Certamente que eu não vou me deter nesses três fenômenos, tamanha são suas complexidades e suas interconexões.
A intenção por apontá-los é deixar claro que, para mim, a discussão que fazemos no interior da universidade publica sobre o seu processo de privatização, embora guarde precisas especificidades e é sobre elas que temos que nos deter para pensarmos soluções; é de que essa discussão se coloca em patamares que vão além da própria universidade. Dessa forma, eu preferi na minha fala (dado a minha ignorância sobre o assunto e o tempo cedido) pedir que apenas façamos dois exercícios: primeiramente de pensarmos esse processo que precariza a universidade como parte inserida num universo mais geral/amplo; e, segundo, de que esse processo mais geral possui uma envergadura não somente socioeconômica, mas também ético-cultural.
Não vou desenvolver nenhuma ideia nova sobre as universidades publicas, e provavelmente não traga nenhum dado novo. Apenas, portanto, quero utilizar desse momento para pedir a todos que façamos tais exercícios de colocar essa discussão (que percorre todo espaço político e cultural da UEM) em patamares que vão além da UEM, do Paraná, e do Brasil. E que está colocando em risco não somente a nossa educação (que já seria o suficiente para nossas preocupações), mas também esta colocando em risco a nossa saúde, o nosso lazer, a nossa cultura, os nossos valores ... sobretudo, o nosso futuro.
É certo que os modelos universitários sempre guardaram relações profundas com as lutas entre interesses e perspectivas dos grupos em disputa em cada momento histórico. Foi assim na Inglaterra do XVII e XVIII, que passou a inserir novos conteúdos adequados aos novos grupos industriais emergentes, mas mantendo a velha forma da Universidade medieval ,baseada no conhecimento como revelação e domínio de poucos iluminados. Foi assim na Franca de Bonaparte, que passou exigir que a Universidade formasse os profissionais do Estado. Foi assim no Brasil dos anos de chumbo, com as Universidades como formadoras de nossas elites, foi assim no Chile de Pinochet e do atual Sebastián Piñera (que tem colocado reitores, professores, alunos nas ruas; somando mais de milhões, e que dura mais de meses), e continua sendo assim nos tempos de Lula e Dilma.
Podemos dizer, portanto, que o modelo de universidade do qual fazemos parte hoje também é um produto (e reprodutor) das lutas de interesses e perspectivas atualmente vigentes. Porém, sob a égide dos três fenômenos citados (....), colocou-se na ordem no dia, características que se não levarmos em conta para pensarmos o problema na universidade publica brasileira ao fim da primeira década do sec. XXI, podemos incorrer em atuações políticas, pedagógicas, militantes, profissionais etc. que no futuro mais próximo se volte contra nos mesmos.
Teríamos inúmeras dessas características para apontar, eu apenas escolhi duas delas, justamente as que acredito serem necessárias no exercício de pensarmos a universidade inclusa neste patamar mais amplo.
A primeira esta ligado ao fato de nos exercitarmos, no dia a dia da profissão, das aulas, da atuação política ... a pensar a educação em sentido estrutural, ou seja, pensarmos no planejamento institucional e educacional dado a nação brasileira, ao estado do Paraná e a UEM. O que quero dizer é que devemos sempre tomar por conta que aquilo a que estamos inseridos (na sala, no laboratório, na secretaria etc.) está, em grande parte, submetido a um modelo educacional no qual todo o Brasil é ligado. E é certo que isso não é novidade. O ponto que é novo pelo menos nos últimos 30 anos, é que este projeto/modelo não se trata mais apenas de um resultado entre disputas de interesses moldados em territórios municipais e regionais, mas sim de disputas e regimentações internacionais.
A tríade mundialização do capital, ideologia neoliberal e reestruturação produtiva, exerceu e exerce também na educação superior a maior de suas significâncias: ela dispôs o Brasil, o Paraná e Maringá, socioeconomicamente no cenário mundial determinado por órgãos e mecanismo internacionais e multilaterais; a universidade, portanto, não deve ser vista isoladamente, mas como parte de uma política educacional, que, por sua vez, tem as características do modelo de desenvolvimento adotado no país, e neste caso, o modelo determinado para o país, na sua dependência econômica e também política e cultural.
