Paulo    Freire
Ensinar,    aprender:    
leitura do mundo, leitura da palavra
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NENHUM  TEMA mais adequado para constituir-se     em objeto desta  primeira carta  a quem ousa ensinar do que a  significação    crítica  desse ato, assim  como a significação igualmente     crítica de  aprender. É que não existe ensinar sem aprender e  com isto eu  quero dizer mais do que diria se dissesse que o ato de   ensinar     exige a existência de quem ensina e de quem aprende. Quero   dizer que  ensinar    e aprender se vão dando de tal maneira que quem   ensina  aprende, de um    lado, porque reconhece um conhecimento antes    aprendido e, de outro, porque,    observado a maneira como a curiosidade    do aluno aprendiz trabalha para apreender    o ensinando-se, sem o  que   não o aprende, o ensinante se ajuda a descobrir    incertezas,   acertos,  equívocos.
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O aprendizado  do ensinante ao ensinar não    se  dá necessariamente  através da  retificação que    o aprendiz lhe faça  de erros cometidos. O  aprendizado  do ensinante ao    ensinar se  verifica à medida em que o  ensinante,  humilde, aberto, se    ache  permanentemente disponível a  repensar o  pensado, rever-se em suas     posições; em que procura  envolver-se com a  curiosidade dos alunos    e  dos diferentes caminhos e  veredas, que ela  os faz percorrer. Alguns  desses    caminhos e algumas  dessas veredas,  que a curiosidade às  vezes quase virgem    dos alunos  percorre, estão  grávidas de  sugestões, de perguntas    que não foram  percebidas antes  pelo  ensinante. Mas agora, ao ensinar,    não como um burocrata da mente, mas reconstruindo os caminhos    de sua curiosidade — razão por que seu corpo consciente,    sensível, emocionado, se abre às adivinhações dos alunos, à sua ingenuidade e à sua criatividade —  o ensinante que assim atua tem, no seu ensinar, um momento rico de  seu   aprender.    O ensinante aprende primeiro a ensinar mas aprende a    ensinar ao ensinar algo    que é reaprendido por estar sendo ensinado.
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O  fato, porém, de que ensinar ensina o    ensinante a ensinar um   certo  conteúdo não deve significar, de    modo algum, que o ensinante   se  aventure a ensinar sem competência para    fazê-lo. Não o autoriza a    ensinar o que não sabe. A responsabilidade    ética, política e    profissional do ensinante lhe coloca o dever    de se preparar, de se    capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade    docente.    Esta atividade exige que sua preparação, sua capacitação,    sua    formação se tornem processos permanentes. Sua experiência    docente, se    bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma       formação permanente do ensinante. Formação que se    funda na análise    crítica de sua prática.
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Partamos  da experiência de aprender, de    conhecer, por parte de   quem se  prepara para a tarefa docente, que envolve necessariamente    estudar.    Obviamente, minha intenção não é    escrever prescrições que devam  ser   rigorosamente seguidas, o que    significaria uma chocante  contradição   com tudo o que falei até    agora. Pelo contrário, o que  me interessa   aqui, de acordo com o espírito    mesmo deste livro, é  desafiar seus   leitores e leitoras em torno de certos    pontos ou  aspectos, insistindo   em que há sempre algo diferente a fazer    na  nossa cotidianidade   educativa, quer dela participemos como aprendizes,  e    portanto   ensinantes, ou como ensinantes e, por isso, aprendizes  também.
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Não gostaria, assim, sequer, de dar a    impressão de estar deixando absolutamente clara a questão do estudar,    do ler, do observar, do reconhecer  as relações    entre os objetos para conhecê-los. Estarei tentando    clarear alguns dos    pontos que merecem nossa atenção na compreensão    crítica    desses processos.
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Comecemos por estudar, que envolvendo    o ensinar  do ensinante, envolve também de um lado, a aprendizagem    anterior e    concomitante de quem ensina e a aprendizagem do aprendiz que se prepara       para ensinar amanhã ou refaz seu saber para melhor ensinar hoje ou,    de    outro lado, aprendizagem de quem, criança ainda, se acha nos    começos    de sua escolarização.
