a serem seguidos. Por isso são freqüentes as reportagens mostrando as histórias de superação dos mais diferentes atletas. Quem não se lembra da pequena Daiane do sSantos,chorando de dor, mas realizando sua mais bela performance, aparentemente vencendo todas as barreiras? Ou O Ronaldinho, com o joelho estourado, mas cumprindo sua missão de defender a camisa verde-amarela? Ou Kaká,igualmente destruído,mas ainda assim entrando no gramado e defendendo a pátria? Tudo descrito com a boa e velha dose de emoção, capaz de levar o espectador às lágrimas e pensar que aqueles são os heróis nacionais.

Por outro lado, estes mesmos jornalistas que usam da emoção para repassar essas idéias de dedicação e amor ao esporte, são incapazes de, anos mais tarde, mostrar ao grande público o que foi feito destes atletas. Gente que com pouco mais de 20 anos já está completamente destroçada, incapaz de levantar um balde, por conta do exagerado rendimento que lhe foi exigido ao longo da vida de atleta. Não há reportagens mostrando como termina todo esse processo esportivo que aposta no alto rendimento e alta competitividade. Estas histórias, de dor, de destruição corporal, ficam embaixo do tapete. Não servem para incensar a alegre ciranda das competições esportivas.

Também nestas competições mundiais a mídia e todo o processo da maquinaria ideológica do capital aproveita para reforçar preconceitos já estabelecidos.

Um exemplo bem claro disso é a rixa que existe entre argentinos e brasileiros. Nesta última Copa, que aconteceu na África do Sul, isso ficou bastante claro. Propagandas mostravam os argentinos representando arquétipos já bem conhecidos. Algumas chegavam ao grotesco.Uma falta de respeito com esse bravo povo que é nosso irmão, a considerar a grande pátria latino-americana. Mas, afinal, o que nos distancia dos argentinos? Por que há essa rivalidade? Quais as origens históricas desta rixa, no mais das vezes incompreendida pela maioria das gentes? Ninguém sabe, ninguém diz. Não importa. O que vale mesmo é reforçar esse preconceito, para que num momento qualquer, quando for necessário ao capital, esse ódio possa ser usado, como, por exemplo, aconteceu na Guerra do Paraguai, em 1864. Conforme estudos realizados pelo professor Mauro César Silveira, que estudou as caricaturas feitas sobre a guerra, a mídia tanto retratou o presidente Solano Lopez como um sanguinário ditador que nunca pareceu haver dúvidas da necessidade de destruir o Paraguai e toda“aquela maldade”. Ora, esse perfil de sanguinário foi uma construção ideológica, orquestrada e eficaz,que permitiu ao povo brasileiro vibrar com a “vitória” da guerra, que,na verdade,significou a destruição quase completa do povo paraguaio. Tudo isso apenas para reafirmar o poder da Inglaterra naquele então. Estes elementos históricos são importantes para que se possa pensar o hoje e todo esse bombardeio ideológico, reforçador de preconceitos, que aparece com muita força nas competições esportivas.

Isso mostra que o esporte muito pouco serve para elevar ideias como solidariedade, cooperação, alegria, companheirismo, partilha. Na verdade, é um espaço selvagem do“salve-se quem puder”, em que os atletas muito menos do que se superarem buscam superar os demais. É o reino da competição. E o que torna tudo ainda mais sombrio é que este processo todo é patrocinado por megaempresas, que usam esses atletas para unicamente vender seus produtos. Tudo não passa de um jogo de negócios. E todo lucro ao capital.  

Transcender a mais valia-ideológica

Não é novidade para ninguém o poder da mídia como espaço de persuasão e manipulação. Mas, igualmente se sabe que as pessoas, apesar de bombardeadas diariamente com essas informações que buscam preservar“a beleza”do capitalismo, têm um espaço de subversão que é a tomada de consciência do engano, o desmascaramento da ideologia. Isso pode acontecer como aporte de outras informações via outros meios de comunicação. Hoje, com o advento da internet, isso ficou possível. A rede mundial de computadores abriga uma infinidade de informações anti-sistêmicas e anticapitalistas. Basta que as pessoas aprendam a encontrá-las, o que também não é coisa fácil. De qualquer forma, é importante se ter claro que o problema da mais-valia ideológica não é o dos meios em si, eles apenas reproduzem uma ideologia que sustenta o sistema capitalista. Por isso, o desafio histórico dos movimentos sociais é fazer com que esses meios mudem de mãos e possam oferecer à maioria das gentes não uma ideologia, mas um espaço de construção de consciência de classe.

