19/10/2013

O projeto de educação e os seus interesses

Vamos ser claros? As Organizações Globo têm muito interesse no governo Eduardo Paes. A postura conservadora e constrangedoramente oscilante dos programas de notícia e jornais ligados a esse grupo em relação às manifestações que tomam o país desde junho já foi suficientemente comentada. Mas o risco que os veículos das Organizações Globo aceitaram correr após a criminosa ação dos governos do município e do estado do Rio de Janeiro contra os professores e a população que os apoiava, destoando de todos os outros jornais e programas de notícias, merece uma atenção especial.


Poderíamos começar pelo exemplo mais simples. No domingo, 29 de setembro, a edição do dia seguinte à violenta ação da Polícia Militar que expulsou os professores que ocupavam a Câmara Municipal trazia um caderno especial do “O Globo projetos de marketing” sobre a prefeitura do Rio de Janeiro. Com a chamada “Rio em transformação”, o caderno de oito páginas apresentava um conjunto de informações “apuradas” pela empresa Link Comunicação Integrada sobre as melhorias e os projetos futuros (de melhoria, claro) da cidade maravilhosa sob a gestão de Eduardo Paes. Como a edição de domingo do Globo vai às ruas ainda no sábado, na parte jornalística (não publicitária) do jornal não havia sequer uma linha sobre a violência da noite anterior.

Mas, no caso da greve dos professores, suponho que exista algo mais importante do que a venda de publicidade. De acordo com a avaliação do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe-RJ), amparado por vários outros pesquisadores e militantes da área de educação, o Plano de Carreira, Cargos e Salários proposto pela prefeitura não é recusado pela categoria apenas por ser desfavorável economicamente. Partindo de uma pauta corporativa, como não poderia deixar de ser em se tratando de um sindicato, a luta dos professores do Rio tem ido além dela, propondo uma discussão sobre a qualidade e a concepção de educação que têm orientado as políticas públicas – e essa é mais uma das razões da adesão e simpatia do conjunto da população à causa. Ocorre que o projeto de educação da prefeitura do Rio incorpora, entre outras coisas, a lógica e a prestação de serviços – paga, diga-se de passagem – do setor privado. E as Organizações Globo têm ganhado muito com isso.

Interesse empresariais

Prova de que a pauta não é apenas corporativa é o destaque que o movimento tem dado à questão da chamada polivalência, um dos itens do Plano segundo o qual um mesmo professor pode dar aula de mais de uma disciplina. Alterada por emendas votadas pela Câmara, essa prática teria, segundo o próprio Globo, ficado “restrita a projetos experimentais e em áreas comuns: um professor de história, geografia ou português dá aulas conhecidas como humanidades”. É preciso checar o teor do texto final, após as emendas, mas vale destacar que projetos “experimentais” como esses que agora são formalizados num plano de carreiras já são desenvolvidos no município do Rio, contando com a parceria do Instituto Ayrton Senna, a metodologia e o material didático produzido pela Fundação Roberto Marinho (FRM) – aquela mesma que pertence às Organizações Globo. Desde 2010, um programa chamado Autonomia Carioca utiliza o telecurso para “promover a aceleração de estudos e corrigir a defasagem idade-série de alunos entre 14 e 18 anos dos 7º e 8º anos do ensino fundamental”, como explica o site da FRM.

Como descrevi em “Educação pública, lógica privada“, hoje, o programa é voltado para alunos repetentes, que são destacados do seu grupo de origem e reunidos em uma única turma, com funcionamento diferente do resto da escola. Os alunos estudam com um material específico, composto de livros e vídeos produzidos pela Fundação Roberto Marinho, com um professor que, devidamente “treinado”, apenas aplica a metodologia, podendo “responder” por todas as disciplinas. Esse programa, hoje, é usado para “acelerar” a aprendizagem dos alunos considerados “atrasados”. O material mágico, que permite que um único professor dê aula de todas as disciplinas, é vendido para a secretaria municipal de educação. Como instituição sem fins lucrativos que é, a Fundação Roberto Marinho não vende o material – apenas indica as três editoras autorizadas a comercializá-lo – mas tampouco disponibiliza os livros para consulta ou download no seu site, por exemplo. Utilizado não só no Rio de Janeiro mas em vários outros municípios e legitimado pelo Ministério da Educação, o telecurso foi criado para a educação de jovens e adultos, como explica o seu próprio site, mas tem sido adotado na educação de crianças. Além de mobilizar um importante mercado editorial, em que empresas lucrativas retroalimentam a “boa ação” das instituições sem fins lucrativos, essas práticas substituem o professor, trazendo outras referências para a sala de aula. Como opina o professor Roberto Leher, da Faculdade de Educação da UFRJ, na reportagem já citada: “O objetivo de fundo é que as escolas públicas recebam um pouco do espírito capitalista.” Não se trata de um projeto ou uma instituição: o que está em jogo é o esforço de se abrir a porteira para uma política de educação que interessa diretamente a grandes grupos empresariais reunidos no movimento Todos pela Educação, do qual as Organizações Globo fazem parte.

Até as ruas perderem a paciência

A entrevista que o prefeito Eduardo Paes deu ao RJTV sobre o assunto foi amplamente utilizada pelos telejornais da Globo para desconstruir as reclamações do Sepe. Numa edição no mínimo questionável, em que aparecia primeiro a crítica da representante do Sepe e depois, como palavra final, sem ‘tréplica’, a resposta do prefeito, a emissora permitiu que os telespectadores entendessem que a preocupação do sindicato com essa questão era equivocada, já que, segundo Paes, só os professores que quisessem adeririam ao esquema da polivalência. Reduzido a uma queixa corporativa, de modo que ninguém teve a ideia de perguntar o que isso significa para a qualidade da educação que o aluno está recebendo, o problema parecia resolvido.

O jornalistas esqueceram foi que, semanas antes, o mesmo prefeito, em entrevista ao jornalista Ricardo Boechat, na rádio Band News, se disse surpreso quando foi perguntado sobre a situação de um professor de geografia que tinha que dar aulas também de história e português, e respondeu que era “inadequado” um professor dar aula de outra disciplina que não a sua. É no mínimo curioso que, tão pouco tempo depois de descobrir, estupefato, que uma prática como essa acontecia na rede, o prefeito a tenha incorporado, formalmente, como item do plano de carreiras proposto para os professores. Mas os jornalistas da Globo, tão profissionais e experientes, não perceberam tamanha incoerência. E o que é pior: não são manipuladores, são maus profissionais, estrelas televisivas disfarçadas de jornalista.

Outra entrevista pingue-pongue com o prefeito, agora com o projeto já aprovado, foi publicada no jornal O Globo do dia 2 de outubro. Um dia após a violência física da polícia sobre os manifestantes e a violência política do prefeito e seus vereadores na votação autoritária de um plano que a categoria rejeitava e sobre o qual não foi consultada, a edição impressa e online chegou a ser intrigante. O Sepe-RJ não teve coluna nem entrevista pingue-pongue, mas ganhou um espaço importante, numa matéria que ‘denunciava’ que parte de seus dirigentes tem vinculação com o PSOL e o PSTU e, por isso, a greve seria liderada por esses partidos.


Para compensar, num esforço de neutralizar as críticas, promover o seu compromisso com a informação e se disfarçar de Mídia Ninja, a Globo divulgou imagens exclusivas de um policial forjando uma cena em que um manifestante portava um morteiro. Denúncia feita, respira-se aliviado e dorme-se tranquilo com o bom jornalismo investigativo: um policial, bode expiatório de um lado, como os Black blocs têm sido do outro, é condenado em nome dos governos do estado e do município. E a violência, física e política, fica sendo resultado do mau comportamento individual de sujeitos descontrolados. Vida que segue. Pelo menos até o próximo protesto. Ou até as ruas perderem a paciência.

