01/04/2012
LIMITES DA REIFICAÇÃO: NOTAS SOBRE O SUJEITO REVOLUCIONÁRIO EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE
Marcos Nobre *
Alcançar a forma de exposição própria da crítica marxista significa, para Lukács, “um retorno ao marxismo original, não-falsificado”1, tal como é possível encontrá-lo na Miséria da filosofia, onde Marx “refuta Proudhon remontando às verdadeiras fontes de seus conceitos: a Ricardo, por um lado, a Hegel, por outro. A análise de onde, como e sobretudo por quê Proudhon tinha de não-entender (missverstehen musste) Ricardo e Hegel, é a fonte da luz que não apenas ilumina sem piedade as contradições de Proudhon, mas que também alcança as razões obscuras que estão na origem de seus erros e que ele próprio desconhecia: as relações entre as classes, de que as suas concepções são expressão teórica” (Gkb, 103; HCC, 47-48).
É por isso que, para Lukács, “não é de modo algum casual que as duas obras fundamentais com que se inicia em termos teóricos o renascimento do marxismo – A acumulação do Capital, de Rosa Luxemburg e O Estado e a Revolução, de Lenin – retomem em termos de exposição (darstellerisch) aquela forma do jovem Marx” (Gkb, 105; HCC, 49). Mas o que pode significar aqui a expressão “jovem Marx”? O Lukács de História e consciência de classe (1923) não leu os chamados Manuscritos econômico-filosóficos nem a totalidade da Ideologia alemã, publicados na íntegra somente em 19322, o que impossibilita de saída uma distinção nítida entre o “jovem” Marx e o Marx da maturidade. O que, aliás, pode ser aferido na maneira mesma pela qual Lukács pensa a relação entre a Miséria da filosofia e O Capital, pois se este, como a principal obra teórica de Marx, “só adotou parcialmente esse tipo de apresentação histórica das questões – devido às suas dimensões e à abundância dos problemas ali tratados –, isso não deve ocultar a identidade concreta no tratamento dos problemas (die sachliche Gleichartigkeit der Problembehandlung). O Capital e Teorias da Mais-Valia são, segundo a essência de seu objeto (dem Wesen der Sache nach), uma obra cuja estrutura mais íntima (dessen innerer Aufbau) significa um preenchimento de conteúdo do problema esboçado brilhantemente na Miséria da filosofia, dotado também de grande alcance em termos de apresentação” (Gkb, 103; HCC, 48).
É de se notar aqui, entretanto, que, se não se pode falar, em 1923, de uma distinção entre o jovem Marx e o Marx da maturidade tal como a conhecemos depois de 1932, Lukács não apenas insiste nessa distinção como valoriza sobremaneira os escritos de juventude. Como pudemos ler no texto citado acima, Lukács afirma que O Capital é um “preenchimento de conteúdo” (eine inhaltliche Erfüllung) do problema esboçado na Miséria da filosofia, o que significa conferir a esta obra uma estatura invulgar, mesmo para alguém que não conheceu a totalidade da produção do jovem Marx. Se, portanto, a expressão “jovem Marx” é nebulosa em Lukács – significando, aproximadamente, a produção de Marx até a Miséria da filosofia –, nem por isso ela deixa de ser fundamental. Por outro lado, dizer que Lukács volta ao jovem Marx significa também que ele, mesmo tendo um acesso fragmentário ao universo da produção marxiana de juventude, trouxe à tona elementos importantes desse período, ainda que não estivesse em condições de tematizá-los em toda sua amplitude e alcance 3.
Mas qual é então o sentido do recurso de Lukács ao “jovem Marx” em História e consciência de classe? Vimos que Lukács enfatiza, na Miséria da Filosofia, a referência às relações entre as classes que estaria na base da incapacidade de compreensão por Proudhon de Ricardo e Hegel. Ao passar à comparação com O Capital, encontramos dois movimentos simultâneos no texto de Lukács. De um lado, temos “a identidade concreta no tratamento dos problemas” entre os universos de textos da juventude e da maturidade, marcando, portanto, a unidade e a continuidade da obra de Marx em seu conjunto. Por outro lado, entretanto, Lukács nos diz que O Capital adotou “apenas parcialmente” o tipo de apresentação histórica das questões que seria próprio da Miséria da Filosofia, o que significa, a seu ver, que é preciso ler O Capital como “um preenchimento de conteúdo do problema esboçado brilhantemente na Miséria da Filosofia”, o que significa que é preciso ler O Capital também da perspectiva daquele texto de juventude.
Penso, neste ponto, que a ênfase de Lukács nas “relações entre as classes” que seria central na Miséria da Filosofia e, de certo modo, ficaria obscurecida em O Capital em virtude do modo de apresentação que lhe é próprio, pode nos ajudar a responder à questão da posição dos escritos do jovem Marx em História e consciência de classe. O recurso de Lukács ao jovem Marx, a meu ver, é uma tentativa de escapar às dificuldades que encontrou na apresentação própria a O Capital para a determinação do sujeito revolucionário. Pois que se trata de desvendar o sujeito oculto sob a aparência coisal da realidade imediata, o sujeito que produz essa realidade. Esse sujeito – o proletariado enquanto classe – produz praticamente essa imediatidade e, por isso, tem diante de si a possibilidade de tornar consciente esse processo; o que significa: transformar a própria forma de objetividade do objeto4, suprimir a cisão entre a teoria e prática, percebendo esses dois momentos (antes opostos) como momentos, como momentos de um único processo do qual o proletariado é o sujeito. Significa, portanto, que o operário, como momento da classe, abandona sua posição de portador (Träger) de relações de produção.
Nesse sentido, cabe lembrar antes de mais nada que “o discurso de O Capital tem como objeto central não o operário e o capitalista (o que poderia ser dito, de um modo bastante geral, do discurso sobre a luta de classes) – mas o próprio capital. Ora,que é o capital, e que representam em relação a ele e o operário e o capitalista? A resposta a esta questão nos conduz à problemática do sujeito e do predicado. O capital, diz, com efeito, o Capítulo 4 (original) do Tomo I de O Capital, é sujeito”5. Ou, nas palavras de Giannotti, no caminho de Marx em direção à maturidade, “o fundamento se desloca da relação sujeito-objeto para uma objetividade-sujeito: a mercadoria”6.
Onde encontrar, nesse contexto, o sujeito revolucionário? A resposta de Lukács passa pela citação d’A Sagrada Família com que culminam os dois parágrafos introdutórios ao ensaio “O ponto de vista do proletariado”: “A classe proletária e a classe do proletariado apresentam a mesma auto-alienação humana. Mas a primeira sente-se confirmada e à vontade nesta auto-alienação, reconhece a alienação como seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana; a segunda sente-se aniquilada na alienação, enxerga nela sua impotência e a realidade de uma existência inumana”. Mas passa também pela citação da Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, tomada por Lukács como epígrafe para o ensaio “A reificação e a consciência do proletariado”: “Ser radical significa pegar a coisa pela raiz. Para o homem, entretanto, a raiz é o próprio homem”7.