O esporte, nos meios massivos de comunicação, sempre aparece como um espaço mais elástico, em que os jornalistas podem ser mais informais, fazer reportagens engraçadas, alegres. Isso nada mais é do que o grande golpe da manipulação. Desvelar isso, destapar, descortinar,esse é o grande desafio. Compreender o que se esconde por trás do discurso da competição, do alto rendimento e das melhorias estruturais eleva o senso crítico e forma pessoas capazes de transcender à armadilha da produção ininterrupta de mais-valia, seja ela material ou psicológica.

A proposta de soberania comunicacional

No campo da comunicação muitas são as propostas para realizar esse passo de transcendência, que tire o espectador das redes de sedução do capital. A primeira delas, bastante discutida durante o processo de construção da Primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) –que aconteceu em dezembro de 2009 é avançar para o que os venezuelanos, na sua caminhada de transformação,chamam de “soberania comunicacional”. Acreditamos que a proposta apresentada pela maioria dos lutadores sociais do campo da comunicação de“democratização”dosmeios,não seja suficiente. E por quê? Porque falar de democratização pressupõe uma anterioridade:discutir de forma muito clara o que vem a ser esse conceito. O que significa democratizar a comunicação no bojo de um Estado capitalista, em que o mando efetivamente não está na mão dos legisladores ou do governo federal? Como democratizar um campo de ação de um Estado que é dirigido, em última instância, pelo capital monopólico? Responder a estas questões é fundamental para que possamos perceber os limites da luta por “democratização” e também as possibilidades que surgem ao debater outra forma de ser Estado, no sendero de outros povos que estão fazendo esse movimento hoje, em países como a Venezuela, a Bolívia e o Equador.

Lenin lembra muito bem no seu texto A revolução proletária e o renegado Kautsky: “É sempre muito natural para um liberal falar em democracia em geral. Mas um marxista nunca se esquecerá de colocar a questão: para que classe?”  Porque Lenin sabia muito bem que a democracia tem vários matizes e ela nunca de fato existiu na sua forma pura. Sempre há que se observar o adjetivo. Democracia liberal, democracia burguesa, democracia participativa. lsso nos coloca outra questão: quando falamos em democracia na comunicação,qual é o adjetivo que a acompanha? Ou qual perspectiva de classe a que estamos apontando?

Controle Social

Uma das propostas que estão na mesa é a do controle social dos meios de comunicação. Olhando assim soa bem. Mas o que significa? Que quem controlaria o setor seria o povo? O que é esse controle social? Quem faria parte de uma Câmara,ou Conselho, quem definiria as políticas públicas da comunicação? Aí voltamos a refletir sobre o Estado que temos. E, para isso, basta que passemos os olhos pela conformação da própria Conferência Nacional. Quem foi maioria ali?A quem representavam? O Estado brasileiro se notabiliza por estar a serviço das grandes multinacionais,dos oligopólios,dos monopólios e, na Confecom, estas fatias do setor se manifestaram. Foi até pior, pois os próprios movimentos sociais quiseram a participação do empresariado, “para saber o que eles pensam”, como alegou uma diretora da Federação Nacional dos Jornalistas, Valci Zucoloto. Ora, será possível que os que militam por uma outra comunicação não saibam ainda o que pensam os empresários? Acreditam eles que é possível“democratizar”em parceria com o empresariado? Para nós, esta é a velha fórmula da composição de classe que nunca acaba bem para a maioria das gentes.

Para pensar a proposta de controle social democrática apresentada por grande parte dos participantes na Confecom pode-se buscar um bom exemplo no setor de Saúde. Os Conselhos de Saúde municipais e estaduais buscam concretizar essa “democratização” e há muitos lutadores sociais sérios envolvidos, fazendo o embate cotidianamente. Mas, qualquer um que já tenha participado de um Conselho (e eu já participei) sabe dos limites estreitíssimos deste processo. Avança-se um passo e voltam-se cinco. A maioria dos conselheiros está bem afinada com o status quo e a batalha é quase insana. Bom, mas não há avanços? Sim, há. Pouquíssimos. Mas o que tratamos de fazer aqui é apontar os limites. Não dá para acreditar que o simples estabelecimento de uma lógica de controle social da comunicação possa mudar a forma de organização da mídia comercial que aposta, e muito bem, na manipulação e na mais-valia ideológica. Até porque os conselhos são consultivos. Eles apontam caminhos que podem ou não ser acatados pelos governos. 