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Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em serviço social
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18/10/2013

Grupo de Trabalho Nacional de Universidade Popular reunir-se-á novamente para apontar lutas



Com base na discussão estratégica da Universidade Popular, vem-se elaborando bandeiras de luta específicas e gerais que tem por objetivo construir um amplo movimento nacional de luta pela universidade popular. Nesse sentido, o GTNUP tem um sentido mediador, pois é a ponte entre as lutas dispersas e o movimento nacional que ainda está para ser consolidado. O grande desafio está na constituição de ações práticas que acumulem forças para a ofensiva do movimento universitário. O GTNUP não é uma nova entidade ou organização política. A criação do GTNUP tem a função de manter coeso o grupo de organizadores e participantes do SENUP, para colocar em prática as diretrizes debatidas e aprovadas coletivamente.

Na terceira reunião, que ocorreu em Goiânia em Novembro de 2012, iniciamos um processo de formulação de campanhas e lutas importantes. Na ocasião, formulamos o eixo de luta pela “Produção de Conhecimento para o povo” e contra o PL 2177 – Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que resultou na primeira cartilha do GTNUP: (disponível em: http://gtnup.files.wordpress.com/2013/07/cartilha.pdf). Também nessa reunião, deliberamos sobre a importância do envolvimento de cada grupo local de luta pela universidade popular na campanha contra a EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares).

Agora, na quarta reunião, pretende-se estender os debates e as lutas para outros campos: democracia universitária e extensão popular. Nesse caminho, de análise e apontamentos concretos para a luta, vamos edificando o movimento por uma universidade popular, que deve ser construído em cada espaço de atuação, seja universitário ou popular.

O método de trabalho do GTNUP tem sido o de debates plurais e horizontais, onde nos orientamos exclusivamente pela via do consenso entre as organizações componentes, entidades e militantes. A unidade do GTNUP é produto de um longo processo de maturação política, na qual uma estratégia comum de disputa da universidade tem sido partilhada pelo mesmo campo político de militantes, organizações e entidades.

Neste espaço buscamos compreender a universidade popular como a estratégia necessária para a reorganização do movimento universitário a nível nacional e a partir da base, ou seja, de “baixo para cima”, direcionando as nossas tarefas imediatas no movimento para o horizonte mais amplo de universidade que consiga romper com o domínio do capital e produza conhecimento com e para o povo brasileiro. Essa compreensão abre possibilidades de acúmulo organizativo e ideológico para o movimento, já que cria a necessidade de travar permanentemente essas lutas em novas formas, com mais fôlego e organização formando um bloco ofensivo.

Essa estratégia leva em consideração o entendimento de que hoje lutar pela universidade pública, gratuita e de qualidade se tornou limitado para traçar um horizonte de superação da situação atual. É claro que defender e aprofundar o seu caráter público é fundamental. No entanto, a situação colocada exige que identifiquemos os sujeitos da transformação da universidade – que só se transformará ligada a uma ampla luta social – ou seja, os trabalhadores e os setores populares explorados e oprimidos pelo bloco de poder dominante.

Nesta atividade reuniremos estudantes, docentes, servidores técnico-administrativos e movimentos sociais. A programação inicial é a seguinte:

Dia 18, sexta-feira:

18h – Análise de conjuntura e avaliação da nossa articulação.

Dia 19, Sábado:

9h – Democracia e extensão popular.

14h – Organização interna do GTNUP – carta de princípios.

Dia 20, Domingo:

9h – organização do 2º Seminário Nacional de Universidade Popular

Todos militantes, organizações, movimentos, entidades, estudantes, professores e técnicos, dispostos a luta e construir o projeto da universidade popular estão mais do que convidados.

Criar, criar, Universidade Popular!

Grupo de Trabalho Nacional de Universidade Popular


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17/10/2013

DE DERROTA EM DERROTA

No batido roteiro do poder constituído, a velha e parte da nova mídia, quando não ficam no mais completo silêncio, trazem sempre o mesmo enredo. Qualquer ato político que saia minimamente do domínio oligárquico “tradicional” será desqualificado


50 mil pessoas defendendo a educação no Rio e só se fala em quebra-quebra, destruição, “porrada, tiro e bomba”.

Pelo que lutavam mesmo? Irrelevante.

Não interessa que o prefeito tenha ignorado por completo as demandas dos profissionais da educação e ainda que tenha dito que os “professores não sabem fazer contas“, o importante é o ônibus incendiado, os prédios destruídos e a manifestação-espetáculo dos denominados blocos de preto.

Não interessa que, dias antes, a polícia, sob o comando do governo estadual, tenha feito o que mais sabe e tenha reprimido duramente os professores, sem que qualquer “baderneiro” tivesse iniciado o confronto.

Quem eram mesmo os supostos baderneiros? Irrelevante.

Não interessa que não só professores estivessem lá – pois havia bancários, bombeiros, estudantes secundaristas e universitários, além de muitos simpatizantes da justa causa dos profissionais da educação. Até artistas e grupos musicais vieram enriquecer a manifestação. Mas o foco de todas as capas dos jornais é o ônibus em chamas, os vidros quebrados e a destruição.

Qual era a pauta dessa greve mesmo? Irrelevante.

No batido roteiro do poder constituído, a velha e parte da nova mídia, quando não ficam no mais completo silêncio, trazem sempre o mesmo enredo: arruaceiros, vândalos e marginais estragaram uma manifestação legítima, a festa democrática. Ninguém se lembra do que a imprensa dizia dos grevistas, “agitadores”, sindicalistas – os “comunalhas” de sempre - a destruir a Rio Branco depois da escandalosa privatização da Vale do Rio Doce em 1997? Não foi o MST taxado em capa de revista como baderneiro, raivoso ou coisa pior? Não chamaram o estancieiro João Goulart de “comunista” e “subversivo” apenas por ser um trabalhista tradicional?

Nos discurso do poder constituído, qualquer ato político que saia minimamente do domínio oligárquico “tradicional”, que venha a incomodar o seu poder, será desqualificado. São vândalos, irresponsáveis e desordeiros.

Sempre foi assim.

Se há greve nos ônibus vão mostrar o coitado que não pode chegar no trabalho por causa de uns “sindicalistas egoístas”; se é greve de professor, a manchete é sobre alunos prejudicados por aproveitadores cooptados por sindicatos partidários e tendenciosos e sobre famílias prejudicadas porque o pai ou a mão ou a avó teve de cuidar das crianças que estavam sem aula; se é pela descriminalização das drogas, o tom é de “maconheiros filhos de papai que só querem fumar sua erva em Ipanema sem serem incomodados”; se são camponeses lutando por pequeno espaço para plantar no campo, num país com colossal concentração de terras, não passam de “vagabundos ocupantes”, terroristas invasores; se a manifestação fecha uma rua, vão indubitavelmente enfatizar o “direito de ir e vir” dos outros, colocando que é “ditatorial” fechar ruas em protesto.

Enfim, o posterior “avacalhamento” público, distorção e “manipulação” das manifestações pela mídia (incluindo governo) é, certamente, a única regra que se deve tomar como verdadeira ao se expressar nas ruas. A desqualificação de greves, ocupações, manifestos e claro, protestos violentos ou não, é a principal e mais eficaz arma de desmobilização e desarticulação de qualquer manifestação , independente da causa e do número de manifestantes.

Portanto, se a regra é a desqualificação posterior em massa, algumas considerações fundamentais devem ser feitas quanto à atuação popular em manifestações.

Muitos concordaram que, nos idos de junho, houve de fato a necessidade simbólica de “quebrar tudo” como demonstração clara e evidente de descontentamento com a ordem vigente.

O vandalismo [de junho] representou algo há algumas décadas esquecida por nossa população: “a quebra real do paradigma da “inviolabilidade” do Estado e da – ainda que temporária – quebra do seu monopólio do uso da violência legítima. Quebrou o monopólio da violência de forma política, muito diferente dos Estados Paralelos, formados por traficantes em regiões de fronteira, dentro das grandes cidades que não tem pretensão política e ideológica.” (citado pelo autor em “Vandalismo e Ruptura”)

Então, na ocasião, praticamente todos os lados apoiaram e exaltaram as manifestações espontâneas pelo país todo, as quais culminaram nos atos de destruição de 17 e 20 de junho por todo o país, seja a esquerda jovem deslumbrada com o “gostinho” de revolução deixado no ar enfumaçado, seja a direita oportunista de plantão querendo usar o momento para derrubar o atual poder que detesta, passando pelos “coxinhas” apolíticos em geral, inconscientemente nas ruas “contra tudo que está aí” sem saber exatamente o que defendem.

