02/04/2010
A Globo e a ditadura
por Argemiro Ferreira
Ainda que não tivesse sido esse o objetivo de sua autobiografia, na qual relatou há 19 anos a incrível trajetória que o transformara no todo-poderoso senhor, por mais de uma década, da quarta rede comercial de televisão do mundo, Walter Clark acabou por oferecer no livro – “O Campeão de Audiência”, tendo o jornalista Gabriel Priolli como co-autor, Editora Best Seller, 1991 – uma contribuição importante para a compreensão das relações muito especiais entre a TV Globo e o regime militar à sombra do qual floresceu. Além de rejeitar a conhecida imagem da emissora como uma espécie de porta-voz do “Brasil Grande” do ditador Médici, ele garantia nunca ter visto Roberto Marinho “se humilhar diante de quem quer que fosse, milico ou não, presidente da República ou não. Ao contrário, é uma altivez que fica sempre no limite da arrogância.”
Clark referia-se à suposta independência do dono da Globo por “manter em torno de si homens de esquerda em cargos importantes” (citava Franklin de Oliveira, Evandro Carlos de Andrade e Henrique Caban) – inclusive depois que o SNI ampliou a pressão contra os dois últimos, com acusações contidas numa fita de vídeo que o dono da Globo fora convocado a assistir em companhia de Clark e Armando Nogueira. Explicitamente, admitia apenas que o regime “incomodava” a Globo, que enfrentou “o mesmo gosto amargo da censura, das intimidações, das impossibilidades que todo mundo sentiu: imprensa, rádio, televisão, as artes, a universidade, a cultura”. Claramente na defensiva, o autor mostrava-se ressentido com os que o culpavam – na própria Globo, e mais até do que Marinho – pela submissão ao regime militar. Mas ao passar das opiniões subjetivas aos fatos concretos, acabava por confirmar o que pretendia desmentir: a docilidade das emissoras de televisão, em parte resultante do caráter precário das concessões de canais pelo governo, tinha uma longa história e já o atropelara antes, na TV Rio.
Essa emissora, na qual também foi autoridade máxima (com o título nominal de “diretor comercial”), Clark submeteu-se, sem reação, ao assalto dos lacerdistas – liderados pelo empresário Abrahão Medina, fazendo valer a condição de patrocinador de programas – no episódio da tomada do Forte de Copacabana, em 1964. Posteriormente, conseguiu o prodígio de entregar-se tanto ao governo estadual como ao federal, até mesmo depois do desafio do governador Carlos Lacerda ao presidente Castello Branco. Clark confessou ter retirado do ar programas de Carlos Heitor Cony e Roberto Campos para satisfazer o coronel Gustavo Borges, chefe de Polícia do Rio, que o chantageava com a ameaça de mudar o horário da novela “O Direito de Nascer”, líder de audiência.
Não por acaso, a experiência da Globo acabaria por extremar a tendência à acomodação, a ponto de Clark contratar um ex-diretor da Censura (“o Otati”) para “ler tudo que ia para o ar” e, pior ainda, uma “assessoria especial” para cortejar o poder, formada pelo general Paiva Chaves, pelo civil linha dura Edgardo Manoel Erickson (“pelego dos milicos”, conforme disse) e mais “uns cinco ou seis funcionários”. O episódio que aparentemente o convenceu a ir tão longe chegava a ser cômico: um certo coronel Lourenço, do Dentel, tinha tirado a estação do ar em 1969, convocando Clark ao ministério da Guerra, porque Ibrahim Sued, na esperança de agradar ao Planalto, divulgara uma intriga plantada pelo grupo do general Jaime Portela, então na conspiração do “governo paralelo” juntamente com d. Yolanda Costa e Silva. Ibrahim foi preso e Clark aprendeu a lição depois de levar pito de um certo coronel Athos, “homem de Sílvio Frota”.
Além da suposta altivez de Marinho, impressionaram Clark a “integridade”, a “honestidade” e o “patriotismo” do general Garrastazu Médici, que depois de 1974 passara a frequentar seu gabinete na Globo para ver futebol aos domingos. Muita gente apanhava e morria nos cárceres da ditadura, mas para ele isso não podia, de forma alguma, ser coisa de Médici: “Tenho a impressão de que ele não se envolveu com nenhum excesso, nenhuma violência do regime”. De quem era, então, a responsabilidade? “Foi coisa dos caras da Segunda Seção do Exército, do SNI, do Cenimar, do Cisa, a turma da segurança. E era tudo na faixa de major, tenente-coronel”. Pronto a absolver os poderosos, frequentadores de seu gabinete (até mesmo o general Ednardo D’Ávila‚ chamado no livro de “figura agradável”), e a condenar apenas o guarda da esquina, obscuro, Clark comete o disparate de afirmar que “a censura e as pressões não eram feitas pelos generais”, mas por “gente como o Augusto”, beque do Vasco que virou agente do DOPS. Mas se era assim, por que submeter-se a eles?
