Os 120 anos de Graciliano Ramos recebem o presente de O velho Graça,
a biografia de um dos nossos clássicos, que em boa hora a editora
Boitempo acaba de reeditar. Se os adjetivos não estivessem tão gastos,
diria que esse é um lançamento oportuno e necessário. Mas em atenção a
Graciliano, procurarei evitar o excesso de qualificações. E vamos ao
trabalho.
Da velha edição de O velho Graça
que tenho comigo, de 1992, é que retiro os trechos e reflexões que
reúno agora. A primeira delas é que deveria haver no momento uma
suspensão das notícias que são um alarido de baixa animalidade, que
fazem passar as horas em um vazio sem fim, como as fotos da nudez da
última celebridade ou o arremedo de justiça dos astros do STF, porque
neste ano, mais precisamente no sábado 27 de outubro, é aniversário de
Graciliano Ramos. Diria Camões “cesse tudo o que a musa antiga canta”,
mas em relação ao noticiário, que musa? Melhor, esse “que musa?” soaria
aos ouvidos dos repórteres como um “que música?”. E para evitar a musa
que se confunde com música, vamos ao primeiro trecho que destaco da
biografia O velho Graça, escrita por Dênis de Moraes:
“Na safra, aparecerão A bagaceira, de José Américo de Almeida; Menino de engenho, de José Lins do Rego; O país do carnaval e Cacau, de Jorge Amado; Os corumbas, de Armando Fontes; Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre.
Em artigo no Diário de Pernambuco, de 10 de março de 1935, sob o título O romance do Nordeste, (Graciliano Ramos) escreveu:
‘Era
indispensável que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por
pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam
inteiramente. Hoje desapareceram os processo de pura criação literária.
Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado
de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil.
Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação.
(…) Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a
ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós,
sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça,
matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma
hospedaria.’”
Notem o
quanto é impressionante como escritores tão distintos, José Lins,
Graciliano Ramos, Jorge Amado, sem comunicação entre si, em estados e
cidades diferentes, escrevam romances como se estivessem em um só
movimento literário. Isso, que para os professores de cursinhos
vestibulares, e até em certas cátedras universitárias, ganha feições de
prato feito, é mais que coincidência. Esses homens inquietos não
escreviam o que escreveram por método ou influência de escola estética. O
que os unifica é o espírito do tempo, que no caso eram as ideias de
esquerda, a influência socialista, o movimento comunista no Brasil, que
refletia o eco de 1917, até mesmo em Palmeira dos Índios, onde vivia
Graciliano. E neste ponto, de passagem, cabe uma brevíssima indicação,
que deixo para o aprofundamento de estudiosos mais capazes: pensa-se que
a influência do partido comunista se deu em suas estritas fileiras, ou,
de outro modo, nos tenentes e movimentos de massa e de operários. Nada
mais inexato. Na verdade, a partir de 1930 a força das ideias
socialistas se alastrou no Brasil entre comunistas organizados,
comunistas de simpatia (mas simpatia é quase amor, diz um bloco do
carnaval do Rio), socialistas, e, de modo geral, em artistas que
refletiam o povo brasileiro como se manifestassem uma nova
independência. De certo modo, de certo modo, não, de todos os modos, o
pensamento que avançou entre nós, da ciência à literatura, recebeu a
fecundação do diálogo com o mundo de esquerda. De passagem ainda, mas em
outro lugar, deveria ser observada a influência desses escritores
nordestinos sobre a literatura dos africanos que se libertaram de
Portugal.
No momento, chamo a atenção para o que me parece um engano, que por força do hábito se tornou um gênero de texto. Penso em Vidas Secas, livro sobre o qual a pesquisa de Dênis de Moraes informa:
“Cem
dias depois de ter sido posto em liberdade, Graciliano iniciaria um
novo projeto literário. Escrevera um conto baseado no sacrifício de um
cachorro, que presenciara, quando criança, no Sertão pernambucano… As
opiniões favoráveis o incentivariam a prosseguir a história, esboçando o
perfil dos donos de Baleia.