Enfim veio outubro e apresentaram-se fatos diferentes.

Dando sequência ao violento “despejo” dos professores manifestantes que ocupavam a Câmara do Rio, ocorreu uma grande manifestação de professores no dia 1 de outubro, também seguida por ação violentíssima dos policiais. No esquema do “foi mal fessor“, a polícia desavergonhada de Sérgio Cabral e Eduardo Paes perdeu o pudor e reprimiu como nunca uma das categorias mais sofridas do país, causando indignação nacional e alimentando o fogo da grande manifestação do dia 7 de outubro, em situação semelhante ao ocorrido em junho, quando da excessiva repressão da PM paulista ao Movimento Passe-Livre.

O fato novo apresentado por essa manifestação do dia 1 de outubro foi a atuação expressiva do bloco negro (black bloc). Como muitos presenciaram, os membros do bloco negro foram fundamentais para segurar a ação policial e desviar a atenção da violenta polícia cabralina, dando tempo para que as inúmeras senhorinhas idosas e mulheres, componentes numerosos e mais frágeis entre os professores manifestantes, fugissem dos cassetetes, nuvens de gás e pólvora causadas – neste dia – exclusivamente pela ação policial. Foi a primeira vez que, visivelmente, o black bloc remontou a sua origem alemã e colaborou efetivamente com outros núcleos políticos, no caso, o sindicato dos professores, fortalecendo todo o movimento naquela ocasião. Não foi por acaso que, após o dia 1° de outubro, os professores e boa parte da esquerda tenham passado a defendê-los publicamente. “Black bloc é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo” era um grito que se ouvia no dia 7.

Mas 50 mil pessoas foram às ruas e só se fala em destruição.

Dia 7 de outubro, segunda-feira chuvosa no Rio de Janeiro. A manifestação foi incrível. A pauta específica era o repúdio ao plano de carreira da educação do Eduardo Paes, mas a pauta geral era a melhoria da educação brasileira. Milhares de pessoas, entre professores, bombeiros, artistas, bancários, universitários, secundaristas e simpatizantes. Milhares de mensagens, faixas, cartazes, gritos e cantoria em protestos variados em torno da educação. Até mesmo a UNE-UBES e o PCdoB superaram sua agorafobia adquirida nos últimos anos e estavam lá com suas solitárias bandeiras a engrossar o caldo.

E então, após belíssima marcha pela Avenida Rio Branco, chega-se à Cinelândia. Vale notar que, lembrando muito o evento do dia 17 de junho, a ausência de policiamento efetivo para uma manifestação daquele tamanho só fez crescer a confiança da linha de frente, aumentando a suspeita da tática “terra arrasada” por parte da PM. Certo tempo de gritaria e protesto em frente à Casa do Povo e começa o ritual destrutivo do fronte exaltado e juvenil. Rojões e malvinas contra bancos e, claro, contra a própria Câmara.

No fundo não importa muito quem começou, pois o enredo seria o mesmo, já conhecido de todos.

Que tenha sido um revide, um ataque preemptivo ou uma reação espontânea, a linha de frente das manifestações de sua parte, fez chover bombas, rojões, malvinas, pedras, artefatos caseiros, molotovs e tudo mais que a ritualística de confronto com a polícia tem apresentado. Os dois lados, cedo ou tarde, estavam bem agressivos, e não demorou para que a polícia, mesmo pouco numerosa, avançasse gradativamente na “retomada do território”. Então, em meia hora, a grande manifestação foi dispersada, e surgiram pequenos focos resistentes e radicais espalhados pelo Centro e adjacências. O grosso restante, com suas bandeiras e faixas, voltava para casa sob fortíssima chuva.

Porém, independente dos sentimentos sobre o bloco negro ou até mesmo da justeza de algumas suas práticas – parafraseando Brecht, “O que é uma vidraça de banco diante da criação de um banco?” -, é difícil negar que o “ritual destrutivo” ofensivo, como apresentado no dia 7 de outubro, esteja claramente servindo mais para reforçar o esvaziamento completo das manifestações, especialmente no sentido ideológico-propagandístico, do que para disseminar qualquer apelo por mudanças ou mesmo para angariar mais simpatizantes. A julgar pela capa da maioria dos jornais, pelos editoriais, pelas opiniões propagadas e repercutidas aos montes nas ruas e redes sociais, a velha fórmula de desqualificação já está a pleno vapor.

Como disse Márcio Saraiva: “[e]xiste algo que foge ao nosso controle. A ciência política chama de consequências não-intencionais de uma ação racional. Em outras palavras, a ação é racionalmente correta, lógica, tem um sentido A, mas sem desejar, acaba alcançando um objetivo não desejado que é Y.”

Assim, por mais que seja plenamente justificável e até louvável que parte não ignorável da população esteja reagindo agressivamente à opressão cotidiana e violenta do Rio de Janeiro, dando um “basta” real e contundente – e não apenas uma abracinho na Lagoa -, as consequências do basta podem ser desastrosas no médio e longo prazo.

50 mil na rua e só se fala em “vandalismo e depredação”.

Seja pelas muitas testemunhas que viram com receio a ação direta dos black blocs mais como “ataque” do que como “revide” contra a repressão da polícia; ou, ainda mais importante, seja pelo evidente enfoque que todo o aparato midiático e governista já está dando na desqualificação das manifestações em “vandalismo”, buscando uma vitimização da polícia e do governo local, a ação violenta dos black blocs e simpatizantes está produzindo exatamente os resultados previstos no enredo tradicional: esvaziamento das pautas e a criminalização das manifestações radicais. E seria bastante ingênuo subestimar o poder de formação de consenso do aparelho midiático alinhado ao aparelho estatal aliado.

É fundamental lembrar que, tão ou mais importante do que o fato em si, é como o fato é interpretado e repercutido pelos agentes do seu tempo.

Sem uma base ideológica e propagandística e sem objetivos claros, a violência simbólica da destruição disruptiva, será capturada por quem bem conseguir fazê-lo, dando-lhe o caráter que quiser, positivo ou negativo. E, em geral, infelizmente será usada para os fins mais retrógrados possíveis. Enquanto voam pedras e foguetinhos contra a polícia, retornam porrada, tiro e bomba.

Se vão ao chão agências bancárias, pontos de ônibus e latas de lixo, o que retorna são leis anti-terrorismo, prisões arbitrárias, presunção de culpa e Lei de Segurança Nacional. Sem saber exatamente o que se pretende construir, a destruição pode apenas abrir caminho para outros que sabem exatamente o que querem e não terão escrúpulos em usar todos os agentes possíveis para seu fim.

Além disso, do ponto de vista do confronto em si, é importante lembrar o estrategista Sun Tsu: se nossos adversários e inimigos vêm com verdadeiros exércitos armados, cães e bombas, enquanto nós só temos palavras de ordem, fogos de artifício e muita disposição, nós já perdemos essa batalha. A arma da crítica não supera a crítica das armas, diria outro. Nesse cenário, mesmo que se soubesse exatamente o que fazer depois, é impossível tomar à força a Câmara ou a ALERJ, quiçá o Palácio do Planalto ou qualquer símbolo de comando do governo. Não há a remota possibilidade de isso ocorrer no contexto atual. Além do mais, cabe questionar se isso é desejado: destruir os símbolso de poder, como tomar os espaços de poder, sem um projeto do que ou quem colocar no seu lugar resulta num empreendimento estéril e sem sentido, que somente pavimenta, como dito, o caminho para aqueles que realmente têm um projeto e sabem onde querem chegar. Isso porque nem tem sido necessário ao Estado usar bala de verdade como ocorreu na Turquia e ocorre no Egito.

No contexto atual, a única possibilidade de vitória é a simbólica.

