16/01/2010

O cotidiano da luta abolicionista nas páginas magistrais de um romancista estreante




Edson Amaro*

Já Aristóteles, em sua Poética, discutia a relação entre a poesia e a História. Dizia ele que o que diferenciava os livros de Homero da obra de Heródoto não era o fato de ter um escrito em verso e o outro em prosa, mas o fato de Heródoto ter contado a História como ela foi e Homero, como poderia ter sido. Até hoje há obras que mostram bem como pode ser fértil a relação entre a Literatura e a História e quantas trocas podem haver entre elas.


Mãe África Pai Brasil, do estreante Dudda Seixas (JM Gráfica e Editora, Salvador, 2007) é uma obra que merece ser lida por todos e todas que se interessam pelo Brasil Império e pela luta pela Abolição. O romance é narrado em primeira pessoa por Norambo, um negro que é capturado na África, trazido ilegalmente ao Brasil num navio tumbeiro, quando o tráfico de escravos já havia sido abolido, e vendido a um latifundiário que despistava a lei usando o seguinte expediente: enterrando os negros em um cemitério clandestino em sua propriedade, não revelava as mortes de seus escravos às autoridades e, assim, podia reutilizar os documentos dos mortos para manter em cativeiro os novos escravos recém-chegados da África.


Dudda Seixas reconstitui, com tintas fortes, o sofrimento dos negros no navio negreiro e na fazenda, até que o protagonista, batizado com o nome de Felipe dos Anjos, tem a sorte de ser mandado até a capital da Bahia, como única propriedade da filha deserdada do coronel e acaba sendo entregue a um médico abolicionista, que o mantém em sua casa, alfabetiza-o, liberta-o provando a ilegalidade de seu cativeiro para que ele possa trabalhar como assistente de seu filho advogado e a consciência crítica do ex-escravo curioso e persistente é uma faca afiada que jamais perdeu o gume: “Para quem fosse conhecer o Brasil pela sua Constituição e Código Penal, seguramente teceria elogios a respeito de tão boas leis. De fato, a nossa legislação sempre foi baseada, digo, copiada, das leis mais avançadas do mundo. Porém, a cultura do descumprimento da lei instalou-se no brasileiro. Dessa forma, o estudo da lei passou a ser o estudo das brechas da lei. Ou seja, de que forma pode o cidadão não cumpri-la? Aliado a isso tem-se uma Justiça morosa. Com duas características singulares: primeiro é uma classe formada pelos senhores do açúcar e do café, principalmente em São Paulo. Eles começam como advogados, viram juízes, depois deputados, e assim se perpetuam no poder. Segundo, os cargos mais altos da magistratura são por indicação política. Não há independência. (pág. 182)”


E ao ler essas páginas, o leitor ou a leitora será imediatamente transportado no tempo e no espaço até a cidade de Salvador século XIX, retratada com detalhes, no cotidiano de sua expansão e da agitação das campanhas abolicionista e republicana. O romance, além disso, celebra o encontro das culturas e das etnias, a diversidade que constitui a riqueza da cultura brasileira, e mostra que é nas diferenças que reside a beleza da vida: “O mais importante, me parece, não é a fé em Deus ou em Olorum, é a crença no amor, na possibilidade de partilhar, de unir pessoas. (pág. 88)”


Ao final do romance, as considerações do narrador-personagem, que conta a história em algum momento no início do século XX, servem também, com poucos retoques, para retratar o Brasil do século XXI:


“Ainda temos coronéis, capitães e outros malfeitores. Ainda não se cumprem as leis e os homens da cúpula da Justiça são indicados pelos homens da política, não há independência. A educação é direito de todos, mas o acesso não é fácil. Epidemias de cólera são constantes. Os hospitais, na sua maioria, são particulares, mas boa parte da população não tem acesso. Ainda há contrabando, de coisas e de gente, até crianças são mercadorias. A República é governada por um presidente que mais parece um rei. Como diria o senador Cristiano Otoni: É uma vergonha.


O país pouco mudara. Ainda tem Casa Grande e Senzala.

– Até quando, amigo Humberto, a nação brasileira vai esperar por um futuro melhor?

– Sim, Felipe, até quando?”


*Edson Amaro é licenciado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, professor da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro e diretor do SEPE/SG - Grupo NA LUTA PELA EDUCAÇÃO (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação-Núcleo São Gonçalo).



Publicado na revista SEM TERRA, no 53, nov/dez de 2009, pág. 53, sob o título “A luta abolicionista ontem e hoje”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Serão eliminados do Blog os comentários que:

1-Configurem qualquer tipo de crime de acordo com as leis do país;
2-Contenham insultos, agressões, ofensas e baixarias;
3-Contenham conteúdos racistas ou homofóbicos.