“Nosso objetivo final é a supressão do Estado,
isto é, de toda a violência, organizada e sistemática,
de toda coação sobre os homens em geral”
Lenin
A maior de todas as violências do Estado é o próprio Estado. Ele é, antes de tudo, uma força que sai da sociedade e se volta contra ela como um poder estranho que a subjuga, um poder que é obrigado a se revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento jurídico que legitime a opressão de uma classe sobre outra. Nas palavras de Engels é a confissão de que a sociedade se meteu em um antagonismo inconciliável do qual não pode se livrar, daí uma força que se coloque aparentemente acima da sociedade para manter tal conflito nos limites da ordem.
A ideologia com a qual o Estado oculta seu próprio fundamento inverte este pressuposto e o apresenta como o espaço que torna possível a conciliação dos interesses que na sociedade civil burguesa são inconciliáveis. A contradição existe no corpo da sociedade dividida por interesses particulares e individuais, enquanto o Estado, ao gosto de Hegel, seria o momento ético-politico, a genericidade como síntese da multiplicidade dos interesses. A este momento político universal se contrapõe o dissenso, a rebeldia, o desvio e este deve ser contido nos limites da ordem, do que resulta que todo Estado é o exercício sistemático da violência tornada legítima.
Desde Maquiavel que a teoria política moderna sabe que a violência não pode ser o instrumento exclusivo do Estado, o uso adequado da violência (para Maquiavel aquele que atinge o objetivo de conquistar e manter o Estado) deve ser combinado com as formas de apresentá-lo como legítimo, o que nos leva à síntese entre os momentos de coerção e consenso, a famosa metáfora maquiaveliana do leão e da raposa. Poderíamos dizer que a violência só é eficaz quando envolvida por formas de legitimação da mesma forma que os instrumentos de consenso pressupõem e exigem formas organizadas de violência. O leão e a raposa são igualmente predadores, suas táticas é que diferem.
A separação entre violência e consentimento, entre coerção e consenso, serve às vestes ideológicas que procuram apresentar o Estado como uma função necessária e incontornável da sociabilidade humana. Nesta leitura ideológica, uma vez constituída a sociabilidade sobre as formas consensuais expressas no ordenamento jurídico, nas normas morais e imperativos éticos aceitos e compartilhados, a violência fica como uma espécie de reserva de segurança para conter os casos desviantes. Assim, a violência é apresentada como exceção e o consentimento como cotidianidade. O Estado é a garantia que a violência será coibida.
Nada mais enganador. A violência é resultante da contradição inconciliável que fundamenta nossa sociabilidade e portanto ela é cotidiana, onipresente e inevitável. Ainda que disfarçada de formas não explícitas como nos consensuais procedimentos legais e fundamentos jurídicos, como valores morais ou formas aceitas de ser e comportar-se. Até Durkheim sabia disso quando afirmava que as formas de ser, agir e pensar são impostas coercitivamente e se não percebemos esta coerção nas formas cristalizadas como hábitos não é porque ela não exista, mas porque já foi realizada com eficiência.
Mesmo a violência explícita é cotidiana. Ela é explícita e invisível, se mostra para ocultar-se. No preconceito que segrega, na miséria que aparta, na polícia que prende, tortura e mata, na moradia que se afasta, nas portas que se fecham, nos olhares que se desviam. Na etiqueta de preço nas coisas feitas em mercadorias que proíbem o acesso ao valor de uso, no mercado de carne humana barata na orgia de valorização do valor, sangue que faz o corpo do capital manter-se vivo.
Mas ela também é explícita e visível. No tapa da cara do trabalhador na favela dado por um homem de farda e armado. Na fila de cara para o muro sendo apalpados, nos flagrantes forjados ou não, no saco de plástico na cabeça, na porrada, no chute na cara, no choque nos testículos. Na cabeça para baixo, olhos para o chão, mãos na cabeça, coração acelerado. Na humilhação de ser jogado no camburão, na delegacia, como carga de corpos violentados nos presídios, longe de direitos e mesmo de procedimentos elementares, muito longe de recursos e embargos infringentes.