Por vitória simbólica compreende-se principalmente, o constrangimento público e a desmoralização das “verdades do poder constituído” como parte de um processo de tomada de consciência e educação política da população que, envergonhada de sua passividade, (re)descobre sua voz e constrói sua contra-hemegonia em relação ao poder que a domina. O “constrangimento educativo” e a desmoralização aparecem ao tornar evidentes algumas grandes contradições inerentes ao sistema capitalista que se pretende democrático e plural e forçam seus agentes a tomar medidas claramente antagônicas à sua imagem pública. Isto é, os agentes, constrangidos, são levados a tomar medidas claramente anti-constitucionais, a cometer rudezas jurídicas, a fazer apologia à repressão excessiva em plena democracia, a agir com autoritarismo em nome da “liberdade” e claro, a escancarar a promiscuidade das relações entre poder político e poder econômico, como ficou evidente no alinhamento da grande mídia com o governo Cabral-Paes e, claro, no vergonhoso desfecho da CPI dos Ônibus, mostrando que realmente o “Estado não passa de um comitê de negócios da classe dominante”.

Por fim, se bater em professores indefesos é um desastre político, como foi e ninguém em sã consciência política apoiaria a prática, bater em professores que dão suporte a “vândalos e baderneiros” é uma história completamente diferente. A deslegitimação específica dos black blocs busca, na verdade, esvaziar o geral das manifestações e, ao mesmo tempo, dar legitimidade à repressão indiscriminada, de “pacíficos ou não”. Assim, é fundamental que a posição violenta das manifestações surja sempre como revide, como resposta e, jamais, como ataque, como assalto e afronta planejada ao poder constituído, caso contrário acaba por esvaziar a manifestação, esconder as reivindicações e as pautas em fumaça e fogo. Elas não parecem constranger o real agressor, ao contrário, lhe dão motivos públicos suficientes para justificar a repressão que o poder queria desde o início.

No nosso contexto, portanto, a vitória simbólica é erguida em geral a partir de uma derrota física; se constrói ao fazer com que o poder constituído atue contra a opinião da população e contra sua própria opinião como poder representativo do povo, gerando mais e mais insatisfação e escancarando mais e mais contradições inerentes ao “capitalismo democrático”. O constrangimento público enfim, deslegitima o poder constituído e fortalece os seus antagonistas, reforça o ímpeto dos radicais, radicaliza os moderados e os “simpáticos à causa”, por fim, força a todos à politização, incluindo os “indiferentes” e “alienados”, algo que, justamente com a educação universal e séria (motivo das manifestações em questão), formam passos fundamentais para a conscientização da população e posição social no conflito de classes. Relembrando o velho chinês: “De derrota em derrota até a vitória final”.



*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve quinzenalmente para Pragmatismo Politico. (riorevolta@gmail.com)

Fonte: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/10/derrota-derrota.html

16/10/2013

O Estado e a violência


Por Mauro Iasi.

“Nosso objetivo final é a supressão do Estado,
isto é, de toda a violência, organizada e sistemática,
de toda coação sobre os homens em geral”
Lenin


A maior de todas as violências do Estado é o próprio Estado. Ele é, antes de tudo, uma força que sai da sociedade e se volta contra ela como um poder estranho que a subjuga, um poder que é obrigado a se revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento jurídico que legitime a opressão de uma classe sobre outra. Nas palavras de Engels é a confissão de que a sociedade se meteu em um antagonismo inconciliável do qual não pode se livrar, daí uma força que se coloque aparentemente acima da sociedade para manter tal conflito nos limites da ordem.

A ideologia com a qual o Estado oculta seu próprio fundamento inverte este pressuposto e o apresenta como o espaço que torna possível a conciliação dos interesses que na sociedade civil burguesa são inconciliáveis. A contradição existe no corpo da sociedade dividida por interesses particulares e individuais, enquanto o Estado, ao gosto de Hegel, seria o momento ético-politico, a genericidade como síntese da multiplicidade dos interesses. A este momento político universal se contrapõe o dissenso, a rebeldia, o desvio e este deve ser contido nos limites da ordem, do que resulta que todo Estado é o exercício sistemático da violência tornada legítima.

Desde Maquiavel que a teoria política moderna sabe que a violência não pode ser o instrumento exclusivo do Estado, o uso adequado da violência (para Maquiavel aquele que atinge o objetivo de conquistar e manter o Estado) deve ser combinado com as formas de apresentá-lo como legítimo, o que nos leva à síntese entre os momentos de coerção e consenso, a famosa metáfora maquiaveliana do leão e da raposa. Poderíamos dizer que a violência só é eficaz quando envolvida por formas de legitimação da mesma forma que os instrumentos de consenso pressupõem e exigem formas organizadas de violência. O leão e a raposa são igualmente predadores, suas táticas é que diferem.

A separação entre violência e consentimento, entre coerção e consenso, serve às vestes ideológicas que procuram apresentar o Estado como uma função necessária e incontornável da sociabilidade humana. Nesta leitura ideológica, uma vez constituída a sociabilidade sobre as formas consensuais expressas no ordenamento jurídico, nas normas morais e imperativos éticos aceitos e compartilhados, a violência fica como uma espécie de reserva de segurança para conter os casos desviantes. Assim, a violência é apresentada como exceção e o consentimento como cotidianidade. O Estado é a garantia que a violência será coibida.

Nada mais enganador. A violência é resultante da contradição inconciliável que fundamenta nossa sociabilidade e portanto ela é cotidiana, onipresente e inevitável. Ainda que disfarçada de formas não explícitas como nos consensuais procedimentos legais e fundamentos jurídicos, como valores morais ou formas aceitas de ser e comportar-se. Até Durkheim sabia disso quando afirmava que as formas de ser, agir e pensar são impostas coercitivamente e se não percebemos esta coerção nas formas cristalizadas como hábitos não é porque ela não exista, mas porque já foi realizada com eficiência.

Mesmo a violência explícita é cotidiana. Ela é explícita e invisível, se mostra para ocultar-se. No preconceito que segrega, na miséria que aparta, na polícia que prende, tortura e mata, na moradia que se afasta, nas portas que se fecham, nos olhares que se desviam. Na etiqueta de preço nas coisas feitas em mercadorias que proíbem o acesso ao valor de uso, no mercado de carne humana barata na orgia de valorização do valor, sangue que faz o corpo do capital manter-se vivo.

Mas ela também é explícita e visível. No tapa da cara do trabalhador na favela dado por um homem de farda e armado. Na fila de cara para o muro sendo apalpados, nos flagrantes forjados ou não, no saco de plástico na cabeça, na porrada, no chute na cara, no choque nos testículos. Na cabeça para baixo, olhos para o chão, mãos na cabeça, coração acelerado. Na humilhação de ser jogado no camburão, na delegacia, como carga de corpos violentados nos presídios, longe de direitos e mesmo de procedimentos elementares, muito longe de recursos e embargos infringentes.

Um doente aidético, chora em sua cama na enfermaria do antigo presídio do Carandiru e atrapalha o sono do agente penitenciário. É espancado em sua cama com um cano de ferro. O cano da arma na boca da criança que dorme nos degraus da igreja na Candelária. O viciado arrastado à força para o “tratamento”. O louco impregnado de medicamentos. A família que vê o trator derrubar sua casa na remoção para viabilizar a Copa do Mundo de futebol. A mãe que reconhece o corpo de seu filho assassinado no mato e ouve do delegado para deixar quieto e não fazer ocorrência. Ela parou de falar, obedeceu.

Mas haveria uma ligação entre esta violência dispersa e multifacetada e o Estado como garantia da ordem burguesa? O Estado parece deixar-se distante disso tudo. Certo que são seus agentes que operam esta violência cotidiana, mas o Estado trata, como cabe a uma universalidade abstrata, de abstrações. Ele traça os planos, as metas, as políticas. Ele elabora o PRONASI, um programa nacional de segurança e cidadania, no qual os objetivos são moralmente aceitos, os meios os melhores e as intenções louváveis, mas os corpos começam a aparecer nas UPPs. O prefeito chora em Copacabana quando o Rio é escolhido para sediar o grande evento esportivo e o trator começa a derrubar casas. A presidente aprova a usina hidroelétrica e as árvores e índios começam a perder seus espíritos e raízes.