O Estado democrático brasileiro 

Ruy Mauro Marini tem um texto no qual sistematiza o modo de operação de um estado contra-insurgente, típico dos tempos da ditadura. Ele mostra como as ditaduras na América Latina fizeram parte de um projeto dos Estados Unidos na luta contra o socialismo. E fala da doutrina da contra-insurgência, que apresentava os seguintes pontos: aniquilamento dos inimigos (os comunistas), conquistas de bases sociais e institucionalização. Tudo isso foi encaminhado aqui nesta parte do continente e aí está a história para comprovar.
 
Naqueles dias, de 1959 em diante, depois do triunfo da Revolução Cubana, esta foi a doutrina que balizou o poder nos Estados latino-americanos. Além disso, durante esse processo, aconteceram mudanças econômicas e políticas importantes na periferia do capitalismo. O sistema de produção da burguesia nacional se alia ao imperialismo e surge um Estado no qual a preocupação maior era olhar apenas para os interesses do capital monopólico nacional e estrangeiro. Este Estado também passa a usar o exército como a força bruta que travava e impedia a ação dos movimentos sociais. É, no dizer de Marini, o Estado corporativo burguês monopólico.

Depois, com a mudança de política dos EUA, vem a famosa “democratização”, na qual a proposta era a transição lenta e gradual para um tipo de estado que apresentasse uma democracia viável. E o que isso quer dizer? Que poderia haver uma abertura política, mas com a manutenção de alguns mecanismos que garantissem o não crescimento dos movimentos sociais e a impossibilidade do socialismo.

E foi o que se viu.O regime abriu, vieram as eleições diretas, o povo pode votar,os partidos vieram à luz, o parlamento se reorganizou, mas, concretamente,várias formas de controle foram renominadas e reinventadas, evitando movimentos de transformação.
 
Vamos pensar. O parlamento,democraticamente eleito de quatro em quatro anos, representa quem? Quantos lá dentro verdadeiramente representam os interesses das gentes brasileiras? Numa queda de braço entre os interesses do povo e os da elite nacional, dentro do parlamento, quem ganha? Qual o controle que o povo tem destes senhores e senhoras? E sobre as inúmeras maneiras de amortecimento da luta social, o que se pode falar? No governo de Luis Inácio, particularmente, tivemos uma revoada de lideranças sociais e sindicais que abandonaram a radicalidade revolucionária para caminhar sob o domínio da cartilha da política palaciana.Silêncio sobre o agronegócio, sobre a ação das multinacionais, sobre a ocupação do Haiti, sobre os monopólios midiáticos. Aprovação da intervenção do Estado e dos empresários na organização das lutas sindicais.Houve um amortecimento das grandes lutas.

E os poucos que ainda se insurgem contra a ordem dos monopólios, do capital financeiro e contra a superexploração recebem o quê? O braço armado da lei. São presos e criminalizados. A luta social vira caso de polícia, como nos anos 60 era caso de segurança nacional. Então, percebem? Mudou o nome e o perfil da força bruta, mas ao que parece a doutrina de contra-insurgência inventada pelos EUA ainda segue vigente. Trata-se de aniquilar o inimigo,vencer todas as suas forças e manter o sistema azeitado para que as multi, mega, trans empresas sigam dominando. 
 

Soberania comunicacional

Temos clareza de que o processo desatado pela Conferência Nacional de Comunicação foi importante. Os debates que ali se realizaram puderam, inclusive, comprovar, grande parte da análise desenvolvida aqui.Foi fundamental que os lutadores sociais pudessem descerrar alguns véus, pois não há espaço para ingenuidade na luta política. Por outro lado, também ficaram claros todos os limites, os empecilhos, as impossibilidades. Categoricamente não há como falar em democratização enquanto perdurarem os monopólios comunicacionais. Por isso, é mais do que necessário encontrar outros mecanismos de avanço e mudança. E, quando falamos em avanço, não dizemos de melhoria de um estado de coisas que é ruim e que “frankstenianamente” poderia apresentar uma ou outra faceta democrática.