O
processo de composição do romance – o único que escreveu na terceira
pessoa – seria, por razões de ordem financeira, dos mais originais da
literatura brasileira. A conta da pensão e as despesas duplicadas com a
vinda da família para o Rio o obrigariam a escrever os capítulos como se
fossem contos. Era um artifício para ganhar dinheiro, publicando-os
isoladamente em jornais e revistas, à medida que os produzia. Às vezes,
republicaria o mesmo conto, com título alterado, em outros periódicos.
Dos 13 capítulos, oito sairiam nas páginas de O Cruzeiro, O Jornal, Diário de Notícias, Folha de Minas e Lanterna Verde, além de La Prensa, de Buenos Aires…
Um
romance desmontável, cujas peças podem ser destacadas para a leitura e
seriadas de mais de uma maneira. Como telas de uma exposição que têm
vida própria, independente dos demais”.
Mas Vidas Secas
não é um romance! E as razões para isso vêm não só de ordem financeira,
quero crer. Um romance exige – ainda que a sua realização seja rebelde a
linhas de fronteira – algo mais que a repetição de personagens em
diferentes relatos. Se assim fosse, A Comédia Humana,
de Balzac, seria um só livro. No romance há uma organicidade de
pessoas, digo, personagens, que crescem e se diluem em um destino em
bloco. E de tal modo que as suas partes autônomas, ainda que seccionadas
e vendidas como contos, ganham pleno sentido no conjunto. O todo é a
iluminação do particular, no romance. No entanto, o magnífico relato da
cachorra Baleia, que se uniu a páginas magistrais pelos personagens que o
talento de Graciliano acrescentou, jamais teria unidade absoluta se
pertencesse a um romance. Na verdade, Vidas Secas é uma vitória do gênio
do escritor sobre as condições difíceis de tempo e lugar em que
escreveu o livro, tanto pessoais quanto do Brasil da época. O valor de Vidas Secas
não cai nem um bilionésimo, quando se nota nesse livro um exemplar
conjunto de contos, em vez de um romance. E aqui, sobre a genialidade do
artista, em mais de uma página da sua biografia recebemos lições:
“A
qualidade essencial de quem escreve é a clareza, é dizer uma coisa que
todos entendam da forma que você quis. Para escritor que é de ofício
autodidata, isso custa anos, porque não está na gramática, nem em livro
algum”.
Muito
Bom!!!! é o comentário mais ponderado que me ocorre. Muito bom! Para o
escritor que é de ofício autodidata, escrever custa anos, porque não
está na gramática, nem em livro algum, fala o mestre provado. Me
acompanhem por favor: em que oficinas de literatura podem se formar
escritores essenciais? Em que oficina de escritor se forma a vida? Em
que oficinas, a seu modo laboratórios de bebês de proveta, se conseguirá
a clareza que só a malhação fora das academias de todo tipo e gênero
dá? Em que local se aprenderá a observação que o instinto e a mente e a
experiência concebem?
Em
Graciliano Ramos, se o compreendemos bem, há uma teoria da arte, há uma
teoria da literatura, há uma lição de sabedoria que deveria ser luz para
todo escritor digno do nome. Todos, novos e velhos, escritores livres
ou escravos ladinos. Como neste passo, do diário de Paulo Mercadante,
citado em O velho Graça:
“Graciliano
falou de sua experiência. Escrever é um lento aprendizado, que se
estende pela vida, é alguma coia que exige concentração e paciência.
Muita paciência mesmo. Não se trata apenas de saber a sintaxe, de
dominar um grande vocabulário, mas de ser fiel à ideia e domá-la em
termos de uma precisão formal. Por isso, a experiência é essencial, só
escapando dessa condição o poeta. Talvez com relação ao escritor haja
uma conjugação, Graciliano concluiu, da pessoa como individualidade, do
ponto de vista de uma psicologia determinada com o meio onde cresceu e
viveu”.
