GAUDÊNCIO FRIGOTTO*
MARIA CIAVATTA **
E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: a seus olhos, o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado.
(Feuerbach)***
RESUMO: Este trabalho, apoiado no esforço de análises de pesquisadores e intelectuais que não declinaram do pensamento utópico e, portanto, do esforço de produção de um pensamento crítico a todas as formas de colonialismo, discute a política de educação básica nos dois mandatos do Governo Fernando Henrique Cardoso. A conclusão a que chegamos é a de que a “era FHC” neste particular, também, foi um retrocesso tanto no plano institucional e organizativo quanto, e particularmente, no âmbito pedagógico. Esta conclusão se fundamenta, primeiramente, na análise do tipo de projeto social mais amplo e do projeto educativo a ele articulado, ambos associados de forma ativa, consentida e subordinada aos organismos internacionais.
As últimas décadas do século XX e o início do século XXI vêm marcados por profundas mudanças no campo econômico, sociocultural, ético-político, ideológico e teórico. Em recente coletânea, por nós organizada (Frigotto & Ciavatta, 2002), analisamos que essas mudanças se explicitam por uma tríplice crise: do sistema capital, ético-política e teórica.
No plano mais profundo da materialidade das relações sociais está a crise da forma capital. Depois de uma fase de expansão, denominada por Hobsbawm (1995) de idade de ouro, com ganhos reais para uma parcela da classe trabalhadora, particularmente nos países que representam o núcleo orgânico e poderoso do capitalismo, o sistema entra em crise em suas taxas históricas de lucro e exploração. A natureza dessa crise o impulsiona a um novo ciclo de acumulação mediante, sobretudo, a especulação do capital financeiro. Essa acumulação, todavia, não é possível para todos. Instaura-se, então, uma competição feroz entre grandes grupos econômicos, corporações transnacionais que se constituem, na expressão de Noam Chomsky, no poder de fato do mundo. Um poder que concentra a riqueza, a ciência e a tecnologia de ponta de uma forma avassaladora e sem precedentes. Martin & Schumann sintetizam esta tendência com a idéia metafórica de “sociedade 20 por 80” (1999, p.7) para designar que apenas uma parcela mínima de 20% da humanidade efetivamente usufrui da riqueza produzida no mundo. Os demais 80%, que são os que dominantemente a produzem, apropriam-se de forma marginal ou são literalmente excluídos.
No plano supra-estrutural e ideológico produz-se um verdadeiro arsenal de noções que constituem, para Bourdieu & Wacquant (2002), uma espécie de uma “nova língua” com a função de afirmar um tempo de pensamento único, de solução única para a crise e, conseqüentemente, irreversível. Destacam-se as noções de globalização, Estado mínimo, reengenharia, reestruturação produtiva, sociedade pós-industrial, sociedade pós-classista, sociedade do conhecimento, qualidade total, empregabilidade etc., cuja função é a de justificar a necessidade de reformas profundas no aparelho do Estado e nas relações capital/trabalho.
Essas reformas vêm demarcadas por um sentido inverso às experiências do socialismo real e das políticas do Estado de bem-estar social do após a Segunda Guerra Mundial, lidas pelos intelectuais orgânicos do sistema capital como responsáveis por um desvio dos mecanismos naturais do mercado e, portanto, pela crise. Trata-se, então, de retomar os mecanismos de mercado aceitando e tendo como base a tese de Hayek (1987) de que as políticas sociais conduzem à escravidão e a liberdade do mercado à prosperidade. O documento produzido pelos representantes dos países do capitalismo central, conhecido como Consenso de Washington, balizou a doutrina do neoliberalismo ou neoconservadorismo que viria a orientar as reformas sociais nos anos de 1990. É neste cenário que emerge a noção de globalização carregada, ideologicamente, por um sentido positivo1
Os protagonistas destas reformas seriam os organismos internacionais e regionais vinculados aos mecanismos de mercado e representantes encarregados, em última instância, de garantir a rentabilidade do sistema capital, das grandes corporações, das empresas transnacionais e das nações poderosas onde aquelas têm suas bases e matrizes. Nesta compreensão, os organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BIRD), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), passam a ter o papel de tutoriar as reformas dos Estados nacionais, mormente dos países do capitalismo periférico e semiperiférico (Arrighi, 1998). No plano jurídico-econômico, a Organização Mundial do Comércio (OMC) vai tecendo uma legislação cujo poder transcende o domínio das megacorporações e empresas transnacionais. É interessante ter presente o papel da OMC, pois em 2000, numa de suas últimas reuniões, sinalizou para o capital que um dos espaços mais fecundos para negócios rentáveis era o campo educacional.