No caso do texto d’A Sagrada Família, Lukács visa ao resultado seguinte: “na sua imediatidade, a realidade objetiva do ser social é ‘a mesma’ para o proletariado e para a burguesia. Mas isso não impede que, como conseqüência das diferentes posições que ocupam as duas classes no ‘mesmo’ processo econômico, venham a ser fundamentalmente diversas as categorias específicas da mediação através das quais a realidade puramente imediata se transforma para ambas na realidade objetiva propriamente dita” (GKb, 269; HCC, 169). Mas tal resultado da argumentação lukácsiana depende também da explicitação do elemento vital presente na conhecida passagem de Marx da Introdução à crítica do filosofia do direito de Hegel citada acima. Comecemos por aqui.
O recurso ao jovem Marx e a conseqüente referência a uma natureza humana abre a possibilidade de constituição de um sujeito humano, mas exige ao mesmo tempo que sejam mostradas as credenciais em nome das quais a dialética hegeliana é posta em xeque. Em primeiro lugar, “faz-se mister um fundamento anterior à lógica cujo desenvolvimento elucidará tanto as determinações abstratas do pensamento formal como os movimentos da natureza e da história, inseparáveis da categoria de totalidade. O conceito de trabalho vem responder a essas dificuldades”8. Mas isso ainda não é o suficiente, pois quem (como Feuerbach, Stirner, Marx, Sartre, etc.) pretende “se opor à lógica hegeliana sem abandonar a dialética”, terá necessidade “de um conceito, ou melhor, de um processo vital, que vincule o sujeito ao universal”9. Mas, “os dois termos a serem vinculados não podem ser completamente heterogêneos”. Como prossegue o texto de Giannotti, “por sujeito não se entenderá a mônada absolutamente individual, fechada sobre si mesma, pois desse modo nunca formará a universalidade concreta da organização, onde cada parte age e se coloca em relação ao todo ( ... ) . De sorte que o sujeito, desde o início, será organizado, possuirá uma universalidade básica potencial a ultrapassar o isolamento da individualidade imediata. Feuerbach e o jovem Marx interpretam esse sujeito como o homem na qualidade de ser genérico (Gattungswesen)”10.
Apesar da referência à “natureza humana”, seria inteiramente despropositado atribuir ao Lukács de História e consciência de classe o “antropologismo” do jovem Marx. Quando “o homem se tornou medida de todas as coisas (sociais)” (GKb, 320; HCC, 206) não estamos mais falando do seu ser genérico, pois estaríamos então sujeitos aos perigos de todo “humanismo” ou “ponto de vista antropológico” (basta pensar no exemplo do pragmatismo moderno): “se o homem é tomado como medida de todas as coisas, se, com a ajuda desse ponto de partida, deve ser suprimida (aufgehoben werden soll) toda transcendência, sem que, simultaneamente, o próprio homem seja medido por esse ponto de vista, sem que a ‘medida’ seja aplicada a si mesma, ou – mais precisamente – sem que o homem seja tornado igualmente dialético, então o homem assim absolutizado simplesmente passa a ocupar o lugar daqueles poderes transcendentes que ele tinha sido chamado a explicar, dissolver e substituir metodologicamente” (GKb, 322-323; HCC, 208).
Não se trata, portanto, de secundar o jovem Engels em seu entusiasmo pela vivacidade com que Carlyle descreve a dilapidação do humano no capitalismo, pois isso significa opor a essa imagem um ser do homem fora do tempo. Portanto: “A solução pode ser encontrada se esses dois momentos forem tomados em sua união dialética indissolúvel, tal como aparecem no processo de desenvolvimento real e concreto do capitalismo; se, portanto, a aplicação correta das categorias dialéticas ao homem como medida das coisas for igualmente a descrição completa da estrutura econômica da sociedade burguesa, o conhecimento correto do presente. Pois que, do contrário, a descrição terá de recair – embora pertinente nos detalhes- no dilema do empirismo e do utopismo, do voluntarismo e do fatalismo, etc.” (GKb , 328; HCC, 212).
Se podemos dizer que o recurso de Lukács ao jovem Marx não implica nenhuma espécie de “antropologismo” (mesmo que eventualmente “negativo”), também parece agora mais clara a idéia de que a pretensão de ler a obra de juventude a partir dos textos de maturidade é pelo menos ambígua. O mesmo Lukács nos diz que a perspectiva de leitura da maturidade é necessária, pois, sem a “descrição completa da estrutura econômica da sociedade burguesa”, estaríamos nos enredando nos dilemas típicos do entendimento, aqueles que nos oferecem duas alternativas igualmente aceitáveis, como as oposições entre empirismo e utopismo, entre voluntarismo e fatalismo. Mas, ao mesmo tempo, Lukács busca justamente a formação de um sujeito revolucionário que não esteja à mercê desses dilemas.
E esse movimento teórico (que vai tomar uma direção determinada com a consciência de classe e o partido) passa pelo “conhecimento correto do presente”, pelas dificuldades trazidas pelo vertiginoso desenvolvimento capitalista que desatina numa guerra mundial, como também pela revolução proletária na Rússia. Neste ponto, a perspectiva lukácsiana talvez possa ser expressa com palavras de Ruy Fausto: “Giannotti critica o caráter subjetivo da teoria das necessidades do jovem Marx. Estamos de acordo com ele no que se refere à fundação subjetiva das necessidades. Mas seria preciso insistir sobre o fato de que é a fundação subjetiva da crítica das necessidades que é criticável, não digamos, o nível subjetivo do seu objeto ( ... ). Vemos que o defeito dos Manuscritos não é o de ter acentuado a subjetividade: no capitalismo contemporâneo, as relações de produção, se se pode dizer assim, passam pelo interior da subjetividade (de uma maneira que não é a da determinação simples da subjetividade dos agentes enquanto suportes). A insuficiência dos Manuscritos é a de fundar pela subjetividade”11.
