Para Marx e Lênin, assim como os comunistas de modo geral, o sucesso da revolução na Rússia dependia da vitória da Revolução também no Ocidente, pois sabiam que o capitalismo era [e é] um sistema mundial, e não podia ser derrotado apenas pela ruptura de seu elo mais fraco. O projeto da Revolução Russa como estopim de uma Revolução mundial fracassou quando a Revolução no Ocidente foi logo em seguida derrotada, especialmente na Alemanha, com a traição do partido dos social-democratas, e quando o Exército revolucionário foi derrotado na Polônia. Lênin estava ciente de que a derrota da Revolução no Ocidente era um sinal de que a revolução russa estaria condenada à degeneração. Os fatos posteriores vieram lhe dar razão e ao próprio Marx.
Em seguida, as dificuldades se avolumaram, especialmente com o agravamento da doença de Lênin, vítima de dois atentados, até sua morte em 1924, por envenamento por ordem de Stalin, conforme as revelações, décadas após, de seu cozinheiro e enfermeiro. São bem conhecidas as lutas desesperadas travadas por Lênin para impedir que a direção do Partido caísse nas mãos de Stalin, considerado por ele um dirigente truculento, ignorante e inábil – nas palavras de Lênin, “um cozinheiro de molhos picantes”.
Em dezembro de 1923 e janeiro de 1924, com sua morte à vista, Lenin recomendou a seus aliados na direção do Partido que fosse providenciado o afastamento de Stálin, à vista da postura desastrada e truculenta no encaminhamento da questão das nacionalidades. Lênin defendia a independência das demais repúblicas socialistas e a associação voluntária, por parte delas, na federação soviética, enquanto Stálin vinha impondo a força essa associação, o que se constituía em maus augúrios para o futuro da Revolução.
Pode-se colocar um marco para a derrota definitiva da Revolução Russa quando da morte de Lênin em 1924 e a eleição de Stalin como Secretário-Geral. Daí em diante, com o domínio absoluto do Partido por Stálin, segue-se, em linhas gerais, a traição da Revolução Russa com a implantação draconiana de um Capitalismo de Estado, o qual, jamais pode ser confundido com o socialismo de que tratou Marx, Engels ou o próprio Lênin, e muitos outros.
O próprio expurgo stalinista do alto escalão do Partido, intensificado após a coletivização forçada das terras dos camponeses em 1928, baseou-se na traição fundamental manifestada na violência infligida contra seus próprios membros, testemunho da auto contradição radical do regime: a tensão inerente entre o projeto comunista e o desastre de sua realização, e o fato de que, na origem do regime, houve um projeto revolucionário autêntico – os expurgos foram necessários não só para apagar os vestígios das origens do próprio regime, mas também como uma sua negatividade radical no âmago do próprio regime.
O terror stalinista foi simultaneamente uma tentativa de apagar os vestígios do passado revolucionário autêntico e a inscrição, em si, da traição da própria Revolução, sob o disfarce de prisões e execuções arbitrárias que ameaçavam todos da nomenklatura.
Para Marx, Engles e Lenin a Revolução deveria ensejar condições para a “livre associação dos produtores”, ou seja, de todos os trabalhadores, os quais se emancipariam do jugo do capital em um regime cuja característica era essa essência libertária. Assim, pode-se refletir sobre a tragédia da Revolução Russa, perceber sua grandeza, seu inigualável potencial emancipador e, ao mesmo tempo, a necessidade histórica de seu resultado stalinista, decorrente do fracasso da revolução no Ocidente, da resultante introspecção do impulso revolucionário, da industrialização e da coletivização forçadas e do quase suicídio do Partido com os expurgos stalinistas dos anos 1930.
Assim, o que ruiu em 1989, supostamente devido ao planejamento centralizado, conforme a visão míope do processo histórico, não foi a Revolução Socialista de 1917. Esta já havia se degenerado e desaparecido nos anos 1920, por circunstância históricas do tempo, que condicionaram e sofreram influência da ação dos homens da época.