Em nível regional, vários organismos são criados como uma espécie de ramificações ou base de apoio para os organismos internacionais. Em termos de América Latina, podemos destacar, no plano econômico, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e, no plano educacional, como veremos a seguir, a Oficina Regional para a Educação na América Latina e no Caribe (OREALC). Num plano mais geral situa-se o Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA), cujo escopo se situa dentro da doutrina da Organização Mundial do Comércio.
Um dos efeitos devastadores do pensamento único, sem dúvida, manifesta-se no abandono do pensamento crítico vinculado a projetos societários firmados na perspectiva da autonomia e, ao mesmo tempo, num relacionamento soberano entre povos, culturas e nações. Reafirmam-se, pela via do pragmatismo, das visões positivistas e neopositivisas, e neo-racionalistas e do pós-modernismo, uma visão fragmentária da realidade e uma afirmação patológica da competição e do individualismo. A crise do pensamento comprometido com mudanças pro-fundas na atual (des)ordem mundial é, também, a crise do pensamento utópico e da acuidade da teoria social.
Apoiando-nos no esforço de análises de pesquisadores e intelectuais que não declinaram do pensamento utópico e, portanto, do esforço de produção de um pensamento crítico a todas as formas de colonialismo, discutiremos, neste texto, a educação básica no Brasil, nos anos de 1990, à luz do movimento mais amplo internacional que, com o apoio de assessorias, documentos formadores de opinião e de recursos, foi se impondo às políticas públicas de educação com a participação ativa, anuência e colaboração das autoridades locais.
No primeiro momento, refletimos sobre o sentido da educação básica à luz das questões mais gerais postas à educação por um mundo em transformação. A seguir, analisamos o projeto do Governo Cardoso para a sociedade brasileira e as políticas educacionais com relação à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e ao Conselho Nacional de Educação, ao Plano Nacional de Educação, ao ensino fundamental e aos Parâmetros Curriculares Nacionais e à reforma do ensino médio e técnico. Os temas do financiamento e da avaliação serão abordados em seu sentido político amplo ao discutirmos a prioridade do Governo Cardoso, o ensino fundamental.
1. Educação básica para um mundo em transformação
Após o vendaval da queda do muro de Berlim e da idéia do “fim da história” e das ideologias, no caso do Brasil, mas não apenas aqui, explicitou-se um projeto de sociedade que ia na contramão do “pensamento único”. Em termos mundiais, especialmente na Europa, houve o retorno das idéias social-democratas ou de um socialismo “cor-de-rosa”
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Do ponto de vista da educação, ocorre uma disputa entre o ajuste dos sistemas educacionais às demandas da nova ordem do capital e as demandas por uma efetiva democratização do acesso ao conhecimento em todos os seus níveis. Os anos de 1990 registram a presença dos organismos internacionais que entram em cena em termos organizacionais e pedagógicos, marcados por grandes eventos, assessorias técnicas e farta produção documental.