Como já referido, o Lukács de História e consciência de classe não leu os Manuscritos, mas a argumentação aqui desenvolvida pretende justificar a irrelevância relativa deste fato. Por outro lado, porque escreve com os Manuscritos à sua disposição, Ruy Fausto esclarece elementos presentes em Lukács (posto que presentes nos textos de juventude de Marx a que ele teve acesso) . Nesse sentido, podemos, por exemplo, comparar o texto de Ruy Fausto que vem de ser citado com um seu artigo de mesmo tema12: “Com efeito, o que parece ocorrer no capitalismo contemporâneo é que, diferentemente do capitalismo clássico, o conjunto da individualidade, inclusive no seu nível mais profundo, é determinada imediatamente pelo sistema. Na realidade, sempre houve determinação e talvez em todos os níveis, mas para alguns deles, na forma mais clássica, provavelmente não havia uma determinação direta. A produção das necessidades existia, mas não existia efetivamente, isto é, como resultado da atividade (altamente “tecnicisada”) de um setor da produção. Nesse sentido, ela era apenas pressuposta. Ora, essa situação nova em que tudo se passa como se o modo de produção ele próprio passasse pelo interior da individualidade, como se os indivíduos não estivesse mais naquela forma clássica da dependência do sistema para qual se utilizou o termo “suporte” (Träger) , mas estivessem numa outra, mais profunda, que vai além do conceito clássico de suporte, tudo se passa como o sistema tivesse reposto uma subjetividade profunda que no capitalismo clássico era mais ou menos pressuposta”.
É curiosa a proximidade desse texto de passagens de Lukács como aquela que fala da “racionalização do mundo, aparentemente integral, atingindo o mais profundo do ser físico e psíquico do homem” (GKb, 195; HCC, 115), mas é preciso notar, antes de mais nada, que uma ambigüidade presente no primeiro texto de Ruy Fausto foi perdida quando passamos ao segundo. No primeiro texto, as relações de produção passam pelo interior da subjetividade “de uma maneira que não é a da determinação simples da subjetividade dos agentes enquanto suportes”; no segundo, a dependência do sistema é qualificada como “mais profunda”.
De uma certa maneira, essa ambigüidade e essa determinação do sujeito no capitalismo é também uma ambigüidade de História e consciência de classe. Lukács detecta uma passagem das relações de produção pelo interior da subjetividade “de uma maneira que não é a da determinação simples da subjetividade dos agentes enquanto suportes” (como acabamos de ler em Ruy Fausto), e isso significa fugir ao campo de forças d’O Capital, em busca de um sujeito revolucionário (donde o recurso ao jovem Marx) cujo modelo dialético está dado na Fenomenologia do Espírito de Hegel. Mas esse movimento não é linear, pois que, se a racionalização do mundo é aparentemente integral, ela não deixa de atingir “o mais profundo do ser físico e psíquico do homem”. Por outras palavras, se o sistema repôs “uma subjetividade profunda que no capitalismo clássico era mais ou menos pressuposta”, esse movimento tem duas facetas: pode significar a catalização de um potencial revolucionário que irá instaurar o verdadeiro sujeito da história, ou caminhar para uma determinação cada vez mais completa e acabada da subjetividade pelo sistema.
É justamente essa ênfase na subjetividade que vai marcar o esforço teórico de História e Consciência de Classe; um esforço que, não obstante, diz pressupor as análises econômicas d’O Capital, embora se afastando, em certo sentido, da lógica da apresentação desse texto de maturidade de Marx. Como podemos observar na referência ao caráter central e estrutural da mercadoria na sociedade capitalista analisada por Marx: “somente nesse caso pode ser descoberto na estrutura da relação-mercadoria (Warenverhãltnis) o protótipo (Urbild) de todas as formas de objetividade e de todas as formas correspondentes da subjetividade na sociedade capitalista” (GKb, 170; HCC, 97) . Cabe, portanto, buscar uma determinação da subjetividade no capitalismo que venha a romper o círculo mágico da reificação, que permita destruir praticamente a subjetividade na forma do Träger.
Para Lukács, essa referência à prática indica já o que significa deixar de encarar a realidade como coisa em si: dizer que “o ato de tornar consciente transforma a forma de objetividade do objeto” (GKb, 308-309; HCC, 198) aponta para a idéia de que as diferentes posições ocupadas pelas classes no processo econômico podem produzir “formas de objetividade” diversas, conforme a atitude que tiverem diante da realidade. Isto nada mais é do que a possibilidade de superar a ideologia enquanto mistificação (vale dizer: como dominação), buscando mostrar que a mercadoria enquanto protótipo da forma de objetividade no capitalismo convive com a possibilidade de sua destruição. Neste ponto confluem vários momentos da teoria lukácsiana. Da perspectiva da “forma de objetividade” lukácsiana, fazer da realidade coisa em si é naturalizar uma “forma” como única “forma de objetividade” possível, é abstrair o conteúdo histórico concreto que lhe dá vida; mas tentar escapar a essa naturalização com o recurso à empiria histórica (numa atitude meramente “descritiva”), peca pelo desconhecimento sistemático do caráter mediato da realidade. Somente pela referência à mediação é possível não apenas trazer à luz os momentos da construção dos objetos da realidade como também vislumbrar tendências reais que apontem para a superação da reificação e dos impasses do pensamento burguês.
Para tanto, esta superação não pode ser um mero movimento de pensamento, tem de se efetivar na práxis concreta do proletariado na luta por sua emancipação, já que é apenas a sua posição única no processo social o que lhe garante a possibilidade de atingir o conjunto da mediação, a sociedade como totalidade. Atribuir à realidade objetiva o caráter de coisa em si é recusar a mediação em seu significado mais profundo, em seu papel construtivo enquanto forma de objetividade, é “supor que a transformação (Umwandlung) do lado imediato em efetividade (Wirklichkeit) efetivamente conhecida (wirklich erkannte) (e não apenas sabida (bekannte) imediatamente), sua transformação, destarte, em efetividade objetiva – a ação (Wirkung), portanto, da categoria da mediação na imagem de mundo (Weltbild) – seja algo apenas ‘subjetivo’, somente uma ‘avaliação’ (Bewertung) de uma realidade que ‘permaneceria idêntica’” (Gkb, 269; HCC, 169-170).
Aqui surge a possibilidade da introdução de um “ponto de vista” sem que estejamos condenados ao “relativismo”, ao meramente “subjetivo”. O capital pode ser o sujeito do processo econômico, mas não é o sujeito da história: a história é “história das formas de objetividade” de que os homens buscam se assenhorar teórica e praticamente, e, nesse processo, o “tornar consciente alerta a própria forma de objetividade do objeto”. E esse movimento que destrói a fixidez e a imobilidade da realidade, destrói também qualquer possibilidade de se postular um Absoluto: assim como não se pode postular um “homem” fora da história (para então “compará-lo” à sua realidade presente), também não é possível pretender um “ser fixo das coisas particulares” por trás de um rio no qual não se entra duas vezes (Cf. Gkb, 312; HCC, 200). Lukács hesita em caracterizar a dialética hegeliana como sendo de modelo heracliteano, mas, é evidente que também não a confunde com a forma marxista: “Hegel representa a transição metodológica porque nele se encontram os elementos das duas concepções, numa mistura que, do ponto de vista metodológico, não se encontra ainda totalmente clarificada”. Não obstante isso, Lukács prossegue (em nota de rodapé) dizendo que “o conceito de coisa que se suprime (der sich aufhebende Dingbegriff) de Heráclito demonstra, de fato, a maior afinidade com a estrutura de reificação do pensamento moderno”. E, em seguida: “É significativo que a dialética de Hegel e de Lassalle tenha superestimado a ‘modernidade’ de Heráclito” (GKb, 312; HCC, 200).
