20/02/2011
A Educação como práxis revolucionária
Alexandre Haubrich
"Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo" – Paulo Freire
Todos  os conceitos devem ser desconstruídos para serem construídos com o  espírito revolucionário. Tudo está impregnado pela manipulação, pela  dominação intransigente, preconceituosa, agressiva, violenta, que as  elites infringem ao povo. Cada instituição precisa ser repensada,  reformulada. E a consciência é o único caminho para essa mudança. E essa  mudança é o caminho inicial para a revolução. Nos dias de hoje, nada  pode ser mais revolucionário do que o pensamento crítico. E nada pode  fomentar com mais força o pensamento crítico do que a escola. É ali que,  crianças, aprendemos a obedecer sem contestar, a receber sem conceber. É  ali que somos colocados na moldura que nos desenhará escravos  coisificados. E se a própria moldura rebelar-se?
. 
Além da carga  genética, os seres humano vão sendo formados a todo instante por suas  relações com o ambiente, que inclui tudo o que o indivíduo capta através  de cada um de seus sentidos. Algumas dessas captações, porém, têm mais  relevância do que outras, pois atuam propositadamente como instâncias  formadoras. Tradicionalmente, no mundo ocidental temos quatro  instituições que cumprem essa função: família, igreja, imprensa e  escola.
. 
De acordo com o contexto local, outros ambientes podem  atuar com força semelhante, como as organizações de bairro ou os  sindicatos. De forma diferente, mas também relevante, as relações  estabelecidas no trabalho contribuem cada vez mais para a moldagem de  cada indivíduo. De certa forma, todos esses ambientes contêm e/ou são os  "fatos sociais" identificados por Émile Durkheim. Segundo o sociólogo  francês, fatos sociais são "coisas", criadas socialmente, que induzem as  ações dos indivíduos.
. 
Ao mesmo tempo, entendemos que são os  próprios indivíduos – é claro que em suas relações sociais e de forma  coletiva – que alimentam ou matam pela fome os fatos sociais.  Demonstração disso é a intensa dinâmica de variação entre os níveis de  influência de cada aspecto sobre a sociedade, variando de acordo com o  espaço ou mesmo com o tempo dentro de uma mesma formação social. Nada  está dado, tudo é construído e reconstruído diariamente, a cada ação. É  nessa possibilidade constante de mudança, criada pelos indivíduos em  suas inter-relações, que se baseia qualquer intenção verdadeiramente  revolucionária. Para Durkheim, porém, a função da educação formal não  pode deixar de ser fundamentalmente coercitiva, objetivando sempre  moldar cada ser em acordo com as necessidades funcionais da sociedade.  Essas necessidades, no pensamento do sociólogo francês, parecem ser  sempre alienadas e alienantes, sem conter a possibilidade de emancipação  e libertação.
. 
Percebemos, por outro lado, forte potencial  revolucionário na Educação e em outras instituições. Entendemos que a  revolução é latente nas classes dominadas, e que as instituições podem  ser modificadas profundamente sem serem substituídas em sua essência. A  refundação da escola, que visualizamos como necessária, não precisa  destruir a totalidade do legado educacional para tornar-se redentora. A  escola não precisa ser opressora, sua essência é educativa, ainda que  sua história mostre origens de opressão.
. 
Mesmo reconhecendo o  papel formador dos outros "fatos sociais", é difícil negar o papel  protagonista das quatro instituições citadas anteriormente (família,  igreja, imprensa e escola) no que se refere à forma como as pessoas agem  em sociedade. Isso acontece porque, diferentemente das outras "origens  de formação pessoal", o quarteto opera basicamente a partir da noção de  autoridade introjetada pelo sujeito. A força coercitiva desse grupo de  instituições é proporcional à sua aceitação pelo restante da sociedade,  pois essa força amplia-se na medida em que o respeito ou temor é  assimilado pelos semelhantes. A cada indivíduo aderente, portanto, uma  instituição multiplica seu potencial para propagar-se. Essa é a razão  geral, mas cada uma – família, igreja, imprensa e escola – possui sua  forma específica de exercer coerção e, por extensão, dominação.
