02/10/2013

A repressão aos professores no Rio escancara a disputa pelo projeto de educação pública no Brasil


O conflito entre professores e prefeitura do Rio envolve muito mais do que uma questão local. Observa-se atualmente a transmutação do autoritarismo com que o prefeito Paes sempre tratou a categoria de professores em violência discursiva e policial. Por quê? Não há uma única resposta para a questão, mas alguns fatores saltam aos olhos para aqueles que têm algum conhecimento do cenário da educação pública na sociedade brasileira na atualidade.

O primeiro ponto que destacaria se refere à postura das organizações Globo frente ao conflito. Sua cobertura jornalística apresentou informações, em várias ocasiões, sem o menor tratamento e rigor ético num sentido de estigmatizar a campanha dos professores e de defender a prefeitura. De um lado, apresentava dados distorcidos, entrevistas capciosas e editoriais que colocam os professores como dinossauros ignorantes, avermelhados e corporativistas; de outro defendiam o projeto de meritocracia, responsabilização e privatização que Paes e Costin implementam de maneira extremamente autoritária como a modernidade que pode salvar a educação do país. Trata-se de uma estratégia desonesta de desqualificar o discurso de todos aqueles (inclusive uma minoria de dinossauros avermelhados) que simplesmente discordam que o caminho que a prefeitura tem copiado do modelo americano seja o melhor para a nossa realidade – aliás, pesquisas mostram que não obteve melhora da qualidade nem por lá.

Também vale ressaltar que este é apenas um modelo estadunidense, que não é o único, muito menos a melhor via para se alcançar a universalização da qualidade da escola pública brasileira. A grande maioria dos países bem colocados nas provas internacionais não reza essa cartilha – a famosa Finlândia, primeira nestes testes, prega o princípio oposto. Talvez, este seja um bom modelo para as empresas, mas não necessariamente para a maioria da população que usufrui o serviço.

Esta cartilha vem sendo implementada com maior ou menor intensidade nas redes que cobrem as três principais cidades do país. Tanto nos “States”, quanto aqui, recebe grande apoio de grandes entidades empresariais, que em troca são presenteadas com uma série desonerações e verbas estatais para gerir redes, escolas, criar programas de capacitação de professores, projetos especiais para alunos com problemas, etc. Funcionam mais ou menos como certa lógica presente nas indústrias farmacêuticas que priorizam a venda de remédios que atacam os efeitos e o amenizam momentaneamente. Como as causas mais profundas persistem, garantem assim uma enorme reserva de mercado.

Pois bem, as Organizações Globo ocupam um papel central em uma destas organizações empresariais[1] que pretendem abocanhar cada vez mais verbas da educação pública, pois além da parte de divulgação das propostas, tem interesse direto na venda de produtos e serviços para o poder público. Como a maioria da população nem faz ideia desta discussão, as organizações de professores representam o grande entrave deste projeto de mercantilização da educação pública. Por isso a enorme campanha de desqualificação da classe. Sem corporativismos, é claro que dentro de uma categoria profissional enorme há professores mal preparados, radicalismos, mau-caratismos etc. – o que também ocorre entre advogados, médicos e engenheiros. O que vemos hoje é o mesmo que culpar exclusivamente os advogados pelos problemas da justiça brasileira – um absurdo total. Mas, uma diferença está no peso que se dá às opiniões das entidades que representam as duas categorias.

Como grande vitrine que é, a prefeitura do Rio vem fazendo absolutamente de tudo para passar uma imagem de êxito deste projeto de educação. Por exemplo, dá um golpe imoral para aumentar as notas na avaliação federal. Com o apoio de uma dessas fundações empresariais, criou turmas de aceleração para os alunos com maiores déficits de aprendizagem. Nessas turmas, o professor licenciado tem que dar todas as disciplinas do programa. Esses alunos com mais dificuldades são excluídos das turmas que fazem as avaliações nacionais e assim a nota da rede sobe e o prefeito faz propaganda de sua eficiente gestão. Alunos que deveriam ter atenção mais especializada são atendidos por um professor que não fora devidamente qualificado e são jogados as pressas para fora do sistema. Esse é um ótimo exemplo da lógica que guia o projeto de educação ao qual os professores do Rio e de tantas outras cidades do Brasil se contrapõem.

Outro exemplo do autoritarismo e da má fé da prefeitura está no debate sobre o plano de carreira. Os professores tinham saído da greve devido à promessa de estabelecimento de um grupo de trabalho para negociar o PCCS. Dias depois são surpreendidos com uma sórdida manobra em que o prefeito se encontra com os vereadores aliados (os mesmos que inviabilizaram a CPI dos ônibus) e encaminha uma proposta de plano com emendas que iriam à votação sem apreciação da categoria docente e da oposição legislativa. Como classificar este procedimento?

E pior, o PCCR encaminhado é na verdade a mais autoritária das formas de implemanteção do projeto da prefeitura. Oficializa a ilegalidade dos professores generalistas, restringe os ganhos reais aos 7% de professores 40h e retira os direitos dos demais. Em editorial, o Globo afirma: “há o correto interesse em estimular a jornada de 40 horas por semana, porque, em obediência a decreto municipal, o turno único estará em vigor em toda a rede até 2020 — considerado o melhor pelos pedagogos”. Fala o óbvio, distorce as intenções. Os professores sabem que este regime é o melhor para o sistema de ensino. Maquiavélico é se aproveitar de uma demanda gerada pelos docentes e retirar direitos da maioria para que estes sejam “forçados” a migrar de regime. Não é assim que deve ocorrer numa democracia – princípio que os governantes do Rio parecem desconhecer.

Cabe ressaltar aqui o papel da secretária Costin. Antes de assumir o cargo, trabalhou no Banco Mundial, em fundações empresariais para promover a “qualidade da educação” e foi a secretária de educação que implementou a mesma política em São Paulo. Em editorial da semana passada, o Globo disse:

“É preciso que a categoria de professores tenha uma visão mais ampla do que se passa hoje no Brasil — o que não serve de justificativa a baixas remunerações. Como o “bônus demográfico” — população jovem proporcionalmente maior —já está sendo resgatado, há um prazo fixo para o salto no desenvolvimento (mais 15 a 20 anos), a ser determinado pela instrução. Se a missão de se qualificar esta e a próxima geração não for cumprida, a ideia do “país do futuro” será passado”.

O que foi omitido é que desde os anos 1990, as políticas educacionais brasileiras vêm sendo predominantemente influenciadas pelas modas neoliberais enunciadas pelo Banco Mundial e pelos grupos empresariais internacionais – as quais os nossos adoram copiar. A política de educação que Paes e Costin implementam no Rio é só a última moda. Essas políticas vêm sendo questionadas internacionalmente por inúmeras pesquisas há 20 anos, sem apresentar ganhos concretos. Neste período, os professores tiveram pouca influência nas políticas de educação, ao contrário dos grupos empresariais e organizações internacionais. E, justamente, por ter essa visão mais ampla, os professores se levantam. Os professores do Rio foram os primeiros a se levantarem mais radicalmente contra esse tipo de política. As manobras rasteiras para aprovar o PCCS sem discussão democrática e a repressão violenta sobre os docentes indicam o que está em jogo.

Guilherme de Alcantara – Professor da rede pública.

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