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Enquanto  preparação do sujeito    para aprender, estudar é, em   primeiro lugar,  um que-fazer crítico,    criador, recriador, não   importa que eu nele me  engaje através    da leitura de um texto que   trata ou discute um certo  conteúdo que me    foi proposto pela escola  ou se o realizo  partindo de uma reflexão    crítica sobre um certo   acontecimentos social  ou natural e que, como necessidade    da própria   reflexão, me conduz à  leitura de textos que    minha curiosidade e   minha experiência  intelectual me sugerem ou que me    são sugeridos por   outros.
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Assim,  em nível de uma posição    crítica, a que não dicotomiza o   saber do  senso comum do outro    saber, mais sistemático, de maior   exatidão, mas  busca uma síntese    dos contrários, o ato de estudar   implica sempre o  de ler, mesmo que neste    não se esgote. De ler o mundo,   de ler a  palavra e assim ler a    leitura do mundo anteriormente   feita. Mas ler  não é puro entretenimento    nem tampouco um exercício   de memorização  mecânica    de certos trechos do texto.
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Se,  na verdade, estou estudando e estou lendo    seriamente, não   posso  ultra-passar uma página se não consegui    com relativa clareza,   ganhar  sua significação. Minha saída    não está em memorizar porções   de  períodos    lendo mecanicamente duas, três, quatro vezes pedaços do    texto fechando    os olhos e tentando repeti-las como se sua fixação    puramente maquinal    me desse o conhecimento de que preciso.
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Ler  é uma operação inteligente,    difícil, exigente, mas   gratificante.  Ninguém lê ou estuda    autenticamente se não assume,   diante do texto ou  do objeto da curiosidade    a forma crítica de ser   ou de estar sendo  sujeito da curiosidade, sujeito    da leitura,   sujeito do processo de  conhecer em que se acha. Ler é procurar      buscar criar a compreensão do  lido; daí, entre outros pontos   fundamentais,    a importância do ensino  correto da leitura e da   escrita. É que    ensinar a ler é engajar-se  numa experiência criativa   em torno da    compreensão. Da compreensão e da comunicação.
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E a experiência da compreensão será tão mais profunda quanto sejamos nela capazes de associar,    jamais dicotomizar, os conceitos emergentes da experiência escolar  aos que resultam do mundo da cotidianidade. Um exercício crítico       sempre exigido pela leitura e necessariamente pela escuta é o de como       nos darmos facilmente à passagem da experiência sensorial que caracteriza a cotidianidade à generalização  que se opera na linguagem escolar e desta ao concreto tangível. Uma    das    formas de realizarmos este exercício consiste na prática que me       venho referindo como "leitura da leitura anterior do mundo",    entendendo-se aqui    como "leitura do mundo" a "leitura" que precede a    leitura da palavra e que perseguindo    igualmente a compreensão do    objeto se faz no domínio da cotidianidade.    A leitura da palavra,    fazendo-se também em busca da compreensão    do texto e, portanto, dos    objetos nele referidos, nos remete agora à    leitura anterior do  mundo.   O que me parece fundamental deixar claro é    que a leitura do  mundo   que é feita a partir da experiência sensorial    não basta. Mas,  por   outro lado, não pode ser desprezada como inferior pela leitura feita a partir do mundo abstrato dos conceitos que vai da generalização    ao tangível.
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Certa vez, uma alfabetizanda nordestina discutia,    em seu círculo de cultura, uma codificação (
1)       que representava um homem que, trabalhando o barro, criava com as    mãos,    um jarro. Discutia-se, através da "leitura" de uma série de    codificações    que, no fundo, são representações da realidade  concreta,      o que é cultura. O conceito de cultura já havia sido  apreendido      pelo grupo através do esforço da 
compreensão que    caracteriza a leitura do mundo e/ou da 
palavra. Na sua experiência    anterior, cuja memória ela guardava no seu corpo, sua 
compreensão  do processo em que o homem, trabalhando o barro, criava o jarro,    compreensão    gestada sensorialmente, lhe dizia que fazer o jarro era    uma forma de trabalho    com que, concretamente, se sustentava. Assim    como o jarro era apenas o objeto,    produto do trabalho que, vendido,    viabilizava sua vida e a de sua família.