Há três anos, depois do primeiro turno das eleições nas quais o PT apoiou a candidatura de Sérgio Cabral ao governo do Rio de Janeiro, Lula discursando na inauguração de uma plataforma de petróleo da Petrobras em Angra disse:

“O Rio de Janeiro não aparece mais nas primeiras páginas dos jornais pela bandidagem. O governo fez da favela do Rio um lugar de paz. Antes, o povo tinha medo da polícia, que só subia para bater. Agora a polícia bate em quem tem que bater, protege o cidadão, leva cultura, educação e decência”.

Três anos depois um pedreiro sai de um boteco na Rocinha “pacificada”. É abordado pela polícia militar e levado para averiguações na sede da UPP. Sua cabeça é coberta por um saco plástico, é espancado e toma choques. Epilético, não resiste e morre. Os policiais desaparecem com o corpo. Dez policiais são indicados pelo crime, o governador Cabral e o secretário de segurança Beltrame não estão entre eles. O Estado no seu reino de metafísico está protegido pela muralha da universalidade abstrata, no cotidiano da sociedade civil burguesa onde se estraçalham as particularidades pode-se sempre acusar o erro humano, o desvio de conduta, a corrupção. O Estado então promove seu ritual de encobrimento: vai ser aberta uma sindicância e serão feitas averiguações. Evidente que os dez acusados ou suspeitos não serão sequestrados, suas cabeças enviadas em sacos plásticos e seus corpos desaparecidos.

Na abstração dos direitos somos todos somos iguais. Na particularidade viva da sociedade burguesa somos pobres, pretos, favelados, facilmente identificados para receber práticas discriminatórias em nome da ordem a ser mantida. Ordem e tranquilidade. Na ordem garantida os negócios e acordos são garantidos sem sobressaltos, a acumulação de capitais encontra os meios de se reproduzir com taxas adequadas, o Estado é saneado financeiramente destruindo as políticas públicas e garantindo a transferência do fundo público para a prioridade privatista. A ordem garante que a exploração que fundamenta nossa sociabilidade se dê com tranquilidade.

No entanto as contradições desta ordem, por vezes, explodem em rebeldia e enfrentamentos. Não apenas como nos protestos que presenciamos desde junho, mas também por pequenas explosões e caóticas resistências que vão desde o enlouquecimento e a miserabilidade que se torna incomodamente visível, até o crime.

Professores, universitários do ensino público federal ou da rede estadual e municipal de ensino, que resolvem não aceitar a imposição de um plano de carreira; jovens que se recusam a pagar o aumento das passagens, mulheres exibindo seus seios e jovens se beijando, escudos, vinagres e máscaras; são apenas a expressão mais contundente e parcial da contradição (esperamos ainda que despertem metalúrgicos, petroleiros e outros). Além destas manifestações já estavam lá no corpo doente da cidade, os bolsões de miséria, as favelas, as famílias destruídas, os jovens sem futuro acendendo seus isqueiros para iluminar um segundo de alegria.

O Estado é a trincheira de proteção estratégica da ordem da propriedade privada e da acumulação privada da riqueza socialmente produzida. No centro desta zona estratégica está a classe dominante, a grande burguesia monopolista dona de fábricas, bancos, empresas de transporte, controlando o comércio interno e externo, o agronegócio, as indústrias farmacêuticas e das empresas de saúde, etc. São cerca de 124 pessoas que controlam mais de 12% do PIB do Brasil, os 10% mais ricos que acumulam 72,4% de toda a riqueza produzida. Em seu entorno estão seus funcionários, um exército de burocratas, políticos, técnicos e serviçais de toda ordem que erguem em defesa deste círculo estratégico de uma minoria plutocrata as esferas do poder público e seus aparatos privados de hegemonia.

Na forma de um terceiro círculo de defesa, mas que se articula a este segundo, está um exército de funcionários que executam o trabalho (limpo ou sujo) de manutenção da ordem. Como extrato baixo da burocracia Estatal não compartilha dos altos salários e benesses do segundo círculo, mas isso não os faz diretamente membros da classe trabalhadora por receberem baixos salários e terem que trabalhar e viver nas condições de nossa classe. O ato de um policial militar que estapeia o rosto de um trabalhador na favela é o ato pelo qual ele abdica de sua condição de classe, se alia aos nossos algozes e se torna nosso inimigo.

Contraditoriamente, o ato pelo qual uma corporação, como os bombeiros, se levanta em greve por condições de trabalho e salários, é o ato pelo qual rompe com seus chefes e busca aliar-se a sua classe para constituí-la enquanto classe. “O bombeiro é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo”, gritam os trabalhadores que lhes abrem os braços com a infinita solidariedade que constitui a liga sólida que nos faz classe.

Um taxista pega um grupo de professores e pergunta se eles estavam na manifestação contra o Prefeito Eduardo Paes e seus planos de carreira. Diante da resposta positiva o taxista diz: “então não vou cobrar esta corrida, fica como contribuição para a luta de vocês”.

O Estado precisa reprimir e criminalizar toda e qualquer dissidência pelo simples motivo de que por qualquer pequena rachadura da ordem pode brotar a imensa torrente que nos unirá contra a ordem que o Estado garante. Ainda que muitos de nós ainda não saibamos disso, o Estado e a classe que ele representa sabem.

A ridícula minoria de exploradores e os círculos de defesa que se formam em torno deles, está cercado por nós, a maioria. Primeiro pelos trabalhadores recrutados pelo capital para valorizar o valor, depois um enorme contingente de trabalhadores que garantem as condições indiretas de produção e reprodução da força de trabalho e logo em seguida pela massa de uma superpopulação relativa cujo papel e pressionar os salários para baixo para manter a saúde da acumulação de capitais. Por isso eles estão armados até os dentes, por isso tem tanto medo de nós.

Fica evidente o motivo pelo qual a classe dominante precisa do Estado, a grande pergunta é: para que nós precisamos do Estado?

A justificativa ideológica quer nos fazer crer que a complexidade da sociedade contemporânea exige um grau de planejamento, técnica, procedimentos sem os quais seria impossível a vida em sociedade e mergulharíamos no caos da guerra de todos contra todos. Ora, como diria Einstein: defina caos! Estamos mergulhados na guerra da burguesia monopolista e imperialista contra todos! Brecht já dizia em seus poemas sobre a dificuldade de governar: “Todos os dias os ministros dizem ao povo como é difícil governar. Sem os ministros o trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. Nem um pedaço de carvão sairia das minas.”

Quem somos nós e porque precisamos deles? Somos trabalhadores, sabemos plantar alimentos, construir casas, fazer roupas e meios de transporte, calçados e todos os tipos de ferramentas, ensinamos e cuidamos de nossa saúde, e como não somos de ferro fazemos músicas e poemas, trazemos a vida para telas e palcos, damos forma ao mármore e ao bronze, nos olhamos e nos apaixonamos e temos filhos tão humanos, tão humanos que carregam a vã esperança de que podemos ser melhores.

Mas isso é utópico, a natureza humana… a natureza humana! Nos gritam os ideólogos. Temos contradições, é verdade. Nós brigamos, divergimos, conhecemos a maldade e os canalhas de toda a espécie. A ordem da propriedade e da mercadoria e o poder que inevitavelmente a ela se acopla transformam nossas contradições em contradições inconciliáveis e criam formas de poder que consolidam uma ordem de exploração. Não querermos abolir as contradições queremos desvesti-las da forma histórica da propriedade e vivê-las humanamente.

Quando tivermos superado esta ordem e um trabalhador hipoteticamente encontrar em um banco de praça o Cabral e o Paes, despidos de toda a autoridade de seus cargos, nus de todo poder com o qual a ordem do capital os ungiu, vai colocar a mão no ombro deles e dizer: “vocês são uns bostas, canalhas mesmo, minha vontade é chamar aquele meu amigo black bloc e te encher de porrada… mas eles não batem em gente, só em coisas. O lanche é as 16 horas e a festa as 20 horas lá na praia, passa lá para a gente vaiar vocês… pelos maus tempos”.