Um doente aidético, chora em sua cama na enfermaria do antigo presídio do Carandiru e atrapalha o sono do agente penitenciário. É espancado em sua cama com um cano de ferro. O cano da arma na boca da criança que dorme nos degraus da igreja na Candelária. O viciado arrastado à força para o “tratamento”. O louco impregnado de medicamentos. A família que vê o trator derrubar sua casa na remoção para viabilizar a Copa do Mundo de futebol. A mãe que reconhece o corpo de seu filho assassinado no mato e ouve do delegado para deixar quieto e não fazer ocorrência. Ela parou de falar, obedeceu.
Mas haveria uma ligação entre esta violência dispersa e multifacetada e o Estado como garantia da ordem burguesa? O Estado parece deixar-se distante disso tudo. Certo que são seus agentes que operam esta violência cotidiana, mas o Estado trata, como cabe a uma universalidade abstrata, de abstrações. Ele traça os planos, as metas, as políticas. Ele elabora o PRONASI, um programa nacional de segurança e cidadania, no qual os objetivos são moralmente aceitos, os meios os melhores e as intenções louváveis, mas os corpos começam a aparecer nas UPPs. O prefeito chora em Copacabana quando o Rio é escolhido para sediar o grande evento esportivo e o trator começa a derrubar casas. A presidente aprova a usina hidroelétrica e as árvores e índios começam a perder seus espíritos e raízes.
Há três anos, depois do primeiro turno das eleições nas quais o PT apoiou a candidatura de Sérgio Cabral ao governo do Rio de Janeiro, Lula discursando na inauguração de uma plataforma de petróleo da Petrobras em Angra disse:
“O Rio de Janeiro não aparece mais nas primeiras páginas dos jornais pela bandidagem. O governo fez da favela do Rio um lugar de paz. Antes, o povo tinha medo da polícia, que só subia para bater. Agora a polícia bate em quem tem que bater, protege o cidadão, leva cultura, educação e decência”.
Três anos depois um pedreiro sai de um boteco na Rocinha “pacificada”. É abordado pela polícia militar e levado para averiguações na sede da UPP. Sua cabeça é coberta por um saco plástico, é espancado e toma choques. Epilético, não resiste e morre. Os policiais desaparecem com o corpo. Dez policiais são indicados pelo crime, o governador Cabral e o secretário de segurança Beltrame não estão entre eles. O Estado no seu reino de metafísico está protegido pela muralha da universalidade abstrata, no cotidiano da sociedade civil burguesa onde se estraçalham as particularidades pode-se sempre acusar o erro humano, o desvio de conduta, a corrupção. O Estado então promove seu ritual de encobrimento: vai ser aberta uma sindicância e serão feitas averiguações. Evidente que os dez acusados ou suspeitos não serão sequestrados, suas cabeças enviadas em sacos plásticos e seus corpos desaparecidos.
Na abstração dos direitos somos todos somos iguais. Na particularidade viva da sociedade burguesa somos pobres, pretos, favelados, facilmente identificados para receber práticas discriminatórias em nome da ordem a ser mantida. Ordem e tranquilidade. Na ordem garantida os negócios e acordos são garantidos sem sobressaltos, a acumulação de capitais encontra os meios de se reproduzir com taxas adequadas, o Estado é saneado financeiramente destruindo as políticas públicas e garantindo a transferência do fundo público para a prioridade privatista. A ordem garante que a exploração que fundamenta nossa sociabilidade se dê com tranquilidade.
No entanto as contradições desta ordem, por vezes, explodem em rebeldia e enfrentamentos. Não apenas como nos protestos que presenciamos desde junho, mas também por pequenas explosões e caóticas resistências que vão desde o enlouquecimento e a miserabilidade que se torna incomodamente visível, até o crime.