A proposta que apresentamos é da luta por soberania. Como muito bem já apontou o genial Ruy Mauro Marini “falar em democracia é falar de autodeterminação”. Ou seja, a democracia que almejamos deve atender as exigências da maioria do povo e não de um pequeno grupo dominante. Ela tem
o recorte de classe e pressupõe um Estado cujo povo seja soberano e, por conta disso, possa transferir soberania ao Estado para que este seja independente de fato. Daí nossa consigna ser “por soberania comunicacional” e não apenas a democratização dos meios.

A democracia, se pensada dentro dos marcos da democracia burguesa, significa apenas a possibilidade de uma maior variedade de oferta, avançando um pouco no controle social, sempre com minoria. Já a soberania comunicacional pressupõe uma democracia radical, participativa, em que a participação seja direta e as pessoas possam efetivamente partilhar das decisões acerca do que se ouve, se lê e se vê neste país.Soberania na comunicação significa não arranjar esse modelo que aí está, mas construir, coletivamente, outro modo de comunicar.Esse é um processo muito mais comprometido e radical e, acreditamos, é para ele que devemos avançar.

A idéia de soberania comunicacional expressa justamente a questão do direito real à comunicação, não só a receber a informação, como controlar-la e produzi-la, fugindo deste sistema que só suga a mais-valia ideológica da maioria da população. Isso coloca também um embate junto à categoria dos jornalistas. A ênfase na produção de comunicação popular tem levado muitos jornalistas a questionar o fato de gente sem habilitação produzir vídeos, rádio e até material gráfico. Esse é um debate intenso, principalmente na Venezuela, onde o conceito de soberania comunicacional tem caminhado com mais concretude. Mas, aí, também é bom que as pessoas separem o direito de comunicar da técnica do jornalismo. Veículos como jornal, televisão, rádio e internet, apesar de terem muito espaço jornalístico, não são feitos só de jornalismo. Uma novela é uma forma de comunicação, um programa de variedades é uma forma de comunicação, uma conversa com pessoas é uma forma de comunicação, vídeos feitos para narrar a reprodução da vida nas comunidades, as festas, os costumes, são outras formas de comunicar. Não são necessariamente jornalismo. O jornalismo é um jeito de narrar que pressupõe análise, conhecimento histórico, impressão, focos narrativos, contexto, conhecimento sobre linguagem, signos, etc...
 
De qualquer forma, para além das lutas corporativas que também são necessárias, a população precisa saber que discutir soberania comunicacional é, em última instância, debater soberania em todos os níveis, avançando, fundamentalmente, para outro tipo de estado, socialista, até que o fim de todas as classes nos permita entrar num outro período civilizacional.

E a vida prática? 

Mas, construir essa soberania na comunicação e nas demais instâncias da vida do país não é coisa que se faça por meio de mágica.É preciso trabalho real,na vida mesma, nas comunidades, juntos aos movimentos sociais, porque a sede da soberania, como bem ensina Enrique Dussel, é o povo organizado. Isso significa que muitos dos engravatados que andam por aí a debater democracia, nos inumeráveis encontros em salões acarpetados,precisam voltar a atuar na base, na caminhada diária junto aos estudantes de comunicação,aos lutadores sociais. É preciso que se estude a realidade, a condição do Estado, as forças que estão em combate. É preciso conhecer os limites da nossa ação e sermos capazes de ultrapassá-los, sempre na senda da construção de um país soberano de fato,livre das amarras do capital,no qual seja verdadeiramente possível um controle social que atenda as exigências do povo em sua maioria. Isso significa trabalho, muito trabalho. Há que começar. Até que aconteça aquilo que diz Fidel: a hora em que “el pueblo crea en el pueblo y todo empiece a cambiar”.

Um jornalismo de libertação 

Se o campo da comunicação é vasto e abrange vários aspectos do conhecimento, aquele que é o nosso foco de análise neste breve texto é basicamente o jornalismo. É a partir das matérias, notícias, reportagens, crônicas e opinião que a sociedade vai assimilando todas as “mentidas e enganos” da beleza que pode vir a ser o país sediar uma Copa do Mundo. Já observamos, no início deste texto, como os programas jornalísticos acabam por fortalecer e visão do sistema capitalista, sem oferecer ao espectador/leitor/ouvinte os contextos e a historicidade. Nesse sentido, além de estabelecer a luta pela soberania comuniciconal, que é o povo mesmo assumindo o controle dos meios, também é necessário se pensar a produção do jornalismo sob outro olhar. Nesse campo, talvez ninguém tenha conseguido proposta do que o gaúcho Adelmo Genro Filho. No seu livro “O Segredo da Pirâmide” (1987), ele provoca a demolição da idéia do jornalismo como unicamente manipulador e ideológico, resgatando nele a sua dimensão revolucionária e destacando a capacidade do olhar crítico de cada leitor/espectador, fugindo assim da visão pessimista/ elitista da crítica até então efetuada na vereda frankfurtiana, que via a Indústria Cultural como um processo inelutável.