Nos últimos dias, por exemplo, o governo federal, soltou uma MP que abriu as portas para grupos farmacêuticos (pesquisadores) indianos testarem os remédios genéricos do Brasil, fato que ate então vinha sendo feito apenas por pesquisadores brasileiros. O que aconteceu? Grupos de cientista brasileiros imediatamente já foram retirados do planejamento do ano que vem para pesquisas e projetos ligados aos genéricos. Também ligado ao campo biomédico, no meio desse ano, no primeiro acordo assinado para liberação de quatro equivalentes de medicamento genérico contra a AIDS, o Brasil, que vinha investindo nos órgãos internacionais de remédios genéricos, ficou fora da produção e da sua comercialização, e quem barganhou grande parte desse bolo foram também, os indianos. Isso tudo porque, é declarado em território indiano como projeto econômico do país se tornar uma potencia da indústria farmacêutica, projeto que é visto com muito bons olhos pelos EUA: grande investidor no mercado de mão de obra barata da Índia
Portanto, podemos dizer que, centrada na divisão Internacional do Trabalho (divisão essa direcionada e orientada, sobretudo pelo FMI e BC) sabemos que hoje a educação superior tornou-se uma fronteira de disputas tal qual qualquer outra mercadoria. Muito dos investimentos neste ou naquele setor cientifico é mediado, por exemplo, pela agenda dos Acordos Gerais de Comércio e Serviços (AGCS) da Organização Mundial do Comércio (OMC). Isto é, quando falamos nas mudanças que ocorrem nos sistemas universitários nacionais (seu processo de privatização, logo, mercantilização), devemos fazer o exercício de levar em conta as mais profundas razões socioeconômicas. Como resultante de interesses competitivos inter-blocos econômicos ou internações, as mesma razoes que determinam guerras por mercados, por riquezas naturais e por territórios, são as razoes que articuladas via mecanismos multilaterais (ex. UNESCO) e nacionais (ex. MEC, e as ditas Fundações de apoio etc.) determinam o modelo hegemônico das universidades.
Desta forma, se nos exercitarmos a esse olhar veremos que o Brasil no campo do ensino superior possui uma "estrutura de periferia" do começo ao fim. Do ponto de vista internacional vemos que o Brasil permanece extremamente subserviente/dependente das exigências dos órgãos multilaterais e do mercado internacional a ele correspondente, ou seja, vemos que o que é e como é investido aqui e acolá nas universidades não é em razão dos problemas e necessidades que aflige o povo brasileiro (aqueles que pagam o salário de vocês e minha universidade). É antes de mais nada, aquilo que a Pfizer decide, a Bayer, a Gilead (empresa responsável pelo drogas contra AIDS), a Monsanto, entre outras, decidem.
Do pondo de vista nacional, vale se atentar que nas ultimas semanas, um dos rankings das "ditas" melhores universidades do mundo (não cabe aqui entrar na sua validade ou não, há inúmeras criticas), Times Higher Education, indicou novamente apenas uma universidade brasileira entre as 200 "melhores" do mundo (USP 178; http://www.timeshighereducation.co.uk/world-university-rankings/2011-2012/top-400.html). Ou seja, no plano nacional, plano que é regimentado pelos investimentos de ordem internacional, o Brasil permanece um grande arquipélago com apenas algumas poucas ilhas de excelência. E o que isto quer dizer? Que hegemonizada pela lógica de "periferia", muitas das universidades brasileiras, sob esse modelo, estão geneticamente fadadas a serem secundarias/periféricas (quando não, irrelevantes ao cenário nacional e internacional). E isso é provavelmente o caso da UEM, UEL e UNIOESTE entre muitas outras.
Não é demais nesse caso pontuar uma fala do Prof. Benedito no auditório do COU, em reunião da Câmera de Planejamento (da qual sou conselheiro, representante dos estudantes), em que o professor, na discussão do PDI, falou expressamente dos limites de investimento para UEM, dado o planejamento estadual e federal dos próximos anos. Ou seja, no meu entender, quis dizer ele, que a UEM não pode crescer tal como carecemos e tão pouco como esperamos, ela esta dentro do planejamento governamental, e neste planejamento de "periferia" ela não tem qualquer espaço para se tornar um centro de excelência ou qualquer coisa do tipo. Desta forma, se a "estrutura de periferia" percorre o cenário mundial, colocando o Brasil como subserviente dos ditames impostos pelos grandes centros; a mesma "estrutura" perpassa internamente o Brasil, colocando a UEM e inúmeras outras na subserviência e precarização do planejamento nacional/estadual que prioriza essa ou aquela universidade em função de regras internacionais. O que esse exercício quer dizer, é que neste projeto hegemônico de ensino superior, periferia não rima com autonomia!