Alguém poderia condenar os da esquerda que desafiaram a histeria anti-comunista em seus países, fazendo-o com a maior sinceridade, naquilo que é conhecido como outra tragédia produzida pela Guerra Fria. Eles estavam preparados para ser presos por suas convicções comunistas e em defesa da União Soviética. A natureza verdadeiramente ilusória de suas crenças torna a postura subjetiva deles excepcionalmente sublime, eis que a realidade miserável do regime stalinista deu à íntima convicção deles uma beleza frágil. É um paradoxo que, entre os de esquerda, muitos se recusaram a ver, mais nem por isso devem ser condenados, pois essa cegueira, paradoxalmente, é componente mais profundo de cada postura “ética”.
Ao analisar o entusiasmo pela Revolução Francesa, Kant já havia observado esse paradoxo em seu “Conflito das Faculdades” [1795]. O verdadeiro significado da Revolução não era o que acontecia nas ruas de Paris e nem no cadafalso da Bastilha, mas na resposta entusiástica que os eventos de Paris despertaram aos olhos de observadores simpatizantes em toda a Europa:
“”A recente Revolução de um povo rico espiritualmente pode até fracassar ou ter sucesso, acumular miséria e atrocidade, mas, contudo, acende no coração de todos os espectadores [que não tenham sido engolfados nela] a tomada de posição de acordo com os desejos, que beira o entusiasmo, o qual, uma vez que a sua verdadeira expressão não ocorre sem riscos, só podia ser causada por uma disposição moral dentro da espécie humana””.
Assim, a dimensão real não se encontrava nos acontecimentos violentos em Paris, mas em como essa realidade aparecia aos observadores e nas esperanças que, assim, despertavam neles. A realidade do que ocorria em Paris pertencia à dimensão temporal da história empírica, mas a imagem sublime que gerou entusiasmo pertence à eternidade.
O mesmo se aplica à Revolução Russa, em sua busca da libertação dos trabalhadores. A “construção do socialismo em um só país” certamente “acumulou miséria e atrocidade”, mas, no entanto, despertou o entusiasmo no coração dos espectadores.
A questão é se cada “ética” deve se apoiar nessa negação fetichista, em que muitos da esquerda se apoiaram no passado: “Sei que coisas terríveis ocorrem na União Soviética, mas, no entanto, confio no socialismo na União Soviética.”
O fato é que a maioria das éticas universais traça uma linha e ignora muitos sofrimentos: a da morte dos animais que consumimos, o dos milhões que são torturados e assinados nas diferentes guerras, a da exploração do trabalhador pelo capital, que impõe uma sociadade iníqua, egoísta e hedonista, e que recusamos a ver, são exemplos.
Cada gesto fundador de universalidade ética é excludente de outras formas de ser e quanto mais universalmente explícita é uma ética mais brutal é a exclusão a ela subjacente. Vemos sempre o Outro imponderável como o inimigo, e não quem mereça nosso respeito incondicional, pois toda noção de universal é colorida por nossos valores particulares e, assim, implica exclusões secretas.
Evidentemente que o fracasso da União Soviética e das experiências socialistas em outros países não devem ser confundidos com o fim da luta pelo socialismo, que se inscreve como uma imposição decorrente do próprio impulso do capital desenfreado pela auto-acumulação e concentração, que dissemina uma iniquidade crescente, num processo que degenera a natureza, inclusive seu bem mais precioso: a humanidade.
Hoje, um aspecto da emergente sociedade “global” está em jogo: com o fim da breve utopia Fukuyamesca dos felizes anos 1990 Clintonianos, muros estão surgindo por todo o mundo: entre Israel e a Faixa Ocidental, em torno da União Européia, e na fronteira dos Estados Unidos e do México. Vigora na Europa legislação que impede o fluxo de imigrantes.
