27/03/2012

ANTON SEMIONOVITCH MAKARENKO - O PROFESSOR DO COLETIVO

TRABALHO COLETIVO NA ESCOLA PÚBLICA: CONTRIBUIÇÕES PEDAGÓGICAS DE ANTON SEMIONOVITCH MAKARENKO 
Maria José Ferreira RUIZ1  


RESUMO: o texto objetiva apresentar algumas concepções pedagógicas de Anton Semionovitch Makarenko. A partir delas, propõe um repensar sobre a escola atual. Tem como foco o trabalho coletivo e cooperativo. Utiliza-se como aporte teórico, dentre outros, o livro de Luedemann, “Anton Makarenko: Vida e obra: A pedagogia da revolução”. Parte de uma perspectiva materialista histórica, na qual se tem o entendimento que ao analisar as concepções teóricas de um autor, estas devam ser situadas no lócus histórico e concreto no qual foram produzidas. Para tanto, é mister levar em conta a conjuntura temporal e as especifidades históricas e materiais da época. O texto trata de algumas questões aventadas por Makarenko, a saber: individualismo, disciplina, representatividade, assembléias, normatização, cortesia e perspectiva. Ao apresentar e discutir estas questões aponta possíveis desdobramentos e subsídios à construção de propostas coletivas diferenciadas daquelas que temos hoje, pautadas em instâncias colegiadas representativas que, de forma geral, enfatizam mais os princípios administrativos e burocráticos do que os princípios pedagógicos e educativos. 


INTRODUÇÃO 

O trabalho coletivo não parece ser uma realidade na maioria das instituições escolares. Esta afirmação procede da análise de diferentes pesquisas e textos produzidos sobre este assunto (BARROS, 1995, LELES, 2007, CONTI, 2007). Sabe-se que a possibilidade de se desenvolver a coletividade é um tanto quanto limitada em sociedades divididas em classes sociais antagônicas, nas quais os valores mercadológicos, neoliberais são imperativos. A escola é tida como uma instituição burocrática, hierárquica que tende a professar e reiterar a lógica do capital neoliberal em seu interior. Nesta lógica, os valores imperiosos são a competitividade, a meritocracia e o individualismo, valores estes que ofuscam a possibilidade de se vislumbrar qualquer alternativa significativamente diferenciada em relação à forma de organização do trabalho pedagógico nesta instituição.
As assertivas acima são coesas, mas parecem expressar a idéia de imutabilidade histórica. De acordo com Boron (2004, p. 57) “nada na história autoriza a pensar que o neoliberalismo como fórmula econômica-política de governo alcançou uma hegemonia total e definitiva”. Este autor ainda prossegue enfatizando que muitos segmentos sociais têm partido do pressuposto que “o mundo será, daqui por diante, neoliberal até o fim dos tempos” (2004, p. 57). Therborn (2004, p. 89), neste mesmo sentido, enfoca que “nesta virada de século, devemos considerar o neoliberalismo apenas como uma pequena onda na imensidão do oceano histórico”. 
Partindo de princípios gramscianos, Boron (2004) entende que o problema atual é que, apesar de o neoliberalismo mostrar alguns sintomas de esgotamento, ainda não é possível vislumbrar um outro modelo substitutivo a esta forma de organização política, econômica e social. Momentos assim, nos quais o velho ainda agoniza e o novo ainda não tem condição de se mostrar hegemônico são momentos de crise.
                        Que a crise está posta, poucas pessoas desacreditam, basta observar as atrocidades, as aberrações, a consternação, que acometem o momento hodierno. Boron (2004) cita como exemplos desses flagelos a limpeza étnica, a corrupção, a disseminação de armas e materiais bélicos, dentre outros. Cury (2005, p.19), ao fazer a crítica ao colonialismo do capital nos últimos séculos, ainda acrescenta outros: “a escravatura, repressões impiedosas, torturas, expropriação [...] desmatamento, e desertificação, desastres ecológicos, fome, êxodo das populações rumo às megalópoles, onde as esperam o desemprego e a miséria”. Todos estes fatores levam ao entendimento que o sistema atual está se fragilizando, ao criar dentro de si tamanhas atrocidades.