O trabalho de Genro Filho se faz num momento único da conjuntura brasileira. O Brasil vivia, no início dos anos 80, o fim do regime militar. As grandes manifestações pela anistia incendiavam o país, os exilados voltavam para casa e uma onda de esperança começava a crescer. A nova sociedade já não era mais um sonho distante,acalentado nos calabouços ou nos aparelhos.O socialismo, então, aparecia como algo possível de ser real. A campanha pelas eleições diretas começou forte e,mesmo ocultada pela grande mídia, foi crescendo. As ruas eram o espelho da realidade e a mídia comercial não mais conseguia esconder a sofreguidão que tomava conta de todos. Emendas no Congresso, passeatas, manifestações de milhares de pessoas. O gigante adormecido parecia despertar, e mesmo com a frustração de mais uma eleição indireta para o primeiro presidente civil,depois de quase 30 anos, esse era o caldo efervescente que agitava o país. A morte de Tancredo Neves e a investidura de José Sarney no cargo de presidente não esgotaram a força do sonho.É nesse contexto de esperanças e utopias que Adelmo Genro Filho produz seu pensamento mais original.
 
Além de fazer uma revisão crítica das tentativas genéricas de teorização sobre a comunicação, nas quais o jornalismo aparece como um apêndice,ele propõe uma teoria específica para o jornalismo, ancorada na idéia de uma sociedade diferente, livre das amarras do capital. Ao contrário do que pregam outros autores,ele não aposta ainda no fim do jornalismo, mas sim na sua capacidade de revolucionar e de caminhar criticamente rumo ao socialismo. Dentro de certos parâmetros, diz ele, que vão do singular ao universal, o jornalismo não precisa ser necessariamente manipulativo. Mesmo na sociedade capitalista,ele apresenta brechas que podem levar o leitor/espectador a pensar sobre o que está vendo e caminhar para uma mudança.

Genro Filho acreditava que era preciso dar um salto, sair dos manuais técnicos e das críticas puramente ideológicas que se faziam ao jornalismo. Por isso, se propôs a pensar o jornalismo como uma forma de conhecimento, centrada no singular,condicionada pelo capitalismo,sim,mas com potencialidades que ultrapassam a funcionalidade desse meio de produção.
 
Um enfoque verdadeiramente dialético-materialista deve buscar a concreticidade histórica do jornalismo, captando, ao mesmo tempo, a especificidade e a generalidade do fenômeno. Deve estabelecer uma relação dialética entre o aspecto histórico-transitório do fenômeno e sua dimensão histórico-antológica. Quer dizer, entre o capitalismo (que gestou o jornalismo)
e a totalidade humana em sua autoprodução. Dito de outro modo, o jornalismo não pode ser reduzido às suas condições de gênese histórica, nem à ideologia de classe que o trouxe à luz. Parafraseando Sartre: a noticia é uma mercadoria, mas não é uma mercadoria qualquer (Genro Filho, 1987, p. 27).

Ele faz uma crítica ácida da visão funcionalista, que dá ao jornalismo uma função social, mas unicamente voltada ao aperfeiçoamento das instituições democráticas (leia-se status quo) ou à denúncia das patologias sociais, fazendo crer que o que acontece de errado na sociedade perfeita do capital é só um cancro que, ao ser extirpado, deixa de infectar. Adelmo diz que isso reduz o conceito de forma de conhecimento, tornando-o vulgar e pragmático, já que não produz nenhum pensar sobre suas contradições.