Chegamos, aqui, à verdade da globalização neoliberal: a construção de muros para impedir o ingresso de seus excluídos. Aqui, evidencia-se com toda a clareza a análise humanista de Marx sobre o capitalismo, como um sistema que estabelece “relações entre coisas” e não “relações entre pessoas”.
Na tão celebrada livre circulação aberta pelo capitalismo globalizado, são as coisas [as mercadorias] que circulam livremente, enquanto a circulação de pessoas é crescentemente controlada.
Revela-se, assim, a crua “dialética da globalização”: a segregação dos povos é a realidade da globalização econômico-financeira. Essa nova modalidade de racismo é mais brutal que as anteriores: sua legitimação não é nem naturalista nem cultural, mas simplesmente o mais descarado egoísmo. A divisão fundamental é entre os incluídos na esfera da propriedade e os dela excluídos.
O que se impõe, ainda hoje, como sentenciou Rosa Luxemburgo no início do século XX, é a escolha entre “Socialismo ou barbárie”. E nesse processo, a forma de transição. Evidentemente, não pode ser à moda de Kautsky, segundo a qual uma revolução seria aceitável e ocorreria quando pelo menos 51 por cento dos eleitores a aprovassem.
É impossível divisar-se alguma “garantia” para a Revolução. Já foi muito criticada a postura da "Necessidade Social"[não se deve arriscar uma revolução prematura, deve-se esperar o momento certo, quando a situação estiver “madura” e conforme as leis do desenvolvimento histórico, ou quando a classe trabalhadora tiver amadurecido] ou da legitimidade [“a maioria da população não está do nosso lado, portanto, a revolução não seria realmente democrática] normativa [“democrática”].
Isso levaria a que a liderança revolucionária, antes de assumir o poder do Estado, tivesse que pedir permissão para alguma figura do Grande Outro [faça um plebiscito para se certificar de que a maioria apóia a Revolução].
A Revolução não é autorizada senão que por ela mesma.
A própria Democracia é não apenas “a institucionalização da ausência do Outro”. Ao institucionalizar a ausência, ela a neutraliza – normaliza — , de modo que a inexistência do Grande Outro é novamente suspendida: o Outro está novamente aqui disfarçado de legitimação/autorização democrática de nossos atos
Em contraste com essa lógica, o papel das forças emancipatórias não é o de passivamente “refletir” a opinião da maioria, mas o de instigar as classes trabalhadoras para mobilizarem suas forças a fim de, assim, criar uma nova maioria, uma maioria “dinamicamente criada”.
O temor de todo renegado social-democrata, da tomada do poder prematuramente, implica uma visão positivista da história como um processo “objetivo” que determina, com antecipação, as coordenadas possíveis das intervenções políticas.
Dentro desse horizonte, é inimaginável que uma intervenção política radical – que tomasse as coisas pela raiz – mudasse essas coordenadas realmente “objetivas” e, assim, criasse as condições para seu sucesso.
Ao contrário do que pensam, o passado puro é passível de mudança pela ocorrência de um novo presente e, em especial, por nosso poder de mudá-lo. O sentido histórico envolve uma percepção, não apenas da herança do passado, mas de sua presença, que pode ser modificada pela introdução do novo, que tem a capacidade de também alterar o significado do próprio passado.
A liberdade é, assim, inerentemente retroativa, não é simplesmente uma “necessidade reconhecida/conhecida”, mas uma necessidade reconhecida/assumida, a necessidade constituída/atualizada por meio de seu reconhecimento.
César, ao cruzar o Rubicão, não fez nada mais além do que ele era virtualmente. Cruzou o Rubicão simplesmente por ser César. E o impasse da transição mundial ao Socialismo, inclusive no Brasil, resulta do fato de muitos atores da esquerda não terem agido como revolucionários reais. Ninguém pode realizar o que não traz em si potencialmente. Mas, o curso pode ser corrigido e a esperança emancipatória em um mundo igual e livre segue viva.
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