. 
Seguindo  as formas de dominação demonstradas por Max Weber (legal, tradicional e  carismática), a família parte da dominação tradicional (baseada na  crença formada antes mesmo do nascimento do indivíduo) e da dominação  carismática (baseada na devoção ao líder). Da mesma forma a igreja, e  até a imprensa. Por relacionarem-se às formas de dominação menos formais  e mais subjetivas, revolucionar essas três instituições é uma tarefa  mais complexa, na medida em que elas mesmas alimentam o imaginário do  qual se servem para exercer sua dominação. A escola, por sua vez,  baseia-se em seu caráter legal, ou seja, baseada em estatutos e regras.  Cabe ao Estado uma possível opção por refunda-la. Partindo-se do  pressuposto de que o Estado, ao menos em teoria, é um instrumento da  sociedade, cabe à esta, na medida em que organiza-se como fonte de  pressão, modificar os parâmetros da educação formal.
. 
Se em outros  momentos da história tivemos a igreja e a família com predominância na  capacidade de influenciar os sujeitos, esse papel esvaziou-se. A  aceleração das atividades humanas retirou tempo de convivência com a  família e de presença nas diversas igrejas. Concomitantemente, o tempo  de permanência na escola vem aumentando gradativamente, e, em muitos  casos, já chega a um terço do dia da criança ou do adolescente. A  imprensa, por sua vez, tem papel extremamente variável de acordo com a  cultura nacional. No Brasil, por exemplo, o que vemos é uma gradativa  perda de público por parte da televisão e dos grandes jornais, com  ascensão da internet, terreno ainda de difícil avaliação como formador  social. Dessa forma, a escola ganha importância e torna-se hegemônica na  construção do sujeito e, por óbvia extensão, da sociedade. Sua atuação  é, portanto, decisiva.
. 
A escola tradicional opera historicamente,  no mundo ocidental, como transição entre a infância e o trabalho. É um  espaço de preparação cultural para a submissão à autoridade e à  disciplina de produção contínua. A escola molda os indivíduos para suas  relações sociais e, especialmente, para suas relações de trabalho, tanto  frente aos outros trabalhadores quanto frente ao patrão ou à empresa. É  no ambiente escolar que a criança transforma-se em adolescente e em  "jovem adulto", e em meio a essa transformação aprende a submeter-se à  autoridade do professor para depois submeter-se à autoridade do patrão e  aprende a submeter-se à escola para depois submeter-se à empresa. No  atual modelo escolar, essa autoridade é imposta através do temor, jamais  do respeito, assim como a submissão é obtida através da força, jamais  da conscientização e do diálogo.
. 
A transformação da educação  formal, em todos os seus níveis, em produto de consumo, vai na contramão  da necessidade de criação de autonomia nos e com os  estudantes. As gradações entre os níveis de ensino, idem. A lógica que  seguimos hoje no Brasil, por exemplo, é a da escola como preparação  direta para o vestibular, única forma de acesso ao Ensino Superior. A  escola não educa, firma-se como processo de passagem ao mundo do  trabalho, e não mais se envergonha disso, pelo contrário: as campanhas  publicitárias de muitas instituições de ensino têm seu foco na  capacidade de aprovação nos mais concorridos vestibulares do país. Seu  papel como fabricante de mão de obra está escancarado. Seu papel como  educador formador de sujeitos conscientes e emancipados poucas vezes  esteve tão esvaziado. Logicamente inserida no processo capitalista, a  escola é a mercadoria inicial, faz do professor a mercadoria segunda, da  decoreba conceitual a mercadoria terceira, e do próprio estudante a  mercadoria final, consumida, paradoxalmente, pelo chamado "mercado de  trabalho". Ou seja, em última instância, após ser consumida a escola  coisifica seu consumidor. Em vez de torná-lo sujeito, aprofunda seu  caráter de objeto a ser manipulado e utilizado para livre usufruto das  classes dominantes. O papel da escola hoje praticamente reduz-se a  alimentar o sistema de exploração capitalista, antidemocrática, e a  "empresariação" dos estabelecimentos de ensino contribui  fundamentalmente para fortalecer essa lógica opressora.
