16/01/2010

O camponês escritor da seca

Edson Amaro é licenciado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, professor da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro e diretor do SEPE/SG - Grupo NA LUTA PELA EDUCAÇÃO (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação-Núcleo São Gonçalo).




            Só agora li um livro que há tempos aguardava a vez na minha estante: O Martírio dos Viventes, de Paulo Cavalcante. Eu o adquiri durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em 2007, local do evento. Isso mesmo: o autor não tinha permissão para expor a sua obra lá dentro, concorrendo com os estandes das grandes editoras, e ficou lá fora, escritor sem-status, oferecendo aos passantes a sua obra. Falei, então, para ele do grande dramaturgo Plínio Marcos, que também não era bem-vindo a esses evento lítero-consumistas e ficava do lado de fora vendendo cópias de seus dramas magistrais.


            Muito já se produziu sobre a catástrofe das secas recorrentes no Nordeste em todas as formas de expressão artística: na literatura (O Quinze, de Rachel de Queiroz e Vidas Secas, de Graciliano Ramos são os grandes clássicos sobre o tema), no cinema (Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha), na pintura (Os Retirantes, de Portinari) e na música Asa Branca e A Triste Partida, na voz de Luiz Gonzaga são inesquecíveis).


            O romance do qual falo não é apenas uma obra a aumentar a já enorme lista de obras de arte sobre o tema: é escrita por mãos de origem camponesa, com a linguagem dos camponeses. A licenciatura em História pela Universidade Estadual da Paraíba é apenas mais um elemento do vasto currículo do autor: “camponês, office-boy, copeiro, cozinheiro, balconista e garçom”, como ele se apresenta na orelha do livro. O livro não é autobiográfico, mas nesse caso a experiência de vida do autor pesou vem na composição da obra: ele escreve documentando os costumes e a psicologia camponesa, com a autenticidade de quem conhece de perto a vida dura dos seus personagens, por ter com eles convivido e junto a eles lutado pela sobrevivência.


           A época do romance são os 21 meses de estiagem que torturaram a Paraíba entre os anos de 1992 e 1993. A estrutura do romance, que conta as diferentes trajetórias de Zé Mocó e família, do ancião Argemiro e de Miguelão, não lhe dá a unidade narrativa de Vidas Secas, nem é, como o livro de Graciliano, construído sobre a alternância seca-chuva-seca (o que impede que se ponha um ponto final nesse clássico). O Martírio tem início com a seca e finda com a chegada das chuva,s mas, em suas páginas, a lembrança de várias obras anteriores nos vem à mente: o velho Argemiro lembra bem a Mãe Nácia de O Quinze, com o seu apego à terra e sua recusa em deixá-la; a referência às provas de chuva (as pedras de sal no dia de Santa Luzia, a barra no alvorecer do dia de Natal, entre outras) lembra a exposição dos costumes populares nos versos de A Triste Partida, de Patativa do Assaré e a migração da família lembra os retirantes de Vidas Secas.


            É, aliás, a migração da família de Zé Mocó que faz esse texto distanciar-se da narrativa de Graciliano. O mestre alagoano suspende a escrita do seu romance quando a família de Fabiano e Sinha Vitória deixam o sertão com destino à cidade, enquanto Paulo Cavalcante acompanha os seus migrantes para falar de suas desventuras longe do lugar onde nasceram e viveram. Sem te ronde morar, constroem junto a um lixão um barraco, onde aguardam a volta das chuvas, na esperança de retornar ao pequeno pedaço de terra que ocupavam havia mais de uma década no interior. Lá, Zé Mocó passa a se chamar Zé do Lixo e, excluídos do convívio social, acompanham à distância a vida na cidade.


            Chegam, enfim, as chuvas e o final do romance não é feliz: quando as águas voltam, Zé do Lixo recebe a notícia de que o latifundiário que lhe era vizinho aproveitara a ausência da família para derrubar seu casebre e incorporar a sua pequena posse à grande propriedade. Bem denunciava Patativa em A Triste Partida que a seca beneficia o latifúndio, triste realidade de um país cujas leis não limitam a propriedade.


AMARO, Edson. In: Revista Sem Terra, no 51, São Paulo: MST, julho/agosto de 2009, pág. 54.

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