É lógico que eles e seus patrões verdadeiros não vão permitir que isso aconteça, por isso temos que nos constituir como um poder tão grande e definitivo que ninguém possa questionar. Destruir o Estado da Burguesia e construir o Estado dos Trabalhadores que prepare as condições para superar as contradições que exigem um poder separado da sociedade até que consigamos eliminar as classes e constituir uma sociedade sem Estado, autogovernada.

Não precisamos deles (podemos começar fechando o Senado que não vai fazer falta). Não é possível que não possamos fazer melhor que esta porra que está aí. Vai do nosso jeito… nosso porto, por exemplo, pode não ser um “porto maravilha”, porque maravilha para eles é esta cidade horrorosa, desigual e injusta cheia de prédios enormes de cimento e vidro e vazios por dentro à noite, cemitérios com seus túmulos sem ninguém que os habite.

Nosso porto teria casas, algumas modestas com o reboco por consertar e a pintura gasta, com janelas abertas e dentro delas pessoas que as fazem humanas. De lá sairiam crianças alegres, saudáveis e alimentadas, indo para as escolas, parques e museus, e nós sairíamos para o trabalho para fazer todas as coisas que sabemos e a noite voltaríamos para nossas casas e cada um trabalharia de acordo com sua capacidade e receberia de acordo com sua necessidade.

Nós chamamos isso de comunismo, porque somos comunistas. Chamem do que quiser: socialismo, sociedade libertária, anarquismo, plena democracia… não importa, não somos fetichistas das palavras. Queremos apenas, e conquistamos este direito, participar da luta por ela e em sua construção. Afinal, é isso que nós comunistas fazemos… a mais de 160 anos.

Até quando o mundo será governado pelos tiranos?
Até quando nos oprimirão com suas mãos cobertas de sangue?
Até quando se lançarão povos contra povos numa terrível matança?
Até quando haveremos de suportá-los?

Bertolt Brecht



Mauro Luis Iasi é um dos colaboradores do livro de intervenção Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, organizado pela Boitempo. Com textos de David Harvey, Slavoj Žižek, Mike Davis, Ruy Braga, Ermínia Maricato entre outros. Confira, abaixo, o debate de lançamento do livro no Rio de Janeiro, com os autores Carlos Vainer, Mauro Iasi, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira:

12/10/2013

Educação sob o domínio do capital. Estrangeiro


Ensino superior privado no Brasil apresenta cenário de concentração e domínio de investimentos de fundos internacionais. Como isso pode influenciar a qualidade da educação?

Por Felipe Rousselet e Glauco Faria


No dia 22 de abril deste ano, foi anunciada a fusão das empresas Kroton Educacional S.A. e Anhanguera Educacional, uma transação que resultou em uma companhia cujo valor de mercado é estimado em R$ 14,1 bilhões. No total, o grupo passa a contar com 800 unidades de ensino superior e 810 escolas privadas associadas à educação básica, distribuídas em todos os estados do Brasil. Ainda que a efetivação da negociação esteja condicionada à aprovação pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), trata-se de uma sinalização forte de uma mudança que vem ocorrendo há alguns anos no ensino superior brasileiro, com a financeirização, movida pelo capital estrangeiro, exercendo um papel relevante nesta nova etapa de concentração das empresas do setor educacional no Brasil.

A criação da companhia foi divulgada alguns dias depois de o Cade ter autorizado a aquisição da Unifec, controladora da Universidade do Grande ABC, pela Anhanguera, anunciada em 2011. Dois anos antes, o fundo estadunidense Advent International havia comprado 28% da Kroton, que depois adquiriu a Iuni Educacional. Uma engenharia sofisticada que resultou na formação daquele que é considerado hoje o maior conglomerado da área educacional do mundo. O modelo societário da nova empresa, a Kroton Educacional, estabelece que, dos 24,1% de ações do bloco de controle, 57,48% ficarão a cargo da Kroton, e 42,52% com os acionistas da Anhanguera. Já os demais 75,9% do capital serão pulverizados no mercado. Rodrigo Galindo, atual presidente da Kroton, continuará à frente da nova companhia, enquanto Gabriel Mário Rodrigues, fundador da Universidade Anhembi Morumbi e presidente do Conselho de Administração da rede de universidades Anhanguera, será o chefe deste conselho.

“A Kroton tem por origem o Pitágoras, de Minas Gerais, e depois se juntou com o grupo Iuni, do Brasil central, e constituiu este aglomerado que se chamou Kroton e que tem um fundo de capital estrangeiro que injeta dinheiro e abriu as ações para o mercado internacional”, conta Celso Napolitano, presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo. “A Anhanguera começou com um conjunto de faculdades isoladas, que tinham esse nome exatamente porque se localizavam nas cidades ao longo da rodovia Anhanguera. Também, a partir daí, foi organizada financeiramente pelo banco Pátria, e no momento de abrir o capital, rodaram o mundo captando dinheiro de vários lugares. Então, na verdade, o que existe nesse cenário é a inserção de capital estrangeiro nesses grupos multinacionais, abertos ou fechados.”

As mudanças na educação superior ganharam força após a redemocratização, em especial depois da promulgação da constituição de 1988, que disciplinou o princípio de autonomia universitária, criando um instrumento importante para as instituições privadas que era a possibilidade de não estar sob a guarda do controle burocrático do antigo Conselho Federal de Educação (CFE), principalmente em relação à criação e extinção de cursos nas sedes e ao remanejamento do número de vagas oferecidas, conforme lembra Helena Sampaio, antropóloga e professora da Faculdade de Educação da Unicamp, no artigo “O setor privado de ensino superior no Brasil: continuidades e transformações”, publicado na Revista Ensino Superior Unicamp. “Essa prerrogativa permitiu à iniciativa privada responder de forma mais rápida ao atendimento da demanda. Entre 1985 e 1996, o número de universidades privadas mais do que triplicou (de 20 para 64), evidenciando a percepção do setor de que instituições maiores e autônomas, com uma oferta mais diversificada de cursos, teriam vantagens competitivas na disputa da clientela em um mercado estagnado”, diz. “Consistentemente, à medida que o número de universidades particulares crescia, o de estabelecimentos isolados diminuía, evidenciando processos de fusão e/ou incorporação de instituições no setor.”

Assim, houve um movimento que combinou a interiorização das faculdades, com uma capilaridade maior, com a diversificação da oferta de cursos. Mas a normatização que seria crucial para que o ensino superior se transformasse foi o artigo 1º do Decreto 2.306, de agosto de 1997. “Esse artigo dispõe que as entidades mantenedoras poderão assumir qualquer das formas admitidas em direito, de natureza civil e comercial, e quando constituídas como fundações serão regidas pelo Código Civil Brasileiro (art. 24). Ou seja, o artigo permitia às entidades mantenedoras das instituições de ensino superior alterar seus estatutos, escolhendo assumir natureza civil ou comercial”, ressalta Helena em seu artigo.

Antes desse momento de transformações da legislação da área, que também envolveu a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, as instituições de ensino superior (IES) só podiam existir desprovidas da figura do proprietário, como associações ou fundações. À época, surgiu a possibilidade de poderem captar recursos abrindo seu capital na bolsa de valores. “Desde então, para que a instituição se transforme em sociedade anônima ou limitada, é suficiente que os sócios se reúnam em assembleia e a proposta para a formação da sociedade com fins lucrativos receba a maioria dos votos. Para abrir o capital na bolsa de valores, é necessário que a instituição tenha fins lucrativos, disponha dos três últimos balanços financeiros auditados por empresas credenciadas e tenha um plano de negócios”, explicam Manolita Correia Lima e Fabio Betioli Contel, no livro Internacionalização da Educação Superior (Alameda Casa Editorial). “Até 2007, quatro grupos privados tinham conseguido abrir o respectivo capital no mercado financeiro: Anhanguera Educacional, Kroton, Estácio Participações e o grupo SEB (Sistema Educacional Brasileiro).”