Afirma que, “na sociedade, não importa o aspecto quantitativo da informação para que ela seja eficaz e significativa. Interessa antes, que ela esteja vinculada aos processos fundamentais e suas contradições” (p.81). Na verdade, Genro Filho insiste na manutenção da idéia de práxis, alegando que ela não pode ser abandonada pela simples informação. Entende que a práxis representa o caminhar humano, a sua historicidade, e a informação apenas remete à manipulação. O que ele acredita é que a questão essencial dos meios de comunicação de massa passa pelo domínio político desses meios pelas organizações revolucionárias. Em nenhum momento se desvincula do sonho de criar a nova sociedade. Não se trata de o jornalismo ser o condutor dessa luta, mas, diferentemente de outros autores,ele antevê, no processo de divulgação de notícias, uma possibilidade de forjar uma nova consciência a partir das contradições intrínsecas ao próprio jornalismo. Para Genro Filho, as possibilidades de manipulação dos meios de comunicação de massa são tantas quanto as de revolução. Resta saber como vão ser pensados esses meios e quem os domina.

A linha de pensamento ancorada na Escola de Frankfurt também sofre a sua crítica, por ter um caráter unilateral. Diz que Adorno via o jornalismo como algo reduzido a simples mercadoria, com conteúdo alienado e alienador, e é a partir daí que critica sua ontologia negativa, afirmando que a crítica, por mais ampla e profunda que seja, se não contém um momento concretamente afirmativo, torna-se diletante e não revolucionária. Alerta que a idéia de indústria cultural não leva em conta as potencialidades da técnica, absolutiza o papel alienador. A manipulação é considerada quase onipotente, não vê as brechas.

A conclusão que parece se impor é a seguinte: existe um fenômeno cultural peculiar ao capitalismo avançado que exige uma conceituação teórica, seja em termos de ‘cultura de massa’ ou ‘indústria cultural’. No entanto, essa conceituação não pode pretender abranger a totalidade do fenômeno cultural, pois a cultura jamais se deixa submeter integralmente pela categoria mercantil. Se isso pudesse ocorrer, a cultura deixaria de ser uma práxis, e, portanto, deixaria de ser cultura (Genro Filho, 1987, p.104).
 
Genro Filho é implacável com o que chama de jornalismo capitalista, mas não deixa de fora a crítica aos países ditos socialistas, nos quais percebe uma prática jornalística que se faz a partir dos mesmos pressupostos do jornalismo
burguês. Não aceita a idéia de que o jornalismo deva estar vinculado a determinados interesses de classe, e tampouco acredita que um mundo socialista possa ser o depositário da verdade. Isso seria exercer a mesma manipulação, tão criticada no jornalismo burguês. Entende que, se o jornalismo é apenas um instrumento da luta de classes, então todo o estudo específico desse tema seria em vão.

Se o jornalismo é apenas um instrumento de afirmação e hegemonia burguesa, no socialismo será, tão somente, ‘um instrumento proletário’ e, numa sociedade sem classes, não terá razão de existir. Sua concreticidade, para Hudec, está inevitavelmente ligada aos interesses de classe que ele representa: ‘o jornalismo não existe numa forma abstrata. É sempre concreto, ligado a uma certa classe social cujos interesses expressa, defende e apóia de um modo mais ou menos preciso’. Essa conclusão do autor pode ser entendida em dois níveis. Se for tomada no sentido de que o jornalismo é apenas um instrumento de luta de classes, teremos como conseqüência que ele será um epifenômeno da ideologia. Seu estudo seria um capítulo da discussão teórica sobre a ideologia, uma das manifestações e luta ideológica. Não haveria possibilidade de uma teoria do jornalismo propriamente dita, já que ele teria de ser explicado em função da luta de classe. (p.147).

Nesse sentido, pensar o jornalismodessaformareducionista seria legitimar a manipulação. Para o estudioso, tanto a ideologia da objetividade, que vigora no jornalismo burguês, quanto a ideologia do jornalismo científico, de alguns pensadores socialistas,atuam como reforço da ordem, manipulam e alienam. E é aí que ele encontra espaço para expor seu pensamento que tem, no singular, a categoria central da teoria do jornalismo.

O segredo da pirâmide, de onde emerge a teoria de GenroFilho, é aparentemente simples e óbvio. Tem sua inspiração nas categorias filosóficas do “singular, particular e universal”, e bebe na teoria estética de Lukács, que entendia a arte como“uma forma de conhecimento cristalizada no particular”. Ele, ao contrário, vai dizer que o jornalismo é uma forma de conhecimento centrada no singular.
 