Para Mészáros (2006, p. 76) o capital passa por uma época de“crise estrutural global”. É uma época histórica que pode indicar que estamos em transição de “uma ordem social existente, para outra qualitativamente diferente”. Estão postos os desafios para se romper com a lógica do capital e tentar vislumbrar uma educação que vá além deste sistema. Mészáros (2006, p. 76) ainda afirma que “a transformação social emancipadora radical requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa contribuição da educação no seu sentido amplo”.
 
São nestes momentos que as forças progressistas necessitam avançar em busca de outro sistema, menos perverso e mais justo, pois “só a exposição das cicatrizes e da miséria produzidas pelo capitalismo não bastará para achar uma saída ‘pela esquerda’ para a crise atual” (BORON, 2004, p. 60). A célebre frase: “quanto mais negra é a noite, mais brilham as estrelas”, de Rosa de Luxemburgo parafraseada por Boron (2004, p. 60), traz ânimo para se repensar a educação e vislumbrar a possibilidade de se construir uma escola melhor para os filhos das classes trabalhadoras, que muitas vezes têm esta instituição como o único lócus de apropriação do conhecimento científico sistematizado. Trata-se de entender a escola como um ambiente conflituoso, permeado constantemente por contradições no qual ocorrem, diuturnamente, “lutas pedagógicas” que podem vir a somar-se com a luta sócio-política, em prol da transformação social.
 Tendo isto em vista, o objetivo que move este texto é apresentar algumas concepções pedagógicas de Anton Semionovitch Makarenko (1888-1939), para a partir delas repensar a escola atual. O foco do texto é o trabalho coletivo e cooperativo. Entende-se por trabalho coletivo e cooperativo na escola, aquele concretizado por um grupo de pessoas diversas (comunidade, alunos, professores, coordenadores, diretores) com um objetivo em comum. O trabalho só é coletivo quando, além de possibilitar a participação da coletividade na elaboração e na formulação de propostas, assim como na sua execução, propicia tambéma possibilidade de participação na tomada de decisão. É uma forma de trabalho que busca a democratização das relações no interior da escola, numa perspectiva contra-hegemônica de luta que não se submete aos ditames do capital neoliberal.
Utiliza-se como aporte teórico, para compreender as implicações pedagógicas de Makarenko, o livro da educadora e jornalista Cecília Luedemann, “Anton Makarenko: Vida e obra: A pedagogia da revolução”. No espaço e no limite deste trabalho, não se tem a intenção de apresentar em minúcias a experiência educativa deste pedagogo russo e nem seus dados biográficos. Tampouco se quer transformar uma experiência tão rica e polêmica em receita ou manual para professores. Como já dito, a intenção apenas é contribuir modestamente para se repensar a educação hodierna à luz de um pensamento tão brilhante.
Numa perspectiva materialista histórica, parte-se do entendimento de que ao analisar o pressuposto teórico de um autor este deve ser situado no lócus histórico e concreto no qual foi produzido, sem perder de vista a conjuntura temporal e as especificidades históricas e materiais nas quais os mesmos se constituíram. Sendo assim, mesmo considerando que Makarenko pode servir de referência para se pensar a coletividade na escola contemporânea, não deve se perder de vista que produz em um tempo e um lugar específico. Escreve pós-revolução soviética e pensa em uma educação para um novo homem, que participaria da construção da sociedade socialista. Porém, este fato não inviabiliza que suas idéias sirvam de referência aos profissionais da educação na atualidade. Neste texto, considera-se que, embora Makarenko viva em época e em contexto completamente díspares do momento atual, é possível apreciar suas idéias e refletir sobre elas, tendo em vista o momento de crise hodierno, também percebido na escola. Crise esta que tem levado para o interior da escola problemas que não são originários nela (fome, miséria, desemprego, prostituição, tráfico, dentre outros), mas que estão em seu interior. Pensa-se então que este referencial pode contribuir para vislumbrar uma ressignificação na organização escolar.
Neste texto, para limitar a discussão, apenas alguns temas aventados por Makarenko são apresentados, a saber: individualismo, disciplina, representatividade, assembléias, normatização, cortesia e perspectiva. Ao apresentar e discutir cada um destes temas aponta-se possíveis desdobramentos e subsídios à construção de propostas coletivas diferenciadas daquelas que temos hoje, pautadas em instâncias colegiadas representativas. Estas instâncias, de forma geral, enfatizam mais os princípios administrativos e burocráticos do que os princípios pedagógicos educativos. Em grande parte das vezes, ainda servem para reforçar a lógica do capital neoliberal, contribuindo para a desresponsabilização do Estado sobre as questões da escola, delegando a esta instituição a responsabilidade de angariar recursos financeiros, para tanto, unindo-se à sociedade civil. 