Entendam. O
entusiasmo que expressei na citação de Graciliano Ramos acima não
significa que da sua escrita venha uma norma, uma lei que diga a um
homem que deseje “apenas” (!) expressar o seu pensamento:
– Olha, fora deste caminho nenhuma salvação é possível.
Não é isso.
Na literatura só existe uma regra: não existe regra. Na literatura só
existe uma maneira, de todas as maneiras. O reconhecimento da grandeza
de Graciliano não implica a busca do caminho único da escrita
escorreita, limpa e enxuta do mestre. Pois como ficaria a gordura de
José Lins? Em que plano assomaria o bolero em forma de letras de Gabriel
García Márquez? Ou os torneios vocabulares de Proust? E os delírios de
matar de Gogol? Não. Trata-se apenas de retirar da experiência curtida,
no sentido de pele enrugada de muitos sóis, de Graciliano aquilo que
serve a gordos e magros, altos e baixos, desbocados ou contidos. A
saber: escrever é um lento aprendizado, que se estende pela vida, é
alguma coia que exige concentração e paciência. Muita paciência mesmo.
E aqui, sem
sair do capítulo da excelência da sua escrita, e como nem tudo são
flores, entramos em um terreno mais pedregoso. Entramos no embate
político do mestre, dentro do partido e fora dele, e no mesmo tempo, até
como uma prova de que a vida partidária não é uma estufa. A sociedade e
a história passam pelos partidos comunistas, onde quer que estejam.
Refiro-me ao cume da obra de Graciliano Ramos, o Memórias do Cárcere. Para mim, a literatura política no Brasil tem um pico, cujo nome é Memórias do Cárcere.
Até hoje, nada li melhor como retratos de homens comunistas no coletivo
de um presídio. É curioso como até nas universidades não veem as
Memórias como o melhor livro de Graciliano Ramos. Dizem: “não é ficção”,
e com isso desprezam para a lata de lixo uma prosa madura, pedagógica,
de denúncia, porque “não é ficção”. Mas Memórias do Cárcere é
livro tão bom ou melhor que a sua melhor ficção. Da primeira edição que
tenho, da Livraria José Olympio em 1953, com fac-similes do manuscrito e
retrato do autor no desenho de Portinari, digitei com paciência há seis
anos, para publicação no espanhol La Insignia, a página imortal que narra a deportação de Olga Prestes. Está aqui.
Pois bem,
essa obra não se fez sem conflitos os mais sérios, mais particularmente
com Diógenes de Arruda Câmara, o homem que seguia com rigor, digamos,
excessivo a disciplina partidária. Diz o livro:
“Arruda pedira para folhear os originais de Memórias do Cárcere,
aborrecendo-se, logo na primeira lauda, com a afirmação de que, no
Estado Novo, ‘nunca tivemos censura prévia em arte’… No decorrer da
reunião, cobrariam (Arruda, Astrojildo e Floriano Gonçalves) novamente a
Graciliano o seu distanciamento do realismo socialista e a falta de
vigor revolucionário de seus livros. Um dos presentes, em tom inflamado,
diria que ele persistia num realismo crítico ultrapassado e citaria
Jorge Amado como escritor empenhado em dar conteúdo participante a suas
obras. Ao ouvir o nome de Jorge, Graciliano romperia o silêncio:
– Admiro Jorge Amado, nada tenho contra ele, mas o que sei fazer é o que está nos meus livros”.
Conta o
biógrafo que em outra oportunidade, anos antes desse dia, Diógenes, em
uma reunião com escritores, entre os quais estavam Astrojildo Pereira,
Dalcídio Jurandir, Osvaldo Peralva, e o próprio Graciliano, teria feito,
segundo Dênis de Moraes, “uma apologia à literatura revolucionária,
exigindo que os presentes se enquadrassem nos ditames zdanovistas. A
certa altura, citaria como exemplo os poemas de Castro Alves, que a seu
ver encaravam os problemas sociais numa perspectiva revolucionária. E o
que era mais importante: com versos rimados” .