Mais precisamente, não se trata de escapar ao relativismo, mas de aplicar a ele sua própria regra, ou, como diz Merleau-Ponty, de “relativizar o relativismo”13. De fato, “só faz sentido lógico falar de relativismo onde se admite um ‘absoluto’”(Gkb, 323; HCC, 208), o que faz com que o “ponto de vista” ganhe um significado muito particular, distinto do uso habitual, em que costuma passar por “opinião”: “A verdade – que no período da ‘pré-história da sociedade humana’, no período da luta de classes, não pode ter outra função senão a de fixar as diferentes atitudes possíveis diante de um mundo (essencialmente) incompreendido, em conformidade com as exigências de dominação do mundo circundante e da luta, e que, portanto, só pode ter uma ‘objetividade’ em referência ao ponto de vista e às formas de objetividade correspondentes às classes tomadas isoladamente – adquire um aspecto inteiramente novo tão logo a humanidade compreende claramente o seu próprio fundamental vital e, em conseqüência o transforma”(Gkb, 325-326; HCC, 210). Para Lukács, esse processo “começa quando o ponto de vista do proletariado se torna consciente” (razão pela qual o termo “relativismo” pode induzir a erro quando aplicado ao materialismo histórico).
O termo “humanismo”, por exemplo, se não for determinado, pode dizer qualquer coisa: pragmatismo, direitos, humanos, teosofia, Charles Dickens. Cumpre mesmo distingui-lo de movimentos à primeira vista semelhantes, como as descrições da desumanização do capitalismo no Past and Present de Carlyle ou o autor responsável pela virada materialista da dialética: Feuerbach. Lukács pretende mostrar que Marx se distingue de Feuerbach (mesmo no período em que esteve sob sua influência direta) em dois pontos: “Primeiro, porque nunca fala do homem sem mais, do homem abstrato absolutizado, mas sempre o pensa como membro de uma totalidade concreta, da sociedade. Esta tem de ser explicada a partir dele, mas só quando o próprio homem foi integrado nessa totalidade concreta e elevado à verdadeira concreção. Em segundo lugar, porque o próprio homem participa de modo decisivo do processo dialético, como base objetiva (als gegenständliche Grundlage) da dialética histórica, como sujeito-objeto idêntico que repousa em seu fundamento (als das ihr zugrunde liegende identische Subjekt-Objekt); ou, para lhe aplicarmos a categoria abstrata inicial da dialética: porque a um tempo (zugleich) é não é”14.
Assistimos, então, à retomada do sujeito pressuposto da Fenomenologia do Espírito, às “etapas do ser” e à produção do objeto como superação da imediatidade (Cf. GKb, 276; HCC, 174). Sabemos, no entanto, que “economia e política mundiais são hoje formas de existência muito mais imediatas do que eram no tempo de Marx”(GKb, 340; HCC, 220), e isto significa que as próprias relações de produção passam a determinar a subjetividade de uma maneira muito mais violenta e profunda: elemento que pode significar a catalização das energias revolucionárias ou uma crescente brutalidade na forma da dominação capitalista. A realidade da subjetividade na forma do Träger convive com a “realidade” do sujeito-objeto idêntico da história, o “nós” da gênese do mundo.
Daí que a própria “idéia” de “verdade” tenha de ser colocada na forma da segunda tese sobre Feuerbach: “A questão de saber se a verdade objetiva é um atributo do pensamento humano não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. O homem tem de provar na prática a verdade, ou seja, a realidade e o poder, a mundanidade (Diesseitigkeit), de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou irrealidade de um pensamento, isolada da práxis, é uma questão puramente escolástica” (MEW 3, 5). O que, no Lukács de História e consciência de classe, mostra igualmente a falsidade da teoria do reflexo: “Para a teoria do reflexo, isso significa que o pensamento, a consciência, tem de se orientar pela realidade, que o critério da verdade consiste na adequação à realidade. Ocorre que esta realidade não é de maneira alguma idêntica ao ser empírico-factual. A realidade não é, ela vem a ser”15.
A consciência, portanto, não se confunde com a aparente permanência das coisas que orienta nossa vida cotidiana e que nos leva a atribuir a elas existência “empírico-factual”. Ela tem de ser a consciência de cada etapa do processo, tem ela mesma de “vir a ser”. Já a epígrafe do ensaio “Consciência de classe” (retirada d’ A Sagrada Família) nos advertia a não confundir “consciência de classe” com a consciência empírica da classe, a representação que se faz “este ou aquele proletário ou mesmo todo o proletariado”: “Só quando a consciência do proletariado for capaz de mostrar aquele passo para o qual conflui objetivamente a dialética do desenvolvimento, sem que, entretanto, esse passo possa ser dado por força da sua própria dinâmica, só então a consciência do proletariado chegará a ser consciência do próprio processo, só então o proletariado aparecerá como o sujeito-objeto idêntico da história, só então sua prática será transformação da realidade” (GKb, 339; HCC, 219).
Não há inexorabilidade da revolução proletária. É certo que todos os elementos do processo de produção capitalista são condição prévia indispensável (GKb, 302; HCC, 193) para a constituição do proletariado como classe, mas a certeza da vitória final da revolução não tem nenhuma “garantia” material, mas apenas a garantia metodológica do método dialético (GKb, 116; HCC, 57): “Coube a Lenin o mérito de haver redescoberto esse aspecto do marxismo que indica o caminho para o tornar consciente o seu cerne prático. Sua exortação sempre repetida para que agarremos com todo ímpeto aquele ‘próximo elo’ da cadeia de desenvolvimento do qual depende no dado instante o destino da totalidade, sua recusa de todas as pretensões utópicas, seu ‘relativismo’ e sua ‘Realpolitik’, portanto, significam de fato o tornar atual e o tornar prático as teses sobre Feuerbach do jovem Marx”(GKb, 399; HCC, 219-220).