SITUANDO MAKARENKO NA HISTÓRIA 

As transformações econômicas, sociais e políticas vividas pela Rússia nas primeiras décadas do século XX, sugerem mudanças também na área educacional. De acordo com Cambi (1999, p. 558), neste momento histórico Lenin ocupa o governo do país e busca estabelecer uma estratégia revolucionária, dando ênfase às novas características que deveriam compor a educação comunista. Defende assim uma relação muito próxima entre escola e política. Tenta estabelecer na Rússia a educação politécnica, que una instrução e trabalho produtivo, partindo de pressupostos marxianos.

Cambi (1999) ainda cita que Lenin procura desenvolver uma pedagogia socialista no país, que dê ênfase às questões organizacionais da escola para corroborar com o emergir de uma sociedade comunista. Para tanto, investe em construções de escolas, em contratação de professores, e outras reformas que se fazem necessárias para a efetivação desta nova forma de educação, para uma nova forma de organização social. Nesta época, a Rússia passa por uma fase de grande entusiasmo. O ideário de alguns pedagogos revolucionários ganha expressão, tendo destaque, Makarenko. 

ANTON SEMIONOVITCH MAKARENKO: O PEDAGOGO DA REVOLUÇÃO 

A coletividade é um complexo de indivíduos que tem um obje­tivo determinado, estão organizados e possuem organismos coletivos. São conscientes, devem discutir esses projetos e se responsabilizar por ele, passo a passo (MAKARENKO apud LUEDEMANN, 2002, p. 151). 

Com a epígrafe acima, citada por Luedemann inicia-se a exposição das idéias de Makarenko. Este pedagogo ucraniano foi um educador que teve idéias radicais em relação a desenvolver o espírito de grupo e o trabalho coletivo. Foi incumbido, por um funcionário do Estado Soviético, bolchevique, a elaborar uma proposta pedagógica que fosse capaz de auxiliar na educação de crianças e jovens vitimados pela revolução soviética, muitos deles órfãos e abandonados à própria sorte. Entretanto, não se tratava simplesmente de elaborar uma proposta pedagógica, esta necessitava ter em vista a educação de um homem novo, com uma mentalidade diferente daquela anterior à revolução.
Anton logo percebeu que se tratava de elaborar uma teoria pedagógica antes nunca pensada, que superasse a “educação liberal burguesa” muito pautada na psicologia e na educação da personalidade individual. Para tanto, centra sua atenção na educação da coletividade se desapegando das “fórmulas livrescas” para pensar em como “construir a coletividade educacional a partir das necessidades concretas da vida coletiva, para daí extrair uma metodologia educacional (LUEDEMANN, 2002, p. 123).
Makarenko inicia o trabalho pedagógico na colônia de Gorki em 1920. A princípio, passou por toda espécie de privações e falta de recursos para o empreendimento de suas idéias. Faltava espaço físico, faltava professores, a alimentação era insuficiente, dentre outros fatores. 