Permanecendo no exercício de pensarmos em caráter mais geral, vale deixar claro em que sentido que estou empregando o conceito de hegemonia. Esse modelo hegemônico que vigora na UEM, e praticamente em todas as universidades brasileiras, que alguns estudiosos denominaram "hegemonia bancomundialista" (isto é, referente ao modelo universitário imposto pelo BM aos países emergentes ou periféricos), certamente que esta implicado numa base material que o sustenta e que o movimenta (sobretudo no que acabei de indicar em relação ao planejamento institucional e educacional subserviente a demandas do mercado internacional, consequentemente, no caráter totalmente antidemocrático na decisão da destinação dos recursos; no aparelho burocrático com seus entraves e meandros que limitam a autonomia universitária etc.), mas também é certo que não se trata apenas de uma dominação e regimentação material. Não há dominação, tal como ocorre na universidade, sem um consentimento por parte dos dominados. Por isso, o sentido dado ao conceito de hegemonia, como bem observou o cientista político Ricardo Costa,
"(...) pressupõe, além da ação política, a constituição de uma determinada moral, de uma concepção de mundo, numa ação que envolve questões de ordem cultural, na intenção que seja instaurado um "acordo coletivo" [consenso] através da introjeção das mensagens, produzindo consciências falantes, sujeitos que sentem a vivência ideológica como sua verdade, ao invés de se tentar impor a ideologia com o silêncio das consciências". (Ricardo Costa)
Para isso, eu entro na segunda característica que acho necessária para exercitarmos o pensar sobre universalidade de forma mais ampla.
O que o Ricardo quer dizer, é que não é preciso apenas uma política estrutural que domine a nossa instituição, mas maiormente é preciso a constituição de valores, de uma moral e de uma ideologia dominante, que se transforme numa verdade pratica. Não se trata de uma consciência impositivamente silenciada, mas de uma consciência que assuma os valores e as regras dominantes e vivam eles como se fossem suas próprias concepções de mundo. É a partir dela que os estudantes (e certamente professores e funcionários) passam a compartilhar o dia a dia na universidade, é a partir dela que nos percebemos a nos mesmos dentro da universidade. É a partir dela, portanto, que nos silenciamos nossa consciência critica, nossa criatividade, consequentemente, nossa humanidade. E a partir dela que consentimos a dominação.
Ou seja, se de fato hoje a universidade integrou a competição dos grandes mercados. Junto a isso, ela também se tornou um grande espaço de reprodução ético-cultural dos valores a ele pertencentes. Vivemos, mesmo na universidade, o que o filosofo húngaro Gyorgy Lukacs, chamou de "pecaminosidade consumada". O "acordo coletivo" [consenso] da ideologia neoliberal fez-se a todos. Tal como os hipócritas religiosos que consagram Deus aos domingos e nos outros dias da semana permanecem virado de costas aos ensinamentos do seu Sr. Hoje, na universidade, os cientistas fazem sua ciência virado de costas a repercussão social de seus produtos científicos. Saem dos laboratórios, muitas vezes com os bolsos cheios dos financiamentos públicos, e de nada importa-lhes que suas pesquisas sejam usadas contra os interesses da maioria dos que lhes financiaram, nesse caso o povo brasileiro. Ou mesmo os alunos, que em sua maioria passam cinco anos utilizando-se do bem publico e não dedicam se quer um ano de sua vida em prol do mesmo.
De forma que poderíamos dizer que a universidade, um local por excelência de criação, de liberdade, de autonomia, de colaboração, de prazer, de segurança etc.; hoje não preserva e vela por mais nenhum desses valores. O mundo repressor, competitivo, individualista e "pecaminoso" transita pela nossa porta da frente. Não somente a produção científica passou a lógica que é própria as mercadorias. Em toda a estrutura institucional verifica-se uma rede interligada que submete, objetivamente, professores, alunos, técnicos, todos, a mesmas diretrizes de qualquer empresa ou disputa comercial: quantas vezes já ouvimos dos professores em sala de aula a respeito do conhecimento/ciência que estamos produzindo as mesmas máximas dos "homens de negocio": de que "o tempo é dinheiro" (ou melhor, no nosso caso de que "tempo é Lattes)", que agente deve "maximizar os ganhos e minimizar os custos" e por ai vai. É a partir destes ensinamentos que estamos sendo educados.