Esta nova referência ao jovem Marx também nos leva ao nosso próximo problema, a saber, a necessidade de pensar a passagem da “consciência de classe” ao “partido”, este o fiel depositário daquela, para Lukács. Veremos adiante que essa passagem não se faz sem dificuldades, já que ela exigirá o confronto de elementos leninistas e luxemburguistas em História e consciência de classe. Pelo momento, entretanto, cabe ressaltar inicialmente que a autonomia organizacional do partido frente às demais instâncias organizativas do proletariado é exigida pela heterogeneidade mesma da consciência empírica da classe, que, normalmente guia-se em sua ação pela “média”. A relação do partido com essa “média” de consciência pode ser formulada nos seguintes termos: “a clara elaboração da mais alta possibilidade dada objetivamente num instante determinado – a autonomia organizacional da vanguarda consciente, portanto – é ela própria um meio de conciliar (ausgleichen) a tensão (Spannung) entre essa possibilidade objetiva e o estado da consciência de fato da média, de modo a fazer avançar a revolução” (GKb, 496; HCC, 334)16.
Esse modelo de partido, o da “vanguarda consciente”, é claramente o modelo exposto por Lenin no Que fazer?17. Abandonada à sua sorte, a classe proletária não é capaz de se desvencilhar do “registro sindical” da luta econômica, não é capaz de fazer da luta econômica um momento da luta política, que é a arena reservada à luta de classes. Lenin, neste ponto, repete Kaustky: o portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses; é do cérebro de alguns espécimes dessa família que nasceu o socialismo contemporâneo, e cabe a eles introduzir na luta de classes do proletariado a consciência socialista. Traduzido em termos lukácsianos, o diagnóstico que sustenta tal posição é o de um tal predomínio da reificação que os elementos para superá-la têm de ser organizados “de fora” do processo produtivo em sentido estrito.
Esta possibilidade já estava inscrita no Marx da Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel: “O passado revolucionário da Alemanha é teórico: é a Reforma. Como outrora ocorria com o monge, é agora na cabeça do filósofo que começa a revolução” (MEW 1, 385). E mais adiante: “A cabeça dessa emancipação é a filosofia, seu coração o proletariado” (pág. 391). Quem apontou para essa conexão foi Michel Löwy, que comenta: “é notável a analogia entre os temas da Introdução e as concepções do ideólogo mais genial da teoria do ‘partido, cabeça da classe operária’: o Lenin de 1902-1904. Como Marx em 1844, Lenin escreve no Que fazer? que o socialismo nasce no cérebro dos intelectuais e deve depois penetrar na classe operária, através de uma ‘introdução a partir de fora’: o partido desempenha aqui o mesmo papel que os filósofos ali”18.
Mas se o partido, como depositário da “consciência de classe”, pode dar o padrão de medida para a correta avaliação de uma ação da classe, então como poderemos aplicar essa “medida” a si mesma, como poderemos tornar o partido “igualmente dialético”, tal como o próprio Lukács exigia há pouco no caso do ‘humanismo’ ou ponto de vista antropológico”? A única maneira de tentarmos realizar essa tarefa é não fugir à “autocrítica” (que passa agora a ser o “elemento vital” do proletariado, Cf. GKb, 169; HCC, 96); algo muito distante, a meu ver, daquele modelo de superação da imediatidade que nos prometia o ensaio “A reificação e a consciência do proletariado”, ancorado na vitalidade da atividade cotidiana do proletário e que estava ligado, em “O ponto de vista do proletariado”, ao ser social da classe proletária: “se a burguesia se detém teoricamente na imediatidade, enquanto o proletariado vai além dela, isso não acontece por acaso, nem se trata de um problema puramente teórico-científico. Na realidade, exprime-se antes a diversidade do ser social das duas classes” (GKb, 288; HCC, 183). E a razão por que o caráter dialético do processo histórico aparece “de maneira mais irrecusável” no ser social do proletariado é enunciada em toda a sua crueza vital: “Para o proletariado, o acesso à consciência da essência dialética de sua existência é questão de vida ou morte, ao passo que a burguesia, na vida cotidiana, oculta a estrutura dialética do processo histórico com as categorias reflexivas abstratas da quantificação, da progressão infinita,etc., de maneira que vive catástrofes não-mediadas nos momentos de ruptura” (GKb, 290; HCC, 184).
É curioso notar, entretanto, que é exatamente essa “vida cotidiana” e esse impulso vital dotado de uma “intenção para a totalidade” que transparecem no elogio de Lukács a Rosa Luxemburg, no ensaio “Rosa Luxemburg marxista”: “na unidade dialética da teoria e prática que Marx reconheceu e tornou consciente na luta de emancipação do proletariado, não pode haver mera consciência, nem como ‘pura’ teoria, nem como mera exigência, como mero dever ser, como mera norma da ação. Também a exigência tem aqui a sua realidade. Isto quer dizer que o nível do processo histórico que imprime à consciência de classe do proletariado um caráter de exigência, um caráter ‘latente e teórico’, tem de se afigurar como realidade correspondente e, enquanto tal, intervir ativamente na totalidade do processo. Essa figura da consciência de classe proletária é o partido. Não foi por acaso que a mesma Rosa Luxemburg reconheceu, mais cedo e mais claramente que muitos outros, o caráter essencial espontâneo das ações de massa revolucionárias (com o que ela ressaltou um outro aspecto da constatação tratada anteriormente: essas ações são produzidas necessariamente pela necessidade do processo econômico), da mesma maneira com tinha claro, bem antes de muitos outros, qual era o papel do partido na revolução” (GKb, 113-114; HCC, 55).
Como conciliar esse texto com o seu antípoda leninista? O próprio Lukács se encarrega de fazê-lo, a bem da “coerência” do livro. Em nota de rodapé, somos informados do seguinte: “Sobre os limites da visão de Rosa Luxemburg, V. os ensaios ‘Observações críticas etc.’ e ‘Observações de método quanto à questão da organização’. Contentamo-nos aqui em expor o seu ponto de vista” (GKb, 114; HCC, 55, nota). Antes mesmo de examinarmos tais críticas, é preciso ressaltar – o que é essencial para a argumentação desenvolvida aqui – que essa curiosa nota, que aparentemente pretende tão-só limitar o texto a uma “exposição” do “ponto de vista” de Rosa, mas que é aposta a um texto francamente entusiasta das suas posições, não estava presente no manuscrito original19, tendo sido acrescentada posteriormente por Lukács. Esse acréscimo, a meu ver, faz prova da tentativa de Lukács de reconstruir (tal como podemos observar no “Prefácio” de 1922) História e Consciência de Classe a partir da posição leninista que ele foi assumindo ao longo da redação do volume20.
Nas “Observações de método...”, Lukács vai escrever que Rosa abriu a possibilidade de “um grande passo no sentido de um claro conhecimento da questão da organização”, mas para alcançar sua “função correta no processo da revolução”, seria necessário que ela “reorientasse organizativamente a questão da direção política, que ela aclarasse os momentos organizativos que permitem ao partido do proletariado ficar apto para a direção política” (GKb, 456; HCC, 306). Mais adiante, Lukács vai acrescentar mais um elemento à crítica: “Rosa Luxemburg reconheceu, muito corretamente, que ‘a organização deve formar-se como produto da luta’. Simplesmente, valorizou em demasia
o caráter orgânico deste processo e subestimou a importância do seu elemento consciente e conscientemente organizador” (GKb, 482; HCC, 324-325).