O primeiro desses eventos é a “Conferência Mundial sobre Educação para Todos” realizada em Jomtien, Tailândia, de 5 a 9 de março de 1990, que inaugurou um grande projeto de educação em nível mundial, para a década que se iniciava, financiada pelas agências UNESCO, UNICEF, PNUD e Banco Mundial. A Conferência de Jomtien apresentou uma “visão para o decênio de 1990” e tinha como principal eixo a idéia da “satisfação das necessidades básicas de aprendizagem”:
Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deverá estar em condições de aproveitar as oportunidades educacionais oferecidas para satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem. Estas necessidades abarcam tanto as ferramentas essenciais para a aprendizagem (como a leitura e a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas) como os conteúdos básicos da aprendizagem (conhecimentos teóricos e práticos, valores e atitudes) necessários para que os seres humanos possam sobreviver, desenvolver plenamente suas capacidades, viver e trabalhar com dignidade, participar plenamente do desenvolvimento, melhorar a qualidade de sua vida, tomar decisões fundamentais e continuar aprendendo. A amplitude das necessidades básicas de aprendizagem varia de país a país em sua cultura e muda inevitavelmente com o transcurso do tempo. (WCEA, 1990, p. 157)
Além de representantes de 155 governos que subscreveram a Declaração de Jomtien, ali aprovada, comprometendo-se a assegurar uma “educação básica de qualidade” a crianças, jovens e adultos, dela participaram agências internacionais, organizações não-governamentais, associações profissionais e destacadas personalidades na área da educação em nível mundial. O Brasil, como um signatário entre aqueles com a maior taxa de analfabetismo do mundo, foi instado a desenvolver ações para impulsionar as políticas educacionais ao longo da década, não apenas na escola, mas também na família, na comunidade, nos meios de comunicação, com o monitoramento de um fórum consultivo coordenado pela UNESCO (Shiroma et al., 2002, p. 57-58). 2
Nesse momento, no Brasil, iniciava-se o governo de Fernando Collor de Melo, que durou pouco mais de um ano, alvo de denúncias que o incriminaram e lhe valeram um processo de impeachment como presidente da República. Mas as bases lançadas pela Conferência inspiraram o Plano Decenal da Educação para Todos, em 1993, já no Governo Itamar Franco. Ao lado do breve sucesso de Collor, naufragara o primeiro projeto popular da esquerda depois da ditadura, a derrota do candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio “Lula” da Silva. A nova correlação de forças alterará, como veremos adiante, o rumo da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), alimentada pela Constituinte de 1988 e por um amplo movimento da sociedade civil nos anos subseqüentes.
De outra parte, o movimento internacional, que veio alavancar as reformas no Governo Fernando Henrique Cardoso, continuou a ganhar expressão por intermédio de outras agências e de outros documentos sobre a educação. Ainda em 1990, a CEPAL publicou Transformación productiva con equidad, que enfatizava a urgência da implementação de mudanças educacionais em termos de conhecimentos e habilidades específicas, demandadas pela reestruturação produtiva. Em 1992, a CEPAL volta a publicar outro documento sobre o tema, Educación y conocimiento: eje de la ttransformación productiva con equidad, vinculando educação, conhecimento e desenvolvimento nos países da América Latina e do Caribe. A urgência era de uma ampla reforma dos sistemas educacionais para a capacitação profissional e o aproveitamento da produção científico-tecnológica ou, em outros termos, dos objetivos “cidadania e competividade”, critérios inspiradores de políticas de “eqüidade e eficiência” e diretrizes de reforma educacional de “integração nacional e descentralização” (op. cit., p. 62-63).
A UNESCO e o Banco Mundial completam o quadro principal dos impulsionadores externos das reformas. Entre 1993 e 1996, a Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, convocada pela UNESCO, composta de especialistas e coordenada pelo francês Jacques Delors, produziu o Relatório Delors, no qual se fez um diagnóstico do “contexto planetário de interdependência e globalização”. Evidenciam-se o desemprego e a exclusão social, mesmo em países ricos. O Relatório faz recomendações de conciliação, consenso, cooperação, solidariedade para enfrentar as tensões da mundialização, a perda das referências e de raízes, as demandas de conhecimento científico-tecnológico, principalmente das tecnologias de informação. A educação seria o instrumento fundamental para desenvolver nos indivíduos a capacidade de responder a esses desafios, particularmente a educação média. Sugere ainda a educação continuada e a certificação dos conhecimentos adquiridos (idem, p. 65-68).