Somente para exemplificar tudo isso podemos apontar dois eixos de repercussão e legitimação ético-cultural dessa hegemonia. Primeiramente o Modelo Capes/CNPQ de avaliação. Vinculada a um sistema de incentivos financeiros que premia muito mais a produtividade, do que a qualidade do processo de formação pedagógica e de formação critica, visto que de nada importa a Capes a qualidade dos profissionais que estamos formando. Ao contrario, o que estamos assistindo é o aumento e incentivo da competitividade nas várias dimensões da instituição e, logicamente, entre os membros da comunidade (alunos, professores, técnicos etc.); vemos crescentemente a intensificação e precarização do trabalho docente, que na obrigação de cumprir metas e mais metas cada vez mais tem se adoentado (*dados levantados pela prof. Izabel Borsoi/UFES: 82% dos docentes procuraram atendimentos medico nos últimos dois anos: sendo 36% de problemas psicoemocionais, 14% enxaqueca e crise gástrica e 12,8% problemas osteomusculares (LER, hérnias de disco etc.); Se assim se define "qualidade", somando a quantidade produzida, não podemos nos enganar do porque do baixíssimo caráter critico e humanista da nossa formação.
É sob essa hegemonia que a ciência se coloca hoje em dia. Transformada em mercadoria, isto é submetida à lógica "da maximização do lucro" e do "just in time", a ciência, como bem disse o prêmio Nobel de Química 2009, o americano Thomas Steitz, "não esta mais ao beneficio da humanidade", os grupos que a financia "não querem que o povo se cure. Preferem centrar o negócio em remédios que deverão ser tomados durante toda a vida. (...) do que encontrar a solução efetiva e radical para as doenças."
E de fato, nossa consciência não foi impositivamente silenciada, ela foi dominada, e para isso ela precisou tornar verdade pratica aquilo mesmo que nos aflige e adoece. Este modelo hegemônico portanto, para consciência dominada, se coloca como ideal e definitivo, que precisa apenas de alguns ajustes para funcionar com perfeição. Cabe a nos apenasse adequar a essa lógica, absorvendo essa lógica e viver sem questionamentos. Questionar, alias, é perda de tempo, o melhor é consenti-la e se virar como esta. Vivemos na universidade, tempos de "pecaminosidade consumada".
Para terminar, podemos dizer que se com esses dois exercícios, um de perceber a universidade em um patamar de projeto global e outro de reconhecê-la como reprodutora de um campo ético-cultural, atestamos o fato de que universidade se encontra atrelada a um modelo hegemônico no qual se prestigia o que é privatizado e não o que é socializado, onde se estimula a competição e não a cooperação, onde se elogia o elitizado e não o popular. Uma universidade que por de trás das inovações empreendedoras, revela-se o profundo comprometimento com o mundo atual e a silenciosa renúncia em transformá-lo. Ensinando uma total indiferença aos processos e as relações sociais, se essas não forem locais de benefícios particulares. Se assim o for... eu que pretendo ter filhos logo logo, não é esta universidade que quero para eles.
Temos por responsabilidade ética de pensarmos em um projeto contrario a esse. Um projeto contra-hegemonico. Projeto que esteja a serviço dos reais problemas que nos assolam, projeto que esteja a serviço da cura de doenças e não do lucro da empresas farmacêuticas, projeto que esteja a serviço de alocar as pessoas em moradias e não expulsá-las de seus bairros e da sua historia por motivos de "especulação imobiliária"; projeto que esteja a serviço de uma alimentação sadia e não agrotoxicamente planejada para colocar a minha geração inteira vulnerável a doenças como câncer.
Projeto esse, que não esteja a serviço do mercado, mas a serviço do povo!
Para finalizar queria fazer o uso das palavras do Prof. Mauro Iasi, que parodiando o poeta Bertolt Brecht, disse a respeito de um novo projeto para universidade: "Aqui onde as empresas falam, os trabalhadores falarão! Aqui onde os exploradores afirmam seus interesses, os explorados gritarão os seus direitos! Aqui onde os dominadores tentarem mascarar sua dominação sob o véu ideológico do empreendedorismo, os dominados mostrarão as marcas e cicatrizes de sua exploração."
Na prática isso significa uma defesa intransigente do caráter público da universidade contra suas deformações mercantilizantes e privatistas que estão em curso.
Texto escrito para participação na mesa de debates "Privatização da universidade publica: um processo em franco crescimento" organizada pelo PROAÇÃO (Programa Integrado de Ação Social) da Universidade Estadual de Maringá, no dia 18 de outubro
LEANDRO COMODORO é licenciado em Ciências Sociais/UEM, Coordenador Geral do DCE – Movimente-se/UEM (2011) e militante da UJC (União da Juventude Comunista).
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