Nesse sentido, Lukács apresenta seu livro como tendo um fio condutor que poderia ser enunciado, por assim dizer, na forma de uma divisão de tarefas: Rosa e a totalidade, Lenin e o partido; Rosa e o método, Lenin e a organização da classe. Isto pode ser contatado no “Prefácio” (de 1922), escrito depois de concluído o livro. O terceiro parágrafo do texto diz: “Rosa Luxemburg foi o único discípulo que prosseguiu a obra da vida de Marx, tanto no sentido da matéria econômica (im sachlichökonomischen Sinne) como no sentido do método econômico (im methodisch-ökonomischen Sinne)” (GKb, 50; HCC, 7). E o parágrafo seguinte vai grifar diferentemente, a propósito de Lenin: “Escolhido este caminho (o da crítica teórica da obra de Rosa Luxemburg, MN), os escritos e discursos de Lenin tornam-se metodologicamente decisivos”, e isso se deve ao fato de ele “ter elevado a essência prática do marxismo a um nível de clareza e concreção que nunca antes tinha sido atingido; de ter salvo esta dimensão de um esquecimento quase total, e, por este ato teórico, nos ter devolvido a chave de uma compreensão correta do método marxista”(GKb, 50; HCC, 8). Donde a tentação, portanto, para uma “tentativa de síntese entre o leninismo e o luxemburguismo”21.
Pretendo, entretanto, que afirmar que algo como um luxemburguismo inicial superado pelo ponto de vista de Lenin, ou mesmo uma tentativa “mais abrangente”a partir da consciência atribuída faz com que desapareçam as tensões do pensamento lukácsiano, tensões que me parecem exprimir um elemento central e rico em conseqüências na posição de destaque que me parece ter História e consciência de classe no debate marxista . Noutras palavras, entendo que qualquer tentativa de pensar a relação Rosa/Lenin em História e Consciência de Classe como “unidade”, “superação” ou “integração numa figura mais alta” perderá toda a riqueza do problema. Dizer que Lukács não abandona, em termos de importância teórica, uma perspectiva em prol da outra, não significa de modo algum pretender que Lukács não caminhou em direção ao leninismo (o que de fato ocorreu). Mas, para mim, não está aí o interesse de História e Consciência de Classe22.
Do meu ponto de vista, a grandeza de Lukács reside no fato de manter,lado a lado, duas concepções diversas de consciência de classe, duas concepções diferentes do que seja o partido. E sabemos (pois é de Lukács que estamos falando) que não se trata unicamente de “concepções de partido”: são diferentes concepções de teoria e prática, são idéias diversas de totalidade, de avaliação da realidade presente. E me parece justamente ter sido a avaliação da realidade presente que levou Lukács ao leninismo. Disto, entretanto, não me parece devermos concluir por uma superioridade intrínseca do paradigma leninista. Dito de outra maneira, parece-me que a questão dos limites da reificação tem de ser posta a cada vez nas condições concretas das transformações internas do modo de produção capitalista e da configuração específica da luta de classes.
Recolocada nestes termos (e para além do clássico “no caráter formal de sua própria racionalidade”, GKb, 195; HCC, 115), a virada de Lukács em direção ao leninismo parece indicar com suficiente clareza qual era naquele momento a sua avaliação com respeito às condições de superação da reificação pelo proletariado. E, no entanto, tal tendência não é capaz de apagar o brilho de Rosa Luxemburg. Ao contrário, faz com que ganhe em intensidade, pelo efeito elementar do contraste. A tensão Rosa/Lenin seria, portanto, a resposta possível aos dilemas colocados pelo tempo presente. Toda teoria e prática tem de estar imersa nessa ambivalência, sem qualquer pretensão de resolvê-la, sintetizá-la, integrá-la a priori23.
Problema, aliás, que já estava colocado na leitura de Lukács do jovem Marx24. Da idéia de que a Teoria tem de se apoderar das Massas, e não do Estado, “tomando contudo a via elevada da Aufklärung” (como pudemos ler no texto de Paulo Arantes, nota 15), podemos concluir tanto o partido vanguarda de Lenin como caminhar para uma hegelianização desse Esclarecimento (tendo por modelo a Fenomenologia do Espírito) que deságua nas ações de massa luxemburguistas. Lukács expressou como ninguém esses que são os dilemas da teoria frente ao capitalismo contemporâneo.
Responder à pergunta “o que é o marxismo ortodoxo?” significa antes de mais nada levar até o fim os impasses e as ambigüidades do processo do Esclarecimento.
* Professor do Departamento de Filosofia do IFCH da Unicamp e pesquisador do CEBRAP. Este artigo se baseia em dois capítulos de minha Dissertação de Mestrado Limites da reificação. Um estudo sobre História e consciência de classe, de Georg Lukács, USP, mimeo, 1991. Agradeço a Andrea Marim pelo cuidado e carinho com que recuperou o texto da Dissertação.1 Geschichte und Klassenbewusstsein, Luchterhand, 1988, p. 103 (doravante abreviado GKb); História e consciência de classe, Elfos, 1989, p. 47 (doravante abreviado HCC).
2 Não obstante isso: o capítulo IV do segundo volume d’A ideologia alemã foi publicado em 1847 em Das Westphãlische Dampfboot, revista mensal publicada na Renânia; Bernstein publicou parte de “São Max” em 1903-1904 e outro trecho em 1913; coube a Gustav Meyer a publicação de “O Concílio de Leipzig” e do capítulo II (São Bruno), já em 1921. Lukács leu pelo menos o texto editado por Bernstein, já que o cita. Além disso, é também certo que leu os textos publicados nos Anais Franco-Alemães (ou seja, “A questão judaica”, “Para a crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução” e as três cartas de Marx a Ruge), como também A Sagrada Família e a Miséria da Filosofia, além das Teses sobre Feuerbach (publicadas por Engels em “apêndice” a Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã).
3 Por isso, a expressão “jovem Marx”, empregada neste artigo, não pode pretender à letra da distinção operada após a publicação do conjunto dos textos de juventude; mas é inegável que guarda o espírito desse corte na obra de Marx. No que se segue, pretende-se mostrar o caráter sistemático e necessário do recurso ao jovem Marx por parte de Lukács, bem como as conseqüências desse movimento. Por ora, gostaria tão somente de chamar atenção para o fato de que apenas o último ensaio de História e consciência de classe (“Methodisches zur Organisationsfrage”) tem um texto de Lenin por epígrafe; todos os outros ensaios que registram epígrafes têm textos do jovem Marx como mote.