O autor recorreu ainda a outra desculpa para justificar o adesismo e o ufanismo tão escancarados na ocasião pela rede dos Marinho: “A Globo não fazia diferente dos outros”. E mais: “Se o Estadão não conseguia enfrentar o regime, se a “Veja” não conseguia, como é que a Globo, sendo uma concessão do Estado, conseguiria resistir à censura, às pressões?” O problema, para os críticos de Clark dentro da própria emissora, é que ela, como ele, parecia preferir aquela filosofia de que se o estupro é inevitável a solução é relaxar e aproveitar. Daí os comerciais da AERP (Clark alega que foram feitos para evitar uma “Voz do Brasil” na televisão, projeto de um certo coronel Aguiar), as coberturas patrióticas de eventos militares (Olimpíadas do Exército e o resto), as baboseiras ufanistas de Amaral Neto. “Era o preço que pagávamos para fazer outras coisas”, alegou. Não se deu ao trabalhar de explicar que coisas eram essas. E ele mesmo admitiu na autobiografia que o apregoado Padrão Globo de Qualidade “acabou passando por vitrine de um regime com o qual os profissionais da TV Globo jamais concordaram”?
A Globo devia ao regime, como ficou claro no relato de Clark, até mesmo a introdução da TV a cores – imposta pelo ministro das Comunicações, coronel Higino Corsetti, sabe Deus para atender a que lobby multinacional. Mas a intimidade promíscua com o regime foi mais longe, a ponto de compartilhar com o SNI os serviços clandestinos do “despachante” encarregado de liberar contrabandos na Alfândega: para a empresa, equipamentos de TV; para os militares da espionagem oficial, sofisticados aparelhos de escuta ilegal. Graças a isso, Clark podia desfrutar estranhas sessões de lazer como a conversa com um tal general Antônio Marques, pressuroso em exibir foto tirada no escuro de um cinema (com equipamento infravermelho) e identificar o personagem em cena comprometedora como Dom Ivo Lorsheiter, progressista odiado pela linha dura militar.
O autor defendeu no livro tudo o que fez para “afagar o regime” (expressão dele) e investiu contra os que o acusavam de “puxar o saco dos militares” (também expressão dele). Para fazer autocensura, revelou, tinha importantes aliados internos, com destaque especial para o papel do diretor de jornalismo, Armando Nogueira. Por “questão de realismo”, por exemplo, Armando e ele tomavam “muito cuidado” para não trombar “com o regime e nem com Roberto Marinho”. Mas o leitor tropeça nas contradições da narrativa, entre elas a ambiguidade em relação ao ex-amigo J. B. (Boni) de Oliveira Sobrinho – acusado de fazer vista grossa quando Dias Gomes e outros enfiavam “coisas nos textos que certamente iam dar problemas”, mas também de cumplicidade com os militares para destruir o próprio Clark (“lá por 1976, Laís, a mulher do Boni, foi me denunciar para o pessoal do SNI, que ela conhecia, dizendo que eu era um toxicômano perigoso”).
Não é preciso inteligência privilegiada para perceber que o jogo de cumplicidade com o regime confundia-se com a luta interna pelo poder dentro da Globo, arbitrada por Marinho e envolvendo não apenas Clark e Boni, mas também o segundo escalão – Joe Wallach, Arce (José Ulisses Alvarez Arce) e, em especial, o diretor de jornalismo Armando Nogueira, pintado no livro como incompetente, preguiçoso e traiçoeiro. Em meio à guerra, as reuniões do conselho de direção nas manhãs de segunda-feira tornaram-se um inferno, em generalizado clima de intriga e discórdia, com todo mundo brigando com todo mundo. O dinheiro farto que todos ganhavam, contou Clark, “era como veneno, especialmente nas mãos das mulheres”. Munidas de talões de cheque, elas estrelavam “um festival de nouveau-richismo, pretensão e falta de educação”. Acusado de consumir drogas, Clark defendeu-se generalizando a prática: “a cocaína era chique nas festas intelecto-sociais, e o seu consumo, bastante disseminado”, mas “resolveram me transformar em drogado”.