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Agora, ultrapassando a experiência sensorial,    indo mais além dela, dava um passo fundamental: alcançava a capacidade    de generalizar  que caracteriza a "experiência escolar". Criar o    jarro como o    trabalho transformador sobre o barro não era apenas a forma    de    sobreviver, mas também de fazer cultura, de fazer arte.       Foi por isso que, relendo sua leitura anterior do mundo e dos    que-fazeres no    mundo, aquela alfabetizanda nordestina disse segura e    orgulhosa: "Faço    cultura. Faço isto".
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Paulo Reglus Neves Freire nasceu          no dia 19   de setembro de 1921 em Recife, Pernambuco.  Aprendeu a ler e          a   escrever com os pais, à sombra das árvores  do quintal          da  casa  em que nasceu. Tinha oito anos quando a  família teve que           se  mudar para Jaboatão, a 18 km de Recife. Aos  13 anos perdeu o            pai e seus estudos tiveram que ser adiados.  Entrou no ginásio com            16 anos. Aos 20 conseguiu uma vaga na  Faculdade de Direito do   Recife.    
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O estudo da  linguagem do povo foi um   dos pontos de partida da elaboração           pedagógica de Paulo   Freire, para o que também foi muito           significativo o seu   envolvimento com o Movimento de Cultura Popular  (MCP)          do   Recife. Foi um dos fundadores do Serviço de Extensão           Cultural   da Universidade do Recife e seu primeiro diretor.  Através            desse trabalho elaborou os primeiros estudos de um novo  método            de alfabetização, que expôs em 1958. As primeiras             experiências do Método Paulo Freire começaram             na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, onde 300    trabalhadores          foram alfabetizados em 45 dias. No ano seguinte,    foi convidado pelo presidente          João Goulart para repensar a    alfabetização de adultos          em âmbito nacional. O golpe militar    interrompeu os trabalhos e reprimiu          toda a mobilização popular.       
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Paulo             Freire foi preso, acusado de comunista. Foram 16 anos de    exílio,          dolorosos, mas também muito produtivos: uma estadia de    cinco anos          no Chile como consultor da Unesco no Instituto de    Capacitação          e Investigação em Reforma Agrária; uma mudança             para Genebra, na Suíça em 1970, para trabalhar como consultor             do Conselho Mundial de Igejas, onde desenvolveu programas de    alfabetização          para a Tanzânia e Guiné-Bissau, e ajudou em    campanhas no          Peru e Nicaraguá; em 1980, voltou definitivamente    ao país,          passando a ser professor da PUC-SP e da Univesidade   de  Campinas (Unicamp).          Uma das experiências significativas de    Paulo Freire foi ter trabalhado          como secretário da Educação  da   Prefeitura de São          Paulo, na gestão Luiza Erundina (PT),  entre   1989 e 1991. Paulo          Freire morreu no dia 2 de maio de  1997,  aos  76 anos de idade, em plena          atividade de educador e  de  pensador.  Estava casado com Ana Maria (Nita)          Araújo  Freire,  também  educadora.    
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É autor dos livros Educação como prática          da libedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; Pedagogia do oprimido.          Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970; Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1971; Ação cultural para          a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976;          Cartas à Guiné-Bissau. Registros de uma experiência          em processo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977; Educação          e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; A importância          do ato de ler em três artigos que se completam. São Paulo,          Cortez, 1982; A Educação na cidade. São Paulo,          Cortez, 1991; Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia          do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992; Política          e educação. São Paulo, Cortez, 1993; Professora          sim, Tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo,          Olho D'Água, 1993; Cartas a Cristina. Rio de Janeiro, Paz          e Terra, 1994; À sombra desta mangueira. São Paulo,          Olho D'Água, 1995. Pedagogia de autonomia. Rio de Janeiro,          Paz e Terra, 1996. Pedagogia da indignação. São          Paulo, Editora da Unesp, 2000.
Noutra  ocasião presenciei experiência    semelhante do ponto de   vista da  inteligência do comportamento das pessoas.    Já me referi a   este fato  em outro trabalho mas não faz mal que    o retome agora. Me   achava na Ilha de São Tomé, na África    Ocidental, no Golfo da Guiné. Participava com educadores e    educadoras nacionais, do primeiro curso de formação para alfabetizadores.