4Sobre a noção de “forma de objetividade”, consulte-se, entre muitas outras passagens, GKb, 170 (HCC, 97). Para uma análise da expressão e suas origens, ver ainda o capítulo 2 de meu Mestrado Limites da reificação, op. cit., especialmente pp. 42 e seguintes.
5 Ruy Fausto, Marx: Lógica e Política, tomo I, Brasiliense, 1983, pág. 30. A seqüência do texto diz: “(O capital é ‘sujeito que domina’(übergreifendes Subjekt), ‘sujeito automático’ (automatisches Subjekt), ‘sujeito de um processo’ (Subjekt eines Prozesses) (...). O operário e o capitalista são ‘suportes’ desse sujeito, e num sentido (mais ontológico do que propriamente lógico) seus predicados. (A rigor, os predicados do sujeito ‘capital’- seus ‘momentos’ – são o dinheiro e a mercadoria. O operário e o capitalista são suportes do capital, por serem suportes do dinheiro e das mercadorias – inclusive a força de trabalho – enquanto momentos do capital”. No segundo “apêndice” ao volume, “Notas sobre o jovem Marx”, Fausto escreveu que o Marx da Crítica do Direito de Hegel critica Hegel porque este supõe a existência de um sujeito autônomo de que os indivíduos são portadores. O que, guardadas outras diferenças, ele mesmo suporia mais tarde, ao escrever O Capital” (pág. 243). 6 José Arthur Giannotti, Origens da dialética do trabalho. Estudo sobre a lógica do jovem Marx, L&PM, 1985, pág. 258.
7 Marx Engels Werke, vol. 1, Dietz, 1956, pág. 385 (doravante abreviado MEW). Cf. GKb, 170; HCC, 97.8 Giannotti, Origens..., op. cit., pág. 21.9 Idem, ibidem. Ruy Fausto lembra que a “questão da tradução da ‘consciência de si’ por ‘homem’ – ou por‘homem negado’- é complementar à questão da tradução de ‘espírito’ por ‘trabalho’ – ou por ‘trabalhosocial’” (“Sobre o jovem Marx”, in Discurso 13, Polis, 1983, pág. 25, nota). É evidente que aqui se trata debuscar apenas os elementos propriamente lukácsianos da equação.
10 Origens..., op. cit., pp. 21-22.
11 Marx: Lógica e Política, op. cit., pp. 245-246 (nota 3). A polêmica de Ruy Fausto com Giannotti (sobre isso, V. também o “Prefácio” à reedição de Origens da dialética do trabalho), é irrelevante para os nossos propósitos, já que o objetivo é trazer à luz a versão lukácsiana da teoria.
12
“Sobre o jovem Marx”, artigo citado, pág. 50.
13 Les aventures de la dialectique, Gallimard, 1977, pág. 49. As observações de Merleau-Ponty confrontam Weber e Lukács (pp. 49-51) a esse respeito, com nítida vantagem para o último. O presente trabalho se afasta do encaminhamento que Merleau-Ponty dá às suas investigações, mas registra a inspiração teórica das questões presentes nas “aventuras”.
14 GKb, 327; HCC, 211. É interessante notar como o final (principalmente) da passagem recém-citada entra em choque frontal com uma arguta observação de J. A. Giannotti: “O primeiro passo dado na direção de uma dialética materialista foi destarte uma volta ao sujeito vivo e ao concreto imediato, que Feuerbach, sem dúvida o precursor da nova filosofia, identificará à natureza, em particular à natureza humana. Contra as abstrações da filosofia hegeliana ele oporá a riqueza da vida, processo teleológico que se cumpre a si mesmo. Desse modo, as determinações lógicas deverão ocupar uma posição subsidiária, a emergir dos momentos cristalizados da eterna inquietude da vida. No entanto, qual é o alcance dessa crítica da lógica hegeliana? Tomar a vida como ponto de partida significa na verdade inverter por completo a lógica que partia da oposição do Ser e do Nada” (Origens..., op. cit., pp. 20¬21). Também é importante pensarmos, a partir deste texto, como, no caso de Lukács, de fato “as determinações lógicas passam a ocupar uma posição subsidiária”
15 GKb, 347; HCC, 225. Momento em que Engels e o pensamento burguês se confundem novamente: “Pois na doutrina do ‘reflexo’ objetiva-se teoricamente a dualidade insuperável – para a consciência reificada – de pensamento e ser, de consciência e realidade. E desse ponto de vista, tanto faz se as coisas são tomadas como reflexos dos conceitos ou os conceitos como reflexos das coisas, pois, em ambos os casos, essa dualidade adquire uma fixidez lógica insuperável”. (GKb, 342-343). A solução propriamente dialética pode ser encontrada em Giannotti: “Contra Althusser, sustentamos que tal espelhamento só se torna possível porque ocorre na própria realidade um processo de constituição categorial, contraposto ao vir a ser do fenômeno, processo que configura a essência de um modo de produção determinado e, por conseguinte, duma forma de sociabilidade. A essência faz parte de cada momento do concreto sem contudo esgotar-lhe todas as dimensões, de sorte que o discurso somente se tornaria científico quando reproduzisse a ordem dessa constituição ontológica. Esta para nós é a única maneira de explicar o fascínio da ilusão hegeliana e a adequação dos textos da maturidade de Marx” (“Contra Althusser”, in Exercícios de Filosofia, Vozes/CEBRAP, 1980, pág. 90).
16Sobre a apropriação por Lukács da categoria weberiana de “possibilidade objetiva”, consulte-se meu trabalho Limites da reificação, op. cit., capítulos 2 e 4.
17Michel Löwy argumenta em favor de um abandono das teses de 1902-1904 por Lenin depois dos acontecimentos revolucionários de 1905-1906 (Cf. La théorie de la révolution chez jeune Marx, Maspero, 1970, pp. 188-191). Contudo, a argumentação não me parece convincente, já que Löwy não faz referência a nenhum outro escrito sistemático de Lenin a respeito da questão da organização que pudesse se apresentar como alternativa a Que fazer?, nem chega a exemplificar sua tese com mudanças concretas na forma de organização dos bolcheviques que sinalizassem um abandono do modelo da consciência introduzida “de fora”. Em outro livro seu, Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários (LECH, 1979), Löwy tece importantes considerações sobre o impacto do Esquerdismo, doença infantil do comunismo (1920) de Lenin sobre a feitura de História e Consciência de Classe (Cf. pág. 194 e passim). Este ponto ganhará em importância na seqüência da presente argumentação.