Como co-patrocinador da Conferência de Jomtien, o Banco Mundial adotou as conclusões da Conferência, elaborando diretrizes políticas para as décadas subseqüentes a 1990 e publicando o documento Prioridades y estratégias para la educación, em 1995. Reitera os objetivos de eliminar o analfabetismo, aumentar a eficácia do ensino, melhorar o atendimento escolar e recomenda “a reforma do financiamento e da administração da educação, começando pela redefinição da função do governo e pela busca de novas fontes de recursos”, o estreitamento de laços da educação profissional com o setor produtivo e entre os setores público e privado na oferta de educação, a atenção aos resultados, a avaliação da aprendizagem, a descentralização da administração das políticas sociais. Retoma, também, a teoria do capital humano por meio da inversão em capital humano e atenção à relação custo/benefício. A educação básica deveria ajudar a “reduzir a pobreza aumentando a produtividade do trabalho dos pobres, reduzindo a fertilidade, melhorando a saúde” e gerando atitudes de participação na economia e na sociedade (idem, p. 72-75).
Nesse contexto, na nova LDB que é aprovada no Governo Cardoso, a educação básica tem “por finalidades desenvolver o educando, assegurando-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania, e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Lei nº 9.394/96, art. 22) e organiza-se nos níveis fundamentais e médio (art. 24).
A segunda finalidade, expressa no art. 22 da Lei, fornecer ao educando “meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”, apresenta-se como uma instância complementar à cidadania no sentido de realizar, pela educação, algumas das condições básicas para o exercício consciente da cidadania política. Neste sentido, a educação básica da escola brasileira depara-se com problemas que incorporam e ultrapassam o âmbito nacional e o escolar porque dizem respeito à história e à cultura do país e à reprodução econômica em todo o planeta, apesar de suas particularidades locais. Enfocaremos apenas os seguintes aspectos: a questão histórica da cidadania no Brasil, o domínio da cultura visual e a necessidade da educação tecnológica ou politécnica.
Historicamente, entendemos o problema da cidadania, no Brasil, como uma questão mal resolvida. A questão da cidadania é, originalmente, uma questão alheia à constituição da sociedade brasileira pós-colonial, situação que teria se prolongado sob o fenômeno da exclusão dos “cidadãos” brasileiros de diversas instâncias da vida social. A questão que lhe está subjacente é sobre quem pertence à comunidade política e, por extensão, quem são os cidadãos e quais são os seus direitos de brasileiros.3
A história do nascimento da Nação brasileira após a ruptura com o império colonial (Santos, 1978, p. 78-80), nos anos de 1822 a 1841, foi crucial para a definição do tipo de sociedade que seria o Brasil. Para os liberais que conspiraram contra o regime colonial, o poder imperial deveria ser diminuído e a “sociedade brasileira” deveria governar o país. O que significava responder de onde emanava a fonte do poder político legítimo, se este deveria repousar sobre o centro de poder ou se o poder deveria ser delegado mediante mecanismos de representação política e social, quem estava qualificado para estas funções, quem pertencia à comunidade política como cidadão político pleno, para que serviam o governo e o Estado.
Não obstante o conhecimento do pensamento liberal (Locke, Montesquieu e a versão americana), o que prevaleceu se afastou do pacto liberal. O pacto constitucional apoiado pela elite brasileira estabeleceu que o poder imperial antecedia a criação da sociedade. O imperador era o Poder Moderador e todos os poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo) e todos os ministros respondiam perante ele e não perante a comunidade política.
A questão sobre quem pertencia à comunidade política recebeu “nuances democráticas”. A primeira interpretação excluía da comunidade política somente os criminosos, os estrangeiros e os religiosos. Mas, como o pacto político deveria expressar as igualdades e desigualdades existentes na sociedade que, no pensamento da época, eram naturais, definiu-se que os homens de posses eram os responsáveis pela riqueza do país e constituíam a comunidade política. O que se traduziu pelo critério censitário, de renda para distribuição dos direitos de voto. Posteriormente, com o voto obrigatório universal, ampliaram-se os direitos de votar e ser votado, sem que as condições adequadas de vida, trabalho e educação tivessem se estendido, efetivamente, para toda a sociedade.
Mas a democracia, a cidadania, assim como os processos de incorporação de toda a população à sociedade produtiva, não se exercem em abstrato. Assistimos ao avultar dos problemas derivados do modelo político perverso das origens do país, agravados pelos desafios do desenvolvimento científico-tecnológico, das imposições do mercado e de seus desdobramentos no nível da cultura.
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