. 
Para mudar  o aluno é preciso mudar a escola, e essa mudança só pode acontecer  acompanhada de uma cultura na qual o aluno não mais tema a sala de aula  nem o professor, não mais os odeie. Para transformar-se em um adulto com  autonomia para pensar e para posicionar-se de forma consciente é  preciso que tal atitude de emancipação seja estimulada de forma  intermitente durante sua educação formal.
. 
Paulo Freire foi o  grande entusiasta da "Educação como prática de liberdade", como diz o  título de um de seus mais importantes trabalhos. Para ele, é necessária a  reversão da lógica "bancária" da atividade educativa, na qual os  professores apenas depositam conteúdos nos estudantes, que, dessa forma,  não praticam a liberdade, o diálogo, a autonomia, tornando-se objetos a  partir da opressão que sofrem enquanto sujeitos. Outra premissa  essencial para a refundação da escola é a não-aplicação, no ambiente  educativo, da lógica de competição. A escola não deve preparar para o  vestibular, mas para a participação democrática. Tem de ser um espaço de  emancipação, e como diz Paulo Freire, em uma sociedade essencialmente  política a emancipação é, na verdade, politização. Então, não basta  possibilitar escola a todos, a escola deve politizar. Os próprios  métodos de alfabetização criados por Paulo Freire, explicados  detalhadamente no livro citado acima, são um exemplo de como a educação  formal pode ser diferente.
. 
A regionalização sem que se perca de  vista a noção de totalidade é outra necessidade. As especificidades  nacionais ou regionais devem ser respeitadas para que o estudante seja  respeitado. Só dessa forma, a partir da compreensão da realidade  específica do aluno, é possível estabelecer-se o diálogo, impreterível  para o verdadeiro aprendizado politizante. Essa profunda mudança na  concepção educacional precisa partir de um Estado popular, comprometido  com a participação social constante de toda a população. É esse Estado, a  partir da compreensão, pela população, de tal necessidade, que detém  todos os instrumentos facilitadores da criação de uma nova escola.
. 
Em  primeiro lugar, há a urgência do desmanche imediato da percepção da  Educação como mercadoria. Isso só pode ser feito com a abrangência total  da educação pública. Como direito e como dever, a educação formal  precisa ser 100% gratuita, sem espaço para a busca pelo lucro financeiro  nas instituições de ensino, seja em seu nível básico ou avançado (no  Brasil, o processo divide-se em "ensino fundamental", "ensino médio" e  "ensino superior"). Toda a população deve ter acesso à formação  integral, sem distinção na qualidade dessa formação, que deve pautar-se  sempre pela politização do estudante. Em 1961, no Uruguai, Ernesto Che  Guevara falou, em uma entrevista, da nacionalização das escolas  católicas realizada em Cuba pelo governo revolucionário que recém tomara  o poder: "Agora são simplesmente escolas", disse. Com o fim da Educação  como mercadoria, todos os espaços educacionais formais se tornariam  apenas escolas. As consequências iniciais de medidas nesse sentido já  estão postas, mas há ainda o fato de forçar-se assim a interação entre  diferentes desde a infância, que acaba por criar o respeito à  diversidade. Meninos estudando com meninas, ricos com pobres, brancos  com negros. A escola também como prática de tolerância.
. 