18 La théorie de la révolution chez le jeune Marx, op. cit., pág. 75. Michel Löwy acredita que devemos buscar as bases sociais das teorias de Lenin nas condições particulares do movimento social-democrata russo anterior a 1905, que podem ser enumeradas em quatro pontos: 1) “caráter isolado, fechado, extremamente minoritário e incipiente da social-democracia”; 2)”dispersão, divisão e desorganização dos núcleos social-democratas”; 3) “clandestinidade rigorosa do movimento, face à repressão policial do regime czarista”; 4) combate à tendência “economista” no movimento operário (pág. 185). Sem descurar da importância dessas observações, parece-me que uma determinação decisiva para a aproximação entre Lenin e o jovem Marx está no “atraso relativo” tanto na Alemanha do Vormãrz quanto da Rússia czarista (não obstante o fato de esta estar já numa relação “desigual e combinada”): “a mesma ordem burguesa retardatária, que faz do Estado o principal protagonista do processo social, institui a ‘importação’ (para mantermos a expressão de Marx) de idéias (omitidos seus pressupostos sociais) como prática ideológica da ‘revolução sem revolução’” (Paulo Arantes, “O partido da inteligência. Notas sobre a ideologia alemã”, in Almanaque, no. 9, Brasiliense, 1979, pág. 94). E a resposta do Marx da Introdução a esse estado de coisas será levar ao coração (proletário francês) a cabeça (filosófica alemã): “a Teoria – que aqui faz as vezes de Crítica e exprime o ponto de vista da ‘revolução radical’- só revela a sua energia prática e se transforma em poder material quando se apodera das Massas, e não do Estado, tomando contudo a via elevada da Aufklärung, da iluminação introduzida do exterior na base material, no elemento passivo da revolução, o seu ‘coração proletário’ tal o ‘raio do pensamento’ que da ‘cabeça’ filosófica penetra profundamente esse ‘cândido chão popular’” (id., ib., pág. 93).
19 Michel Löwy, Marxisme et romantisme révolutionnaire, Éditions Le Sycomore, 1979, pág. 156.
20As idéias que se seguem foram apresentadas pela primeira vez (de forma esquemática) no debate “Lukács e Rosa Luxemburg”, evento integrante do “Seminário Rosa Luxemburg”, promovido pela UNESP, campus de Marília, entre 10 e 12 de outubro de 1989. A exposição inicial esteve a cargo de Wolfgang Leo Maar, tendo como primeiro debatedor Carlos Eduardo Machado. Cf. Isabel Maria Loureiro e Tullo Vigevani (orgs.), Rosa Luxemburg. A recusa da alienação, Editora UNESP/FAPESP, 1991, pp. 122.
21 Michel Löwy, Para uma sociologia..., op. cit., pág. 207, nota.
22 Para o Lukács do “Prefácio de 1967” (V. GKb, 5-45; HCC, 349-378), essa presença de “elementos contraditórios” em História e consciência de classe (e em toda a sua produção de “juventude”), resultou num “amálgama internamente contraditório” no seio da teoria (GKb, 6; HCC, 350), orientada então por um “utopismo messiânico do comunismo de esquerda”, e não pela “autêntica doutrina marxista” (GKb, 18; HCC, 358). Como resultado disso, Lukács procede a uma crítica de suas posições de juventude. Critica a apresentação que deu à “consciência atribuída”, argumentando que ela pretendia dar conta da posição expressa por Lenin no Que fazer?, mas que só conseguiu “um resultado puramente intelectual, e, portanto, essencialmente contemplativo”(GKb, 18-19; HCC, 358-359). O que revela, por sua vez, um erro fundamental na consideração da práxis: não tomou em conta devidamente o modelo fornecido pelo trabalho, partindo, ao contrário, de “estruturas complexas da economia mercantil desenvolvida”(Gkb, 20; HCC, 360). A práxis “só pode ser critério e consumação da teoria porque tem em sua base, ontologicamente, uma cópia (Abbildung) da realidade tida como correta, como pressuposição real de cada posição teológica real”: se, portanto, Lukács ainda recusa a caracterização “fotográfica” da teoria do reflexo, esta já não está mais posta em xeque enquanto tal (Gkb, 27; HCC, 365). Na base destas críticas está, como se pode prever, um duro ataque contra o “sujeito-objeto idêntico”, momento, em História e consciência de classe, em que Hegel parece estar posto “sobre seus pés”: “tudo se passa como se a construção lógico-metafísica da Fenomenologia do Espírito tivesse encontrado uma autêntica realização, adequada ao ser (seinsmässig), no ser e na consciência do proletariado, o que parece, por sua vez, fundamentar a sociedade sem classe resultante da virada histórica do proletariado através de sua revolução, que parece dar fundamentação filosófica ao término da “pré-história da humanidade”. Mas será, na verdade, o sujeito-objeto idêntico mais do que uma construção puramente metafísica? Poderá o sujeito-objeto idêntico ser realmente produzido por um conhecimento de si, por mais adequado que seja, mesmo que tenha por base um conhecimento adequado do mundo social? Por outras palavras, poderá ser produzido numa consciência de si, por mais completa que seja?”. A resposta de Lukács a estas perguntas é resolutamente negativa (Gkb, 24; HCC, 363). Fica claro, portanto, que Lukács está recusando todas as tensões que vimos apontadas aqui; essencialmente: o luxemburguismo do sujeito-objeto idêntico. Se há alguma novidade na análise aqui desenvolvida, ela está no “ponto de vista” através do qual essas tensões são examinadas: decididamente oposto à avaliação que o autor tem delas em 1967.
23 Michel Löwy exclama: “Lukács é tanto acusado de vanguardismo quanto de espontaneísmo!”, para concluir com isso que “críticos antinômicos se anulam reciprocamente...” (Para uma sociologia..., pág. 198). Mas, do meu ponto de vista, não se trata de “anulação”, mas de pensar essas duas determinações conjuntamente. Neste ponto, fica patente a importância para a presente investigação do modelo de análise do pensamento político kantiano desenvolvido por Ricardo Terra (A política tensa. Idéia e realidade na Filosofia da História de Kant, Iluminuras/FAPESP, 1995), em que ele procura pensar a tensão entre o momento determinante e o reflexionante da política, buscando com isso escapar à unilateralidade habitual da bibliografia dedicada a esse tópico da filosofia kantiana.24 Não deixa de ser interessante lembrar que Michel Löwy registra uma mudança de posição por parte de Marx seis meses depois da redação da Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, de inspiração marcadamente feuerbachiana. Lembrando a resposta de Marx ao “Rei de Prússia” de Ruge, Löwy afirma que ele “descobre que o proletariado não é ‘o elemento passivo’ da revolução, antes pelo contrário” (La théorie de la révolution..., op. cit., pág. 109). Tal oscilação do “jovem Marx” me parece não fazer senão corroborar a linha de argumentação aqui apresentada.
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Serão eliminados do Blog os comentários que:
1-Configurem qualquer tipo de crime de acordo com as leis do país;
2-Contenham insultos, agressões, ofensas e baixarias;
3-Contenham conteúdos racistas ou homofóbicos.