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Havia  sido escolhido pela equipe nacional um    pequeno povoado,   Porto Mont,  região de pesca, para ser o centro das atividades    de   formação. Havia  sugerido aos nacionais que a formação    dos educadores   e educadoras se  fizesse não seguindo certos métodos    tradicionais   que separam prática  de teoria. Nem tampouco através    de nenhuma forma   de trabalho  essencialmente dicotomizante de teoria e prática    e que   ou menospreza a  teoria, negando-lhe qualquer importância,    enfatizando exclusivamente a prática, a única a valer,    ou negando a prática fixando-se só na teoria.    Pelo    contrário, minha intenção era que, desde o começo    do  curso,   vivêssemos a relação contraditória entre    prática e teoria,  que será   objeto de análise de uma de    minhas cartas.
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Recusava,  por isso mesmo, uma forma de trabalho    em que fossem   reservados os  primeiros momentos do curso para exposições    ditas   teóricas sobre  matéria fundamental de formação    dos futuros   educadores e educadoras.  Momento para discursos de algumas pessoas,      as consideradas mais  capazes para falar aos outros.
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Minha convicção era outra. Pensava    numa forma de trabalho em que, numa única manhã, se falasse de    alguns conceitos-chave — codificação, decodificação,    por exemplo — como se estivéssemos num tempo de apresentações,    sem, contudo, nem de longe imaginar que as apresentações  de certos conceitos fossem já suficientes para o domínio da    compreensão    em torno deles. A discussão crítica sobre a prática em       que se engajariam é o que o faria.
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Assim,  a idéia básica, aceita e    posta em prática, é que os jovens   que se  preparariam para a tarefa    de educadoras e educadores   populares  deveriam coordenar a discussão em    torno de codificações   num círculo  de cultura com 25 participantes.    Os participantes do   círculo de  cultura estavam cientes de que se tratava    de um trabalho   de afirmação  de educadores. Discutiu-se com eles    antes sua tarefa   política de nos  ajudar no esforço de formação,    sabendo que iam   trabalhar com jovens  em pleno processo de sua formação.    Sabiam que   eles, assim como os  jovens a serem formados, jamais tinham feito    o   que iam fazer. A única  diferença que os marcava é que    os   participantes liam apenas o mundo  enquanto os jovens a serem formados   para    a tarefa de educadores liam  já a palavra também. Jamais,   contudo,    haviam discutido uma  codificação assim como jamais haviam   tido    a mais mínima experiência  alfabetizando alguém.
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Em  cada tarde do curso com duas horas de trabalho    com os 25    participantes, quatro candidatos assumiam a direção    dos debates. Os    responsáveis pelo curso assistiam em silêncio,    sem interferir,    fazendo suas notas. No dia seguinte, no seminário de    avaliação de    formação, de quatro horas, se discutiam    os equívocos, os erros e os    acertos dos candidatos, na presença    do grupo inteiro,  desocultando-se   com eles a teoria que se achava na sua prática.
Dificilmente se repetiam os erros e os equívocos    que haviam sido cometidos e analisados. A teoria emergia molhada da prática    vivida.
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Foi  exatamente numa das tardes de formação    que, durante a   discussão de  uma codificação que retratava    Porto Mont, com suas   casinhas alinhadas  à margem da praia, em frente    ao mar, com um   pescador que deixava seu  barco com um peixe na mão, que    dois dos   participantes, como se  houvessem combinado, se levantaram, andaram      até a janela da escola em  que estávamos e olhando Porto Mont lá      longe, disseram, de frente  novamente para a codificação que   representava    o povoado: "É. Porto  Mont é assim e não sabíamos".
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Até  então, sua "leitura" do lugarejo,    de seu mundo particular,   uma  "leitura" feita demasiadamente próxima do    "texto", que era o   contexto  do povoado, não lhes havia permitido ver Porto Mont   como ele  era. Havia uma certa "opacidade" que cobria e encobria Porto      Mont. A  experiência que estavam fazendo de "tomar distância" do      objeto, no  caso, da codificação de Porto Mont, lhes possibilitava    uma nova leitura mais fiel ao "texto", quer dizer, ao contexto de Porto    Mont. A "tomada de distância" que a "leitura" da codificação    lhes possibilitou os aproximou  mais de Porto Mont como "texto" sendo    lido. Esta nova leitura refez a    leitura anterior, daí que hajam dito:    "É. Porto Mont é assim e não    sabíamos". Imersos na realidade de seu pequeno mundo, não eram capazes de vê-la. "Tomando    distância" dela, emergiram e, assim, a viram como até então    jamais a tinham visto.