Quando Marinho decidiu tomar “o brinquedo de volta” – ou seja, recuperar a Globo, que “tinha emprestado para uns garotos mais moços brincarem” – uma das mãos firmemente agarradas ao tapete de Clark, segundo o livro, foi a do ministro da Justiça, Armando Falcão, “tipo deletério, que adorava fazer intrigas, dizer que éramos todos comunistas, drogados, os piores elementos”. No relato aparece um Roberto Marinho bem mais coerente na aliança com o regime do que o autor chega a reconhecer explicitamente – tanto que o episódio no qual Clark é afinal defenestrado mistura, de forma reveladora, a disputa pelo poder no regime militar com aquela que se processava na Globo, escancarando as relações perigosas entre o governo e a rede de televisão consolidada à sombra do autoritarismo.
O autor nega que o motivo de sua saída tenha sido, ao contrário do que se propalou na época, seu comportamento pouco ortodoxo – em razão de excessos alcoólicos – numa festinha com poderosos de Brasília. O livro atribuiu a demissão a queda de braço com o regime, que exigia a expulsão pela Rede Globo da afiliada paranaense de Paulo Pimentel, político que rompera com o antigo protetor, ministro Ney Braga, e ainda era desafeto do chefe do SNI, general João Baptista Figueiredo, já a caminho da presidência. Se assim foi, faltou a Clark reconhecer ter sido demitido na primeira vez em que ousou contrariar o regime. “Eu argumentava – escreveu ele – que o governo tinha o poder concedente dos canais de rádio e TV e, se quisesse atingir o Paulo (Pimentel), que cassasse a sua concessão e enfrentasse o desgaste político”. Mas Marinho, pragmático, pensava diferente – talvez sintonizado, naquele sombrio ano de 1977, com o clima gerado por mais uma demonstração de força do regime, o Pacote de Abril.
Clark nem sequer notou a semelhança desse episódio com tantos outros que marcaram a aliança promíscua da Globo com o poder – e nos quais ela se limitara a acatar a vontade do regime. Alguns de tais episódios, envolvendo a TV e autoridades militares, desfilaram ao longo de “Campeão de Audiência”: o ataque do general Muricy a um documentário da CBS (para ele, “subversivo”) sobre o Vietnã (ironicamente, comprado pelo americano Wallach, representante do grupo Time-Life); o Jornal Nacional, no seu terceiro dia de sua existência, proibido por um coronel (Manoel Tavares) do gabinete do general Lira Tavares (membro da Junta que tomara o poder) de noticiar o sequestro do embaixador dos EUA e a doença de Costa e Silva, os dois principais assuntos; o aviso do general Sizeno Sarmento de que as músicas “Caminhando” e “América, América” estavam proibidas de ganhar o Festival Internacional da Canção; a ordem do general Orlando Geisel para as patriotadas de Amaral Neto serem incluídas no horário nobre; a prisão do próprio Clark pelo DOPS no dia do Ato 5, por ordem do coronel Luís França e em represália por ter ele discutido com o motorista do militar num incidente de trânsito.
Enfim, a especialidade da Globo parecia ser a de acomodar-se a qualquer situação. A acomodação prevaleceu também no dia da queda de Clark. E ele aceitou sem discutir o prêmio de consolação (US$ 2 milhões) oferecido por Marinho. Limitou-se a encomendar a carta de demissão (“em alto estilo…literário”) ao amigo Otto Lara Resende, suficientemente versátil para também escrever em seguida a resposta na qual o dono da Globo agradeceu os serviços prestados pelo demissionário (cinco anos depois Otto aceitaria ainda outra missão: o prefácio de “Campeão de Audiência”).
A demissão é uma espécie de anticlímax da autobiografia, na qual o autor assumiu compulsivamente a responsabilidade pelas iniciativas bem sucedidas da Globo, declarou-se partidário de programas de qualidade (mas o salto de audiência veio com os popularescos de baixo nível, apresentados por Raul Longras, Dercy Gonçalves, Chacrinha, etc, não muito distantes da atual pornografia BBB) e atribuiu o mal feito a outros – entre eles, os que mantiveram o faturamento milionário e a liderança absoluta de audiência nos anos seguintes, enquanto o próprio Clark, que na Globo tinha o maior salário do mundo e frequentava presidentes e ministros, descia ao fundo do poço, de fracasso em fracasso (como diretor de duas TVs, logo demitido, e produtor de dois filmes nos quais não se reconheceu sua contribuição, além de um espetáculo teatral altamente deficitário).
“Em 14 anos, depois de minha saída, o que houve de realmente novo?” – perguntou o autor naquele ano de 1991, referindo-se à Globo. Pouca coisa, talvez. Hoje, com a perda crescente de audiência para os concorrentes e sem os privilégios garantidos em 20 anos de ditadura militar, ela está condenada a conformar-se com as regras da democracia e da competição. E passa a valer para a Globo a amarga reflexão pessoal de Clark no livro: “Não se deve cultivar excessivamente o poder, pendurar-se emocionalmente nele, porque um belo dia o poder acaba, e o dia seguinte é terrível”.
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