Em relação aos três primeiros grupos, o professor de Economia e Finanças Amaury José Alves Aranha explicou, em artigo publicado na página eletrônica da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) no mês de abril (antes do anúncio da fusão da Kroton e Anhanguera), como conseguiram chegar a uma posição de destaque dentro do mercado, reforçando ainda mais a concentração econômica da área. “Foi através das operações de IPO – Initial Public Offering (traduzindo: “emissão pública de ação”), que também é denominado de “mercado primário”, que as empresas captaram expressivos recursos monetários junto ao mercado para posteriores aplicações em seus objetivos de investimentos e/ou expansão. As três instituições de ensino aqui citadas realizaram, além das emissões primárias, as operações de underwriting [emissão de debentures] e captaram milhões de reais que possibilitaram significativa expansão, com aquisição de diversas faculdades em diversas regiões do Brasil e possibilitaram faturamentos bilionários e polpudos lucros.”

Aranha segue destacando o crescimento que tais operações permitiram. “O faturamento das três empresas é significativo e elas apresentaram crescimentos nominais em relação ao exercício encerrado em 31/12/2011. A Kroton foi de 91,5 %, quase dobrando a ROL – Receita Operacional Líquida em relação ao ano anterior. A Anhanguera, que vem apresentando bons crescimentos ano a ano, manteve bons níveis de evolução em 2012 em relação ao ano anterior, crescendo 30,4%. A Estácio foi a que apresentou menor crescimento, mas mesmo assim foi de 20,4%. Poucos negócios apresentam tais níveis anuais de expansão econômica, ainda mais considerando um ano em que o crescimento da economia foi ínfimo e inclusive com o Produto Interno Bruto tendo sido batizado de ‘pibinho’.” Isso possibilitou que as empresas continuassem aumentado seu ritmo de aquisições. “O ponto de maior destaque foi a continuidade de aquisição de novas IES pelas empresas educacionais, o que, mais que a expansão do ROL, incentivou a expansão dos ‘lucros’. A Kroton apresentou um crescimento substancial e atingiu 446% em relação a 2011. A Anhanguera atingiu 261%. A Estácio foi a de menor crescimento, mas mesmo assim cresceu 56,3%, mais que proporcionalmente ao seu ROL, que foi apresentado acima com um crescimento de 20,4%”, explica Aranha.

O poder dos fundos

Em todo esse processo de financeirização, um novo tipo de ator surgiu e passou ter voz e vez no mercado educacional: os fundos de investimento. Eles são os protagonistas dessas grandes movimentações no setor e representam a entrada de capital e também de ingerência estrangeira. Esse processo foi iniciado antes mesmo da entrada dos grupos na bolsa de valores, mais precisamente em 2006, quando a estadunidense Laureate International, controlada pelo fundo KKR, comprou a Anhembi Morumbi. Hoje, a Estácio de Sá é administrada também por um fundo, o GP; a Anhanguera, pelo banco Pátria; a Kroton, pela Advent International.

Na composição da nova companhia Kroton/Anhanguera, os fundos Advent e Pátria, já presentes no comando dos grupos atuais, continuarão à frente. Esse protagonismo e a internacionalização não se restringem apenas à área do ensino privado em universidades e escolas, alcançando também a produção de material didático. Em agosto de 2012, a Buffalo Investimentos passou a ter o controle da produção de apostilas e treinamento docente do Universitário e, no mesmo mês, os britânicos da Pearson, o maior grupo editorial do mundo, que tem publicações como a The Economist, adquiriu, em julho de 2010, os sistemas de ensino COC, Pueri Domus e Dom Bosco, que pertenciam ao Sistema Educacional Brasileiro (SEB).

Em entrevista ao portal IG, Gabriel Mário Rodrigues, sócio da Anhanguera e tido como principal articulador da fusão, explicava em linhas gerais o papel dos fundos. “[Hoje] não tem mais dono de empresas. A tendência é não ter mais donos. Os donos são os fundos de pensão e os fundos de private equity feitos pelos bancos”, pontuou. “Um fundo promete determinado resultado para o investidor e, quando ele faz um aporte na empresa, exige que esse resultado possa acontecer. Vai ter sempre a questão de como possibilitar ter um bom produto educacional com o resultado de quem investiu, isso ninguém vai poder fugir. E aí estão os organismos governamentais e órgãos reguladores para tratar a questão”, complementou. Perguntado, na mesma matéria, sobre se o fato de a maioria dos cursos da Anhanguera se encontrarem na faixa mínima aceita pelo Ministério da Educação (MEC) para operar era suficiente, Rodrigues diz que “acha que sim”, afirmando que “a grande questão nossa agora é dar estudo razoável para todos os nossos alunos”.

Embora os grandes grupos tenham um olhar otimista a respeito do novo modelo vigente no ensino privado brasileiro, inúmeros acadêmicos e profissionais da área apontam que o novo modelo pode afetar ainda mais a qualidade dos cursos, que já sofre grandes questionamentos desde que se deu sua expansão. Para o filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP) Vladimir Safatle o sistema no qual grandes grupos de capital aberto na Bolsa de Valores controlam instituições de ensino superior nunca se mostrou compatível com as exigências necessárias para se garantir uma boa qualidade no ensino. “Não existe nenhum local no mundo onde boas universidades sejam gerenciadas por grupos dessa natureza. As que eles gerenciam, geralmente, são de segundo escalão, mesmo nos Estados Unidos”, afirma. De acordo com ele, a internacionalização feita nesse molde, predominantemente mercantil, não traria grandes contribuições para a educação brasileira. “Não vejo em que esses grupos podem colaborar com a luta em prol da qualidade do ensino universitário. Ao contrário, eles vão impondo um regime de avaliação e um regime de rentabilização que, muitas vezes, é contrário ao ambiente necessário para que boas pesquisas sejam realizadas dentro da universidade.”

Em sentido semelhante, os autores de Internacionalização do Ensino Superior atentam para o risco de se tratar a educação, um direito fundamental, como uma mercadoria qualquer. “Não seria impróprio admitir que se vive hoje um intenso processo de mercantilização ou mesmo de ‘commoditização’ do ensino superior, com as formas de prestação de ensino superior sendo equiparadas a outros produtos negociados no mercado internacional como minérios, grãos etc.” Uma das possíveis novas negociações do setor evidenciam esse caráter. O grupo paranaense Positivo estudava, até o fechamento desta edição, sua entrada na bolsa ou a venda parcial de seus negócios, em especial a área educacional (o setor de informática ficaria de fora da operação). Um dos possíveis interessados pela aquisição seria um consórcio formado pelos fundos de private equity Carlyle Group e Apax Partners, ambos dos Estados Unidos. O primeiro é dono de negócios tão diversos como a rede de venda de móveis Tok&Stok, a agência de viagens CVC, a varejista de brinquedos Ri Happy e a fabricante e varejista de lingerie Scalina.

“Agora, temos a presença de um setor, o das finanças, que reúne investidores de diversas partes do mundo como fundos de pensão, particulares e bancos, que turbinam financeiramente alguns fundos de investimento que saem à cata de novos negócios. Em geral, eles atuam por meio de fusão e reestruturação de empresas. O mesmo fundo que faz a fusão da Sadia com a Perdigão faz a reestruturação da Estácio de Sá”, aponta Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Isso significa dizer que a racionalidade que preside o funcionamento da instituição privada obedece a uma lógica, uma forma de ser do capital financeiro, que é obviamente incompatível com qualquer atividade educacional. E isso é muito mais grave quando estamos falando da formação de boa parte da juventude brasileira, que hoje frequenta alguma instituição de ensino superior.”