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Estudar é desocultar, é ganhar    a compreensão mais exata   do objeto, é perceber suas relações    com outros objetos.  Implica que o   estudioso, sujeito do estudo, se arrisque,    se aventure,  sem o que   não cria nem recria.
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Por isso também é que ensinar não pode ser um puro processo,   como tanto tenho dito, de  transferência    de conhecimento do   ensinante ao aprendiz. Transferência  mecânica    de que resulte a   memorização maquinal que já critiquei.     Ao estudo crítico corresponde   um ensino igualmente crítico que     demanda necessariamente uma forma   crítica de compreender e de realizar     a leitura da palavra e a   leitura do mundo, leitura do contexto.
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A  forma crítica de compreender e de realizar    a leitura da palavra   e a  leitura do mundo está, de um lado, na não    negação da linguagem    simples, "desarmada", ingênua, na sua    não desvalorização por    constituir-se de conceitos criados    na cotidianidade, no mundo da    experiência sensorial; de outro, na recusa ao que se chama de    "linguagem difícil", impossível, porque desenvolvendo-se    em torno de    conceitos abstratos. Pelo contrário, a forma crítica    de  compreender e   de realizar a leitura do texto e a do contexto não  exclui    nenhuma  da  duas formas de linguagem ou de sintaxe.  Reconhece, todavia, que o      escritor que usa a linguagem científica,  acadêmica, ao dever procurar      tornar-se acessível, menos fechado,  mais claro, menos difícil,     mais  simples, não pode ser simplista.
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Ninguém  que lê, que estuda, tem    o direito de abandonar a leitura   de um texto  como difícil porque não    entendeu o que significa, por   exemplo, a  palavra epistemologia.
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Assim  como um pedreiro não pode prescindir    de um conjunto de   instrumentos  de trabalho, sem os quais não levanta    as paredes da   casa que está  sendo construída, assim também    o leitor estudioso   precisa de  instrumentos fundamentais, sem os quais não    pode ler ou   escrever com  eficácia. Dicionários (
2),       entre eles o etimológico, o de regimes de verbos, o de regimes de    substantivos    e adjetivos, o filosófico, o de sinônimos e de    antônimos,    enciclopédias. A leitura comparativa de texto, de outro    autor que trate    o mesmo tema cuja linguagem seja menos complexa.
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Usar  esses instrumentos de trabalho não    é, como às vezes se   pensa, uma  perda de tempo. O tempo que eu    uso quando leio ou escrevo   ou escrevo e  leio, na consulta de dicionários    e enciclopédias, na   leitura de  capítulos, ou trechos de livros    que podem me ajudar na   análise mais  crítica de um tema — é tempo fundamental de meu trabalho, de meu ofício gostoso de    ler ou de escrever.
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Enquanto  leitores, não temos o direito    de esperar, muito menos de   exigir, que  os escritores façam sua tarefa,    a de escrever, e quase  a  nossa, a de  compreender o escrito, explicando a cada    passo, no   texto ou numa  nota ao pé da página, o que quiseram dizer    com isto ou   aquilo. Seu  dever, como escritores, é escrever simples, escrever    leve, é facilitar e não dificultar a compreensão    do leitor, mas não dar a ele as coisas feitas e prontas.
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A  compreensão do que se está lendo,    estudando, não estala assim,   de  repente, como se fosse um milagre. A    compreensão é trabalhada, é    forjada, por quem lê,    por quem estuda que, sendo sujeito dela, se    deve instrumentar para melhor fazê-la.    Por isso mesmo, ler, estudar, é um trabalho paciente, desafiador,    persistente.
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Não  é tarefa para gente demasiado    apressada ou pouco humilde que,   em  lugar de assumir suas deficiências,    as transfere para o autor  ou   autora do livro, considerado como impossível    de ser estudado.