Professores, universitários do ensino público federal ou da rede estadual e municipal de ensino, que resolvem não aceitar a imposição de um plano de carreira; jovens que se recusam a pagar o aumento das passagens, mulheres exibindo seus seios e jovens se beijando, escudos, vinagres e máscaras; são apenas a expressão mais contundente e parcial da contradição (esperamos ainda que despertem metalúrgicos, petroleiros e outros). Além destas manifestações já estavam lá no corpo doente da cidade, os bolsões de miséria, as favelas, as famílias destruídas, os jovens sem futuro acendendo seus isqueiros para iluminar um segundo de alegria.
O Estado é a trincheira de proteção estratégica da ordem da propriedade privada e da acumulação privada da riqueza socialmente produzida. No centro desta zona estratégica está a classe dominante, a grande burguesia monopolista dona de fábricas, bancos, empresas de transporte, controlando o comércio interno e externo, o agronegócio, as indústrias farmacêuticas e das empresas de saúde, etc. São cerca de 124 pessoas que controlam mais de 12% do PIB do Brasil, os 10% mais ricos que acumulam 72,4% de toda a riqueza produzida. Em seu entorno estão seus funcionários, um exército de burocratas, políticos, técnicos e serviçais de toda ordem que erguem em defesa deste círculo estratégico de uma minoria plutocrata as esferas do poder público e seus aparatos privados de hegemonia.
Na forma de um terceiro círculo de defesa, mas que se articula a este segundo, está um exército de funcionários que executam o trabalho (limpo ou sujo) de manutenção da ordem. Como extrato baixo da burocracia Estatal não compartilha dos altos salários e benesses do segundo círculo, mas isso não os faz diretamente membros da classe trabalhadora por receberem baixos salários e terem que trabalhar e viver nas condições de nossa classe. O ato de um policial militar que estapeia o rosto de um trabalhador na favela é o ato pelo qual ele abdica de sua condição de classe, se alia aos nossos algozes e se torna nosso inimigo.
Contraditoriamente, o ato pelo qual uma corporação, como os bombeiros, se levanta em greve por condições de trabalho e salários, é o ato pelo qual rompe com seus chefes e busca aliar-se a sua classe para constituí-la enquanto classe. “O bombeiro é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo”, gritam os trabalhadores que lhes abrem os braços com a infinita solidariedade que constitui a liga sólida que nos faz classe.
Um taxista pega um grupo de professores e pergunta se eles estavam na manifestação contra o Prefeito Eduardo Paes e seus planos de carreira. Diante da resposta positiva o taxista diz: “então não vou cobrar esta corrida, fica como contribuição para a luta de vocês”.
O Estado precisa reprimir e criminalizar toda e qualquer dissidência pelo simples motivo de que por qualquer pequena rachadura da ordem pode brotar a imensa torrente que nos unirá contra a ordem que o Estado garante. Ainda que muitos de nós ainda não saibamos disso, o Estado e a classe que ele representa sabem.
A ridícula minoria de exploradores e os círculos de defesa que se formam em torno deles, está cercado por nós, a maioria. Primeiro pelos trabalhadores recrutados pelo capital para valorizar o valor, depois um enorme contingente de trabalhadores que garantem as condições indiretas de produção e reprodução da força de trabalho e logo em seguida pela massa de uma superpopulação relativa cujo papel e pressionar os salários para baixo para manter a saúde da acumulação de capitais. Por isso eles estão armados até os dentes, por isso tem tanto medo de nós.
Fica evidente o motivo pelo qual a classe dominante precisa do Estado, a grande pergunta é: para que nós precisamos do Estado?
A justificativa ideológica quer nos fazer crer que a complexidade da sociedade contemporânea exige um grau de planejamento, técnica, procedimentos sem os quais seria impossível a vida em sociedade e mergulharíamos no caos da guerra de todos contra todos. Ora, como diria Einstein: defina caos! Estamos mergulhados na guerra da burguesia monopolista e imperialista contra todos! Brecht já dizia em seus poemas sobre a dificuldade de governar: “Todos os dias os ministros dizem ao povo como é difícil governar. Sem os ministros o trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. Nem um pedaço de carvão sairia das minas.”