Ao invés de desanimar, estes problemas contribuíam para que ele percebesse que necessitava iniciar uma “luta contra o individualismo”, mostrando para os educandos que tudo o que havia para partilhar, apesar de pouco, era de todos. Assim o combate ao individualismo fazia parte de um processo de desenvolvimento de atividades práticas em que os educandos percebessem o nosso no lugar do meu. Combater a individualidade era um princípio pedagógico muito caro a Makarenko, que se colocava totalmente contrário a teorias pedagógicas que tinham no centro das atenções a criança e seu desenvolvimento biológico e psicológico. Para ele a “pedagogia socialista” deveria focar a atenção na educação do coletivo, partindo daí acreditava que assim estaria “educando o novo caráter coletivista de cada criança em particular”. Entretanto, diante da escassez de alimentos e vestuários, muitos hábitos individualistas ainda persistiam, mas a coletividade era chamada a ficar de prontidão para combatê-los (LUEDEMANN, 2002, p.128-129).
Na colônia de Gorki, Makarenko recebe cada vez mais alunos. O elemento trabalho torna-se também relevante em sua obra, a partir do momento que os colonos precisam produzir os alimentos e fazer a segurança da região em torno da colônia. Muitos problemas acometiam a comunidade como a violência, bebida, jogo a dinheiro, uso de armas. Estes problemas ao invés de se tornarem obstáculos eram levados para a discussão coletiva nas assembléias gerais, discutidos e resolvidos coletivamente, tendo como subsídio as normas disciplinares e o tribunal popular, criados pelos próprios colonos. Após a resolução dos conflitos, que eram resolvidos no dia-a-dia ou tratados nas assembléias, a norma era avançar a vida sem ficar remoendo ou retornando ao acontecido. O método de Makarenko consistia em “fazer avançar a vida nova, interceder a cada conflito, mas não se deixar envolver por ele, não voltar ao passado, olhar sempre para frente, com otimismo”. Os conflitos serviam para a educação geral da coletividade (LUEDEMANN, 2002,
p. 137-138).
 A assembléia geral era um órgão fundamental na proposta pedagógica de Makarenko. Esta assembléia reunia-se semanalmente e era aberta à participação de todo o coletivo, tendo toda e qualquer pessoa direito a isegoria. Eram muito dinâmicas e não se estendiam morosamente além do tempo necessário, para não atrapalhar as demais atividades de estudos. Isto contribuía para ensinar, os que tomavam posse da palavra, a serem concisos e objetivos, utilizando-se apenas do tempo exato de que necessitasse para expressar suas idéias e opiniões. Entretanto, não era permitido em nenhuma hipótese que os debates fossem interrompidos ou que a lista de oradores fosse limitada, pois o objetivo era atrair uma quantidade cada vez mais ascendente de educandos para este momento de aprendizagem da vida coletiva. Para tanto, impunha-se uma disciplina bastante rigorosa aos debates coletivos. Só era permitida a fala de um integrante por vez, não eram tolerados barulhos, muito menos caminhar pela sala ou sair do local da reunião. (LUEDEMANN, 2002, p. 193-294).
 A intencionalidade era que um grande número de colonos pudesse passar pela experiência de presidir a assembléia. Desta forma, os representantes eram eleitos, tendo em vista que todos pudessem assumir este posto. Medida que era estimulada para assim “incutir em todos os educandos determinados hábitos sociais e atraí-los para uma vida social ativa” (DAL RI; VIEITEZ, 2008, p. 229).
Em relação às assembléias, Dal Ri e Vieitez (2008) ainda acrescentam que Makarenko era bastante meticuloso no sentido de buscar que estes espaços de autogestão da coletividade acontecessem a contento, já que eram fundamentais para a convivência da comunidade. Destacam alguns dispositivos que deveriam ser observados pela coletividade, sendo estes:
a) não interferência da administração da instituição nas questões que são de competência dos órgãos, mesmo que a decisão da direção possa parecer mais correta;
b) cada decisão dos órgãos deve ser cumprida obrigatória e
rapidamente;
c) se a administração considerar errônea uma decisão do órgão,
deve recorrer à assembléia e não anulá-la;
d) o método fundamental para o trabalho da administração deve ser a influência exercida nos próprios órgãos de autogestão e não a provocação de conflitos com os órgãos (DAL RI; VIEITEZ, 2008, p. 229).
Estes dispositivos eram muitos caros a Makarenko e deviam ser observados atenciosamente em cada assembléia.