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É  preciso deixar claro, também,    que há uma relação necessária   entre o  nível    do conteúdo do livro e o nível da atual formação    do   leitor.  Estes níveis envolvem a experiência intelectual do autor    e   do leitor.  A compreensão do que se lê tem que ver com essa relação.      Quando a  distância entre aqueles níveis é demasiado grande,     quanto  um não tem  nada que ver com o outro, todo esforço em busca     da compreensão é inútil. Não está    havendo, neste caso, uma  consonância entre o   indispensável tratamento    dos temas pelo autor  do livro e a capacidade   de apreensão por parte do    leitor da  linguagem necessária àquele   tratamento. Por isso mesmo    é que  estudar é uma preparação para   conhecer, é    um exercício paciente e  impaciente de quem, não   pretendendo tudo    de uma vez, luta para fazer a vez de conhecer.
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A  questão do uso necessário de    instrumentos indispensáveis à   nossa  leitura e ao nosso trabalho    de escrever levanta o problema do   poder  aquisitivo do estudante e das professoras    e professores em   face dos  custos elevados para obter dicionários básicos    da língua,   dicionários  filosóficos etc. Poder consultar    todo esse material é um   direito que  têm alunos e professores a    que corresponde o dever das   escolas de  fazer-lhes possível a consulta,    equipando ou criando  suas   bibliotecas, com horários realistas de estudo.    Reivindicar  esse   material é um direito e um dever de professores e estudantes.
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Gostaria  de voltar a algo a que fiz referência    anteriormente: a   relação entre  ler e escrever, entendidos como    processos que não se   podem separar.  Como processos que se devem organizar    de tal modo que   
ler e 
escrever sejam percebidos como necessários    para algo, como sendo alguma coisa de que a criança, como salientou Vygotsky    (
3), necessita e nós também.
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Em  primeiro lugar, a oralidade precede a grafia    mas a traz em si   desde o  primeiro momento em que os seres humanos se tornaram      socialmente  capazes de ir exprimindo-se através de símbolos que      diziam algo de  seus sonhos, de seus medos, de sua experiência social,      de suas  esperanças, de suas práticas.
Quando aprendemos a ler,  o fazemos sobre    a escrita de   alguém que antes aprendeu a ler e a  escrever. Ao aprender    a ler, nos   preparamos para imediatamente  escrever a fala que socialmente   construímos.
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Nas  culturas letradas, sem ler e sem escrever,    não se pode   estudar,  buscar conhecer, apreender a substantividade do    objeto,   reconhecer  criticamente a razão de ser do objeto.
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Um dos equívocos que cometemos está    em dicotomizar ler de escrever,    desde o começo da experiência    em que as crianças ensaiam seus    primeiros passos na prática da    leitura e da escrita, tomando esses    processos como algo desligado do processo    geral de conhecer. Essa    dicotomia entre ler e escrever nos acompanha sempre,    como estudantes e    professores. "Tenho uma dificuldade enorme de fazer minha       dissertação. Não sei escrever", é a afirmação    comum que se    ouve nos cursos de pós-graduação de que tenho    participado. No fundo,    isso lamentavelmente revela o quanto nos achamos longe    de uma    compreensão crítica do que é estudar e do que é    ensinar.
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É  preciso que nosso corpo, que socialmente    vai se tornando   atuante,  consciente, falante, leitor e "escritor" se aproprie      criticamente de  sua forma de vir sendo que faz parte de sua natureza,   histórica    e  socialmente constituindo-se. Quer dizer, é necessário   que não    apenas  nos demos conta de como estamos sendo mas nos   assumamos plenamente com     estes "seres programados, mas para   aprender", de que nos fala François     Jacob (
4).    É necessário,    então, que aprendamos a aprender, vale dizer, que    entre outras coisas,    demos à linguagem oral e escrita, a seu uso, a    importância que    lhe vem sendo cientificamente reconhecida.
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Aos  que estudamos, aos que ensinamos e, por isso,    estudamos   também, se  nos impõe, ao lado da necessária leitura    de textos, a   redação de  notas, de fichas de leitura, a redação    de pequenos textos   sobre as  leituras que fazemos. A leitura de bons escritores,    de   bons  romancistas, de bons poetas, dos cientistas, dos filósofos que      não  temem trabalhar sua linguagem a procura da boniteza, da   simplicidade    e  da clareza (
5).
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Se  nossas escolas, desde a mais tenra idade de    seus alunos se    entregassem ao trabalho de estimular neles o gosto da leitura    e o da    escrita, gosto que continuasse a ser estimulado durante todo o tempo       de sua escolaridade, haveria possivelmente um número bastante menor  de      pós-graduandos falando de sua insegurança ou de sua incapacidade      de  escrever.