Outro ponto abordado no livro de Manolita Correia Lima e Fabio Betioli Contel diz respeito ao que eles denominam “geopolítica do conhecimento”. “Algumas poucas nações do globo veem fortalecidos seus respectivos Estados nacionais, suas universidades e corporações transnacionais e conseguem projetar em outros territórios vicissitudes próprias. Encaminham os investimentos externos diretos, valem-se de diferentes estruturas demográficas e de meios técnicos disponíveis para a realização de seus respectivos projetos de poder. No caso da produção do conhecimento, essa realidade parece emblemática: ao invés de diminuir desigualdades, aumenta-as; em lugar de democratização universal do acesso à produção e difusão do conhecimento, faz dele uso privado e corporativo”, afirmam. De acordo com eles, a ingerência de institutos multilaterais como o Banco Mundial ou a Organização Mundial de Comércio (OMC) obstrui a possibilidade de países terem autonomia para definir suas políticas internas, desrespeitando a cultura local e as necessidades nacionais e regionais, afetando a ideia de serviço público e criando uma assimetria ainda maior entre os países do centro, que já possuem uma estrutura universitária consolidada, e os periféricos.

Roberto Franklin Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), também vê problemas em relação ao domínio dos investimentos externos na educação superior. “É um perigo muito grande para autonomia no processo de construção de conhecimento no nosso país. Essas universidades, na sua grande maioria, além de só visarem ao lucro e negociarem suas ações em bolsas de valores, não têm nenhum compromisso com o Brasil e nenhum compromisso em produzir conhecimento e fazer pesquisa”, alerta. “Não podemos deixar de lembrar que as diferenças culturais, étnicas e históricas têm de ser tratadas e aprofundadas, e um local para fazer essa análise aprofundada é a universidade, os cursos superiores. Senão, vão trabalhar com o currículo e o padrão mínimos. É tudo o mínimo para oferecer um diploma de curso superior para um aluno que, quando vai para o mercado, sabe-se lá se vai ser aceito.”

Leão atenta ainda para a questão dos cursos que são oferecidos por esses grupos. “Normalmente, esses cursos são feitos para atender determinadas demandas que são sazonais. Portanto, são feitos para atender aos interesses do mercado. Terminado o interesse do mercado naquele determinado ramo de conhecimento, essas pessoas vão ficar sem ter o que fazer, e vão ter de voltar à escola”, explica. ‘É claro que você tem de estar atento a formar um profissional que está sempre se atualizando. O que não dá é para construir cursos de nível superior simplesmente para atender uma demanda de mercado, no qual o objetivo maior é o lucro das universidades.”

Ensino a distância e atuação do governo

A preocupação com a internacionalização do ensino superior não inquieta apenas docentes e profissionais da área de Educação. A União Nacional de Estudantes (UNE), por exemplo, participa da campanha “Educação não é mercadoria”, que tem como um dos focos a questão da desnacionalização, foi criada pela Contee em 2007 e mantém sua bandeira até hoje.

Universidades, centros universitários e faculdades particulares que não contam com fundos em sua composição administrativa também demonstram receio. Fernando Costa, presidente da Grupo Educacional Uniesp, reclama da desigualdade em relação à concorrência dos grandes conglomerados. “A gente tem enfrentado concorrência desleal destes grandes grupos. Eles têm um cartel. Hoje, se você pegar os órgãos que até então representavam as mantenedoras e as instituições, quem estão nas presidências? A Semesp [Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo] e outras representam grandes grupos internacionais nas suas presidências e interesses maiores”, argumenta.

Costa sustenta que os grupos que contam com financiamento internacional utilizam instrumentos para tornar a educação menos custosa, como o ensino virtual. “Fico temerário com o ensino a distância. O povo brasileiro, mais de 80%, vem de uma formação do ensino básico que é precária, com uma série de problemas. Não é culpa do aluno, é culpa do Estado que não deu o que é sua obrigação, um ensino de qualidade, com professores em sala de aula bem remunerados, e estrutura adequada. O Brasil não está preparado para ter a modalidade de ensino a distância”, acredita. “O aluno vem de uma formação deficiente, como ele vai conseguir via web ter um aprendizado? Por mais que se tenha um ensino de excelência, ele não foi preparado para isso, essa é a realidade brasileira. Não adianta a gente falar de educação para uma elite, porque essa elite é muito pequena no Brasil.”

No artigo “O setor privado de ensino superior no Brasil: continuidades e transformações”, citado anteriormente, Helena Sampaio destaca o crescimento do ensino a distância no Brasil. “Capitaneada pelo setor privado, a oferta de cursos de graduação a distância também cresce em ritmo acelerado, considerando que essa modalidade instalou-se no Brasil apenas em 2000. Em 2008, do total de 727.961 matrículas nessa modalidade de ensino, o setor privado respondia por pouco mais de 60%. Certamente isso não aconteceria sem o avanço das novas tecnologias da informação e comunicação, mas também não teria atingido tais cifras se o setor privado não liderasse a inovação. Para o setor privado, a oferta de graduação a distância significa redução de custos”, diz. Hoje, algumas faculdades têm três ou quatro dias de aula por semana de forma presencial, preenchendo o restante com ensino via web.

Nesse cenário, o papel do governo pode ser crucial. Até porque é por meio de programas de financiamento estudantil como o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) que se ampliaram as matrículas no nível superior, nos últimos dez anos, em 110%. “O principal banco que atua nessa área, o Itaú, diz que o que motiva a internacionalização e garante que a taxa de lucro siga em um patamar muito elevado é a existência de um mercado consumidor que, pela concentração de renda no Brasil, não existiria sem o fundo público. O fundo público é o que impulsiona, é o que dirige, é o que guia a expansão do setor privado”, salienta Roberto Leher. “O Fies oferece subsídios enormes em termos de recursos públicos na forma de empréstimos com juros subsidiados. A taxa de juros deve estar em torno de 3%, quando a taxa Selic está em 8,5%. Essa diferença alguém paga, e quem paga é o fundo público.”

Leher argumenta ainda que o Fies criou um público consumidor que mantém o mercado aquecido. “O ProUni, com as isenções tributárias, alargou a margem de lucro das instituições mercantis na ordem de aproximadamente 20% Antes, esses recursos eram repassados em forma de impostos e contribuições. Com as isenções, isso vira lucro. A taxa de exploração do trabalho também aumentou muitíssimo, então, a possibilidade de uma margem generosa está garantida pelo colchão que o Estado garante com o Fies e o ProUni. Sem eles, não teríamos esse processo de internacionalização e a chegada dos fundos de investimento.”

“Nós, da CNTE, sempre apoiamos o ProUni como uma medida transitória, temporária. Sempre dissemos ao MEC que as universidades que fazem parte do programa teriam de ter qualidade, não sendo universidades que oferecessem cursos de segunda categoria. A isenção que eles estão tendo é um dinheiro que poderia ser investido na educação pública, mas, em razão da situação de termos milhares de alunos e jovens em idade de frequentarem a universidade, e pelo fato de o poder público não ter condições de oferecer as vagas, entendemos que aquilo seria uma saída temporária”, avalia Franklin Leão. “O compromisso com a qualidade da educação oferecida tem de ser política do governo.”

Fernando Costa também sugere que o Ministério da Educação tenha uma postura de diálogo maior com instituições nacionais, muitas delas, de acordo com ele, fragilizadas do ponto de vista financeiro. “O que falta para o setor é apoio do governo. Não é apoio financeiro, que é importante também, mas mais de orientação, supervisão, estar mais próximo. Muitas instituições brasileiras são administradas por professores e famílias de professores. O governo deveria abraçar mais essas instituições”, defende. O MEC não retornou solicitação da Fórum sobre a internacionalização do ensino superior. Em matéria publicada na revista Caros Amigos, quando perguntada sobre a questão, a assessoria de Comunicação do ministério informou que não é sua atribuição fiscalizar entrada de capital estrangeiro ou atuação de investidores internacionais no mercado da educação superior, ressaltando que o funcionamento de IES e a oferta de cursos superiores depende de ato autorizativo do poder público e está sujeita à regulação, avaliação e supervisão do MEC. Em relação ao ensino a distância, anunciou que pretende promover um amplo debate visando à revisão no marco regulatório dessa modalidade de ensino.

 Fonte:http://revistaforum.com.br/blog/2013/08/sob-o-dominio-do-capital-estrangeiro/