E mais, em outro ponto da biografia:
“Em conversas posteriores com Heráclio Salles, ele enfatizaria a aversão ao romance panfletário.
– Nenhum livro do realismo socialista lhe agradou? – perguntaria o jornalista.
– Até o último que li, nenhum. Eu acho aquele negócio de tal ordem que não aceitei ler mais nada.
– Qual a principal objeção que o senhor faz?
–
Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos
as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o narrador
diz: ‘O camarada Stálin…’ Ora porra! Isto no meio de um romance?!
Tomei horror.
– Não seria possível purificar o estilo do realismo socialista?
– Não tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não pelo estilo do panfleto.
Não
é de se admirar, portanto, que não tolerasse as fórmulas emanadas de
Moscou. Ao tomar conhecimento do informe de Zdanov sobre literatura e
arte, esculhambaria:
– Informe? Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa informe.”
A relação de
Graciliano Ramos com o PCB, nos últimos anos, é conflituosa, aqui e ali
em aberta crise. Mas se destaca nessa relação, por isso mesmo, uma
expressão de grandeza do escritor, que não deixou a sua escolha pelo
comunismo, mesmo em luta contra a estreiteza da direção na época. Nessa
biografia emerge um comunista à velha maneira, à maneira que julgamos
clássica, modelar, diferente de comportamentos de algumas militâncias
que tudo se permitem, desde que para isso alcancem o poder. Olhem só
como agia, e no que agia ele era, o comunista Graciliano Ramos:
“Recusava
assinar artigos (no Correio da Manhã, onde trabalhava como revisor),
alegando para os mais íntimos que não concordava com a linha editorial
dos jornais burgueses. O máximo que admitia era colaborar com o
suplemento literário. Relutava em aceitar aproximação maior com os
proprietários do Correio da Manhã, embora mantivesse uma relação cordial
com Paulo Bittencourt (o patrão). A ortodoxia política o levaria ao
exagero de não comparecer ao jantar pelo aniversário de Bittencourt. A
José Condé, que passava a lista de adesões, afirmaria:
– Não me sento à mesa com patrão. Todo patrão é filho da puta! O Paulo é o que meno conheço, mas é patrão.
No dia seguinte, Bittencourt se queixaria:
– Mas, Graciliano, como é que você me faz uma coisa dessas?
– Paulo, eu o repeito, mas você é patrão …
– Mas eu sou um patrão diferente.
– Não, Paulo. Todo patrão para mim é ..,
– … filho da puta. Já sei que você xingou minha mãe.
O comunista e o burguês acabariam rindo juntos.
Paulo
Bittencourt gostava de provocar Graciliano por suas ideias socialistas.
Quando o Correio da Manhã recebeu novas máquinas, Paulo o alfinetaria:
– Imagine se vocês fizessem uma revolução e vencessem. Todo esse parque gráfico seria destruído.
Graciliano o cortaria:
–
Só um burro ou um louco poderia pensar isto. Se fizéssemos a revolução e
vencêssemos, só ia acontecer uma coisa. Em vez de você andar por aí,
viajando pela Europa, gastando dinheiro com mulheres, teria que ficar
sentadinho no seu canto trabalhando como todos nós”.
Esse livro, O velho Graça,
tem uma característica até hoje pouco destacada. Em vez da pura leitura
de uma biografia, desperta no leitor uma simpatia profunda pelo
biografado. Nele Graciliano Ramos cresce como escritor em uma rara
empatia, como um irmão mais que amigo, ou como um amigo mais que irmão.
Enfim, como um camarada, fraterno, admirável.
* Versão revisada pelo autor de artigo publicado originalmente no Vermelho
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Leia aqui a orelha da nova edição, assinada por Alfredo Bosi, e a quarta capa, de Wander Melo Miranda. Confira, abaixo a programação dos debates e autógrafos de lançamento do livrono Rio de Janeiro (27/11) e em São Paulo (30/11)
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Urariano Mota
é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e
jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e
outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do
Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas
Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos.
Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
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