Só que o teórico gaúcho não quer discutir singularidade no reino do senso comum, mas sim no sentido filosófico. Alerta que o jornalismo burguês já se preocupa com a singularidade dos fatos, evitando as generalidades, mas entende que este conceito está reificado pela compreensão espontâneadojornalista,queacaba aceitando implicitamente a ideologia dominante, na medida em que apreende a idéia de singularidade apenas como uma receita técnica, uma regra operativa, sobre a qual ele não reflete. É a idéia do mais importante.

Sua proposta singela é de devolver à pirâmide a sua posição original, com sua base bem fincada no chão. Para ele, a pirâmide invertida pretendeu, esse tempo todo, encarnar uma teoria da notícia, mas é apenas uma hipótese racional de operação. O que importa, a partir da sua teoria, é saber que a notícia não vai do mais importante para o menosimportante,esimdosingular para o particular e o universal.

Sempre que um fato se torna notícia jornalística, ele é apreendido pelo ângulo da sua singularidade, mas abrindo um determinado leque de relações que formam o seu contexto particular. É na totalidade dessas relações que se reproduzem os pressupostos ontológicos e ideológicos que direcionam sua apreensão. O que o triangulo eqüilátero quer representar, portanto, não é o conteúdo ideológico da notícia, como se a estrutura jornalística que ele pretende indicar coincidisse, necessariamente, seja com a ‘notícia funcional’ao sistema, seja com a ‘notícia crítica’ em relação a ele. (Genro Filho, 1987, p.192).

Genro Filho vai falar ainda da importância do lead, o qual não joga fora junto com a água do banho. “O lead funciona como um organizador da singularidade, mas não precisa estar no começo” (p.196). Ele deixa claro que essa técnica
é uma importante conquista da informação jornalística e que acaba sendo um epicentro para a compreensão do todo.

Ao fim, fala da especificidade da reportagem no mundo do jornalismo. Para ele, é justamente aí o momento em que o jornalismo se aproxima da arte, caminhando mais para a particularidade do que para a singularidade. Pensa que a singularidade não é capaz de dar conta da narrativa de uma reportagem e o típico (particular) é o elemento que vai servir como instrumento para a dramatização do acontecimento e a revelação mais explícita não apenas insinuada  do conteúdo universal. Esse talvez seja  no nosso ponto de vista um dos seus enganos. A singularidade parece ser o que mais dá conta da reportagem, coisa que se pode perceber na prática. No caso do tema em questão, o esporte é um dos espaços do jornalismo que mais se utiliza deste elemento ao salientar histórias de vida, por exemplo, sempre dentro da linguagem emocional que toca no subjetivo do ser humano e trabalha de forma muito eficaz a mais-valia ideológica.

O segredo desvendado por Genro Filho é a teoria que vai iluminar a caminhada de alguns jornalistas desde a década de 80. Mas é bom que fique claro que é uma caminhada feita por poucos. Considerado maldito na academia,o pensador gaúcho só vai alavancar novos pensares na década de 90, quando já não está mais presente fisicamente. Aos 36 anos, Adelmo Genro Filho morre em Florianópolis, em 1988, deixando uma vereda aberta na teoria do jornalismo, ainda repleta de mistérios e outros segredos a desvendar. Para ele, o veneno ainda é o melhor antídoto do veneno, o que significa que o jornalismo só pode ser vencido pelo jornalismo. 

Genro Filho não deixa muito claro, na sua teoria, mas em muitos momentos intui que o grande segredo está justamente na idéia de que não há, nem pode haver, universalidade, se não houver primeiro singularidade.O conceito de universalidade, tão falado, discutido e controvertido, na verdade não pode ser conceituado de forma totalizante. Ele só se concretiza a partir do singular. “É na face aguda do singular e nas feições pálidas do particular que o universal se mostra como alusões e imagens que se dissolvem antes de se formarem” (p.140). Ele, assim, propõe um jornalismo que parta do singular, e é neste atalho que, talvez, tenhamos de caminhar. Se, na contemporaneidade, a informação pode ser produzida por qualquer um, a partir de uma página da Internet, por exemplo, e se o jornalismo ainda quer continuar existindo, talvez a única forma de garantir que o jornalismo não desapareça seja sair da mediocridade da mera informação, da simples resposta às seis perguntas básicas de Kiplling. Seguir as pegadas de Genro Filho, narrando o mundo em profundidade, com conseqüência, com historicidade, no caminho de uma sociedade diferente. É importante diferenciar as coisas, informação é produzida por qualquer um, jornalismo requer algo mais e, fundamentalmente, conforme Genro Filho, precisa dizer mais do que o sentido denotativo das palavras. Precisa aspirar à universalidade.
 