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Se estudar, para nós, não fosse    quase sempre um fardo,    se ler não fosse uma obrigação    amarga a cumprir, se, pelo contrário,    estudar e ler fossem fontes de    alegria e de prazer, de que resulta    também o indispensável conhecimento    com que nos movemos melhor no    mundo, teríamos índices melhor reveladores    da qualidade de nossa    educação.
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Este é um  esforço que deve começar    na pré-escola, intensificar-se   no período da  alfabetização    e continuar sem jamais parar.
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A  leitura de Piaget, de Vygotsky, de Emilia Ferreiro,    de Madalena   F.  Weffort, entre outros, assim como a leitura de especialistas     que   tratam não propriamente da alfabetização mas do processo    de  leitura   como Marisa Lajolo e Ezequiel T. da Silva é de indiscutível       importância.
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Pensando na  relação de intimidade    entre pensar, ler e escrever e   na necessidade  que temos de viver intensamente    essa relação,   sugeriria a quem  pretenda rigorosamente experimentá-la    que, pelo   menos, três vezes por  semana, se entregasse à tarefa    de escrever   algo. Uma nota sobre uma  leitura, um comentário em torno    de um   acontecimento de que tomou  conhecimento pela imprensa, pela televisão,      não importa. Uma carta  para destinatário inexistente. É      interessante datar os pequenos  textos e guardá-los e dois ou três      meses depois submetê-los a uma  avaliação crítica.
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Ninguém escreve se não escrever,    assim como ninguém nada se não nadar.
Ao  deixar claro que o uso da linguagem escrita,    portanto o da   leitura,  está em relação com o desenvolvimento    das condições   materiais da  sociedade, estou sublimando que minha    posição não é idealista.
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Recusando qualquer interpretação    
mecanicista da História, recuso igualmente a 
idealista.       A primeira reduz a consciência à pura cópia das estruturas       materiais da sociedade; a segunda submete tudo ao todo poderosismo da    consciência.    Minha posição é outra. Entendo que estas relações       entre consciência e mundo são dialéticas (
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O  que não é correto, porém,    é esperar que as transformações   materiais  se processem    para que depois comecemos a encarar   corretamente o  problema da leitura e da    escrita.
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A leitura crítica dos textos e do mundo    tem que ver com a sua mudança em processo.
Notas
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1  Sobre    codificação, leitura do mundo-leitura da palavra-senso    comum-conhecimento    exato, aprender, ensinar, veja-se: Freire, Paulo: 
Educação       como prática da liberdade — Educação e mudança    — Ação cultural    para a liberdade — Pedagogia do oprimido    — Pedagogia da esperança, Paz e Terra; Freire & Sérgio    Guimarães, 
Sobre educação, Paz e Terra; Freire &    Ira Schor, 
Medo e ousadia, o cotidiano do educador, Paz e Terra; Freire    & Donaldo Macedo, 
Alfabetização, leitura do mundo e leitura    da palavra, Paz e Terra; Freire, Paulo, 
A importância do ato de    ler, Cortez. Freire & Márcio Campos; 
Leitura do mundo —    Leitura da palavra, 
Courrier de L'Unesco, fev. 1991.
 2 Ver    Freire, Paulo. 
Pedagogia da esperança — um reencontro com a Pedagogia    do oprimido, Paz e Terra, 1992.
 3 Vygotsky    and education. Instructional implications and applications of sociohistorical    psychology. Luis C. Moll (ed.), Cambridge University Press, First paper    back edition, 1992.
 4 François    Jacob, Nous sommes programmés mais pour aprendre. 
Le Courrier de L'Unesco,    Paris, fev. 1991.
 5 Ver    Freire, Paulo, 
Pedagogia da esperança, Paz e Terra, 1992.
 
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Esta carta foi retirada do livro Professora    sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar  (Editora Olho D'Água,    10ª ed., p. 27-38) no qual Paulo Freire    dialoga sobre questões da    construção de uma escola democrática e    popular. Escreve    especialmente aos professores, convocando-os ao    engajamento nesta mesma luta.    Este livro foi escrito durante dois    meses do ano de 1993, pouco tempo depois    de sua experiência na    condução da Secretaria de Educação    de São Paulo.