Com a  educação formal nas mãos de um Estado verdadeiramente democrático,  participativo, a formação dos professores se daria também de outra  forma, compreendendo e trabalhando as necessidades de cada aluno,  construindo o conhecimento com o estudante, e não apenas depositando o  conhecimento no estudante. Participando dessa construção, a criança /  adolescente se torna consciente de seu papel de sujeito, de agente  social decisivo, e aprende na teoria e com a prática – ou seja, na  práxis – a atuar socialmente de forma efetiva, de forma política. "Saber  ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a  sua própria produção e construção", escreveu Paulo Freire.
. 
Em um  processo constituído dessa forma, o aluno aprende a aprender e aprende a  ensinar, a construir. Ao mesmo tempo, o professor também aprende, já  que a relação deixa de se estabelecer através da dominação e da  verticalidade para tornar-se horizontal. Paulo Freire escreveu que  "ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam  entre si, mediatizados pelo mundo". Assim, o professor adquire  conhecimento juntamente com o aluno. Este se torna sujeito do processo, e  aquele não perde seu papel de educador e administrador da dinâmica, mas  ganha um novo papel, o de aprendiz.
. 
A função de refundar a  educação formal só pode ser realizada pelo Estado, e através de uma  participação ampla da sociedade no processo. É uma via de mão dupla:  através da escola a sociedade pode ser modificada, e através da  sociedade modifica-se a escola. Como, então, resolver esse embate? O  processo é longo, e necessita da participação profunda dos setores da  sociedade que já estão organizados em defesa de interesses  democratizantes. Ao mesmo tempo em que devem exercer pressão sobre o  Estado, precisam iniciar esse processo de conscientização popular  através de organizações de base – que trabalhem inclusive com crianças e  adolescentes – em suas áreas de atuação, em ações dialógicas que  transformem em povo politizado a massa alienada, em revolução o  potencial de rebelião. Mudar a escola para mudar o Estado ou mudar o  Estado para mudar a escola? Não há uma regra e nem existirá  necessariamente um momento claro de ruptura, impõe-se um processo  dinâmico em que os sentidos se revezam e se complementam. Mudar o Estado  e a escola ao mesmo tempo, para que a mudança seja profunda e  duradoura, para que seja revolucionária.
. 
O respeito ao aluno como  ser autônomo – sem que se perca a certeza de que só a ação coletiva  constrói com qualidade – gera o respeito do aluno à educação e ao  professor. Valoriza-se o profissional, valoriza-se a instituição,  valoriza-se o aluno. Quem perde? As empresas de ensino e todas as elites  nacionais interessadas na coisificação do ser humano, em manter o povo  alienado e sem recursos para combater a opressão engendrada por essas  elites.
. 
Um novo paradigma educacional resultaria, a curto prazo,  em mudanças também na lógica do trabalho a partir da conscientização  ativa da exploração sofrida pelos trabalhadores. A prática política, a  médio prazo, também seria fortemente influenciada, pois um povo  emancipado, politizado, exige participação e poder de decisão. Dessa  forma, há um natural (ou imposto pelo povo) aprofundamento democrático,  que, por sua vez, tende a realimentar a prática da autonomia do  estudante, da educação para a liberdade, para a emancipação, para a  transformação de objetos em sujeitos.
. 
A refundação da práxis  educacional pode ser essencialmente revolucionária, na medida em que é  um passo no grande e necessário caminho de refundação da sociedade sobre  um paradigma de democracia verdadeira – não a falsa "democracia  liberal" –, com a massa inerte transformada em povo atuante, livre,  emancipado. Povo revolucionário é o povo parido – dolorosamente – pelo  próprio povo, no momento em que rebela-se contra a opressão.
Fonte: http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=12413:a-educacao-como-praxis-revolucionaria&catid=309:espelhismos&Itemid=21
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)




 
 
 
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Serão eliminados do Blog os comentários que:
1-Configurem qualquer tipo de crime de acordo com as leis do país;
2-Contenham insultos, agressões, ofensas e baixarias;
3-Contenham conteúdos racistas ou homofóbicos.