Quem somos nós e porque precisamos deles? Somos trabalhadores, sabemos plantar alimentos, construir casas, fazer roupas e meios de transporte, calçados e todos os tipos de ferramentas, ensinamos e cuidamos de nossa saúde, e como não somos de ferro fazemos músicas e poemas, trazemos a vida para telas e palcos, damos forma ao mármore e ao bronze, nos olhamos e nos apaixonamos e temos filhos tão humanos, tão humanos que carregam a vã esperança de que podemos ser melhores.
Mas isso é utópico, a natureza humana… a natureza humana! Nos gritam os ideólogos. Temos contradições, é verdade. Nós brigamos, divergimos, conhecemos a maldade e os canalhas de toda a espécie. A ordem da propriedade e da mercadoria e o poder que inevitavelmente a ela se acopla transformam nossas contradições em contradições inconciliáveis e criam formas de poder que consolidam uma ordem de exploração. Não querermos abolir as contradições queremos desvesti-las da forma histórica da propriedade e vivê-las humanamente.
Quando tivermos superado esta ordem e um trabalhador hipoteticamente encontrar em um banco de praça o Cabral e o Paes, despidos de toda a autoridade de seus cargos, nus de todo poder com o qual a ordem do capital os ungiu, vai colocar a mão no ombro deles e dizer: “vocês são uns bostas, canalhas mesmo, minha vontade é chamar aquele meu amigo black bloc e te encher de porrada… mas eles não batem em gente, só em coisas. O lanche é as 16 horas e a festa as 20 horas lá na praia, passa lá para a gente vaiar vocês… pelos maus tempos”.
É lógico que eles e seus patrões verdadeiros não vão permitir que isso aconteça, por isso temos que nos constituir como um poder tão grande e definitivo que ninguém possa questionar. Destruir o Estado da Burguesia e construir o Estado dos Trabalhadores que prepare as condições para superar as contradições que exigem um poder separado da sociedade até que consigamos eliminar as classes e constituir uma sociedade sem Estado, autogovernada.
Não precisamos deles (podemos começar fechando o Senado que não vai fazer falta). Não é possível que não possamos fazer melhor que esta porra que está aí. Vai do nosso jeito… nosso porto, por exemplo, pode não ser um “porto maravilha”, porque maravilha para eles é esta cidade horrorosa, desigual e injusta cheia de prédios enormes de cimento e vidro e vazios por dentro à noite, cemitérios com seus túmulos sem ninguém que os habite.
Nosso porto teria casas, algumas modestas com o reboco por consertar e a pintura gasta, com janelas abertas e dentro delas pessoas que as fazem humanas. De lá sairiam crianças alegres, saudáveis e alimentadas, indo para as escolas, parques e museus, e nós sairíamos para o trabalho para fazer todas as coisas que sabemos e a noite voltaríamos para nossas casas e cada um trabalharia de acordo com sua capacidade e receberia de acordo com sua necessidade.
Nós chamamos isso de comunismo, porque somos comunistas. Chamem do que quiser: socialismo, sociedade libertária, anarquismo, plena democracia… não importa, não somos fetichistas das palavras. Queremos apenas, e conquistamos este direito, participar da luta por ela e em sua construção. Afinal, é isso que nós comunistas fazemos… a mais de 160 anos.
Até quando o mundo será governado pelos tiranos?
Até quando nos oprimirão com suas mãos cobertas de sangue?
Até quando se lançarão povos contra povos numa terrível matança?
Até quando haveremos de suportá-los?
Bertolt Brecht
Mauro Luis Iasi é um dos colaboradores do livro de intervenção Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, organizado pela Boitempo. Com textos de David Harvey, Slavoj Žižek, Mike Davis, Ruy Braga, Ermínia Maricato entre outros. Confira, abaixo, o debate de lançamento do livro no Rio de Janeiro, com os autores Carlos Vainer, Mauro Iasi, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira:
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