Um fato dado, narrado a partir de sua singularidade, concretizará nele a universalidade necessária para incomodar o leitor/espectador/ ouvinte. Nesse sentido, concordamos com o autor, entendendo que jornalismo só é jornalismo quando consegue provocar reação, não apenas no nível da emoção, mas a reação necessária para gestar a dúvida, o desconforto, o que leva o ser humano a se perguntar: por que tem de ser assim? E o que podemos fazer para mudar isso?

O certo é que a sociedade sonhada por Genro Filho ainda não vingou. O capitalismo segue hegemônico no mundo todo e,apesar de suas freqüentes crises, mantém-se impávido e forte, constituindo-se como a única grande narrativa, cada vez mais amalgamada pelo comando da grande mídia. Sob o manto do pós-tudo, é o jornalismo que passa a ser anunciado como mais um artigo em extinção. E é a própria mecânica capitalista que está se encarregando de tentar matar o jornalismo, talvez ciente, enfim, do potencial revolucionário e utópico que ele pode carregar. Basta se ver a decisão do Superior Tribunal Federal que extinguiu a exigência do diploma de curso superior para o exercício desta profissão.

Entendemos, amparados em Genro Filho, que discutir a validade do jornalismo no mundo atual não é saudosismo, nem tentativa desesperada de salvar o que já agoniza. É, isto sim, insuflar a certeza de que há nele esse potencial revolucionário e transformador ainda não explorado na sua totalidade. Se outras formas de narraravidaestãosendocriadasnos novos tempos, nada impede que esgotemos todas as possibilidades ainda não trabalhadas, ou que essas novas formas sejam impregnadas, também, de suas potencialidades revolucionárias.

No que diz respeito ao jornalismo praticado nos programas de esporte e mesmo quando nos noticiários se referem a questões esportivas, como já abordamos no início deste texto, o que mais se vê é a proposta de uma prática que se utiliza que quase todas as estratégias já descritas por Chomski, como a distração, a gradação, a linguagem bestializadora,o aspecto emocional e o reforço da ignorância. É um jornalismo totalmente ligado ao status quo,chegando ao ponto de se transformar em mera propaganda do sistema, uma vez que é totalmente desvestido de crítica e historicidade. Nesse sentido, o jornalismo, feito à maneira ensinada por Adelmo com o qual conspiramos pode levar o público à compreensão da realidade, pode incentivar a construção da soberania comunicacional e,consequentemente,acabar com a produção de mais-valia ideológica. A informação e o conhecimento precisam ser libertadores. Ou isso, ou nada mais são do que ideologia. A seguir se praticando este jornalismo transfigurado em propaganda, como o que é feito hoje nos meios de comunicação comerciais, o que se esconde por trás da Copa do Mundo no Brasil em 2014 ainda está longe de ser desvelado. Há que se mudar o jornalista, porque o jornalismo, conceitualmente, só o é se historicizado e contextualizado.

 REFERÊNCIAS 

 CHOMSKI, Noam. 10 estratégias de manipulação da mídia. Artigo publicado no blog Controvérsia, disponível em  http://blog.controversia.com. br/2010/07/31/chomsky-e-as-10-estratgias-de-manipulao-miditica/>. Acesso em 10 de agosto de 2010.

GENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirâmide. Para uma teoria marxista do jornalismo. Por Alegre: Tchê, 1987
 
OURIQUES, Nilso. A Miséria do Esporte. Reflexões sobre as políticas públicas em Santa Catarina. Florianópolis: Insular, 2010

MARINI, Ruy Mauro. El estado de contra insurgencia. Artigo publicado na página da Universidade Nacional Autónoma do México, que trata sobre a vida e obra do autor, no endereço,http://www.marini-escritos. unam.mx/016_contra-insurgencia_ es.Acesso em 05 de agosto de 2010.

SILVEIRA, Mauro César. A Batalha de Papel – A guerra do Paraguai através da caricatura. LPM Editores: Porto Alegre, 1996

 Ludovico. La plus valia ideológica. Universidad Central da Venezuela: Caracas, 1977

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