 Outro fator relevante a ser considerado é a normatização da vida escolar. Na colônia eram os jovens e as crianças que discutiam e estabeleciam as normas disciplinares é claro que depois de já terem compreendido o valor da vida em coletividade. Antes disto não se abria mão de uma direção centralizada e severa, para iniciar o educando no trabalho coletivo. Makarenko, fazendo crítica ao espontaneismo em educação, entendia que não era possível ficar esperando pelo interesse da criança pela coletividade.
Um outro aspecto que chama a atenção na obra de Makarenko e pode contribuir para pensar a escola de hoje é o investimento que se fazia na educação da “unidade do coletivo”. Buscava-se uma união bastante estreita entre os alunos. Estes podiam criticar-se entre si nas assembléias gerais, podiam pressionar uns aos outros nos trabalhos do dia-a-dia, mas, era imperioso que buscassem fazer justiça a cada qual, antes de mais nada, pelo fato de todos serem membros da coletividade. Não deviam difamar uns aos outros, causando intrigas desnecessárias e sempre que necessário deviam defender-se mutuamente dos estranhos. O sentimento de unidade do coletivo era fortalecido, fazendo com que todos se sentissem responsáveis uns pelos outros.
Outra questão trazida para análise é a cortesia. Na Pedagogia pensada por Anton a cortesia era uma forma especial de moderação que devia ser insistentemente desenvolvida nos alunos e nos educadores e sempre que fosse o caso, exigida. Esperava-se que toda a coletividade envolvida no processo educativo usasse de amabilidade e cordialidade, a não ser que a situação necessitasse de uma intervenção mais drástica, dependendo da gravidade do caso. Em situações educativas, segundo Makarenko, os professores e a direção “nunca devem se comportar frivolamente: zombaria, contar anedotas, nenhum excesso verbal, imitações trejeitos etc”. Na colônia era categoricamente inaceitável que tanto os professores como a direção, na presença dos educandos, estivessem “taciturnos, irritados e gritantes”. O humor, a polidez e a cortesia no tratamento entre os membros da coletividade eram elementos constitutivos de um processo educativo que se queriapromissor. É importante relembrar que a comunidade que Makarenko atendia tinha toda a sorte de problemas, mesmo assim, não tratar o outro com rispidez era um exercício constante (LUEDEMANN, 2002,
p. 303).
Em relação à última categoria, Makarenko entendia-a como “um verdadeiro estímulo da vida humana é a alegria do amanhã”. Na pedagogia desenvolvida por ele esta “alegria do amanhã” era considerada um dos elementos mais importantes do trabalho. Sendo assim, havia necessidade de se evidenciar perspectivas individuais e coletivas, a curto, a médio e a longo prazo. Estimulava-se que os educandos imaginassem, dos dias aos anos seguintes, estabelecendo perspectivas dentro das condições e aspirações da coletividade. Exemplificando, uma perspectiva a curto prazo poderia ser um passeio que o coletivo iria participar. As perspectivas a longo prazo envolviam a relação dos educandos com a coletividade em âmbitos maiores e mais complexos, ao país e à humanidade de forma geral. Esperava-se que a juventude conhecesse a história do país e da humanidade para que assim pudesse compreender as dificuldades, os desafios e pensar em qual poderia ser a sua contribuição na luta travada pelas classes trabalhadoras.
As questões apresentadas até aqui podem oferecer desdobramentos e subsídios para, a partir delas, se repensar e se refletir sobre a construção de propostas coletivas diferenciadas daquelas que se tem hoje na escola. Com este entendimento, prossegue-se o texto discutindo elementos como: individualismo, disciplina, representatividade, assembléia, normatização, perspectiva e cortesia. 

INDIVIDUALISMO 

A exacerbação ao individualismo no sistema capitalista é uma constante, o que tem levado à desarticulação das instâncias coletivas da vida social. Para Bauman (2001) a modernidade é a era na qual a vida social passa a ter como centro o indivíduo, sendo esta a sua marca registrada. As relações humanas, assim como as relações mercadológicas, tornam-se descartáveis. O outro, quando visto, é encarado como instrumento que traga ou possibilite o alcance a alguma vantagem pessoal, algum benefício individual.
Muitas vezes, na escola percebem-se comportamentos reforçadores deste individualismo vindos da comunidade em geral. Assim, se aceita, por exemplo, que um aluno ou um professor difame o outro, estimula-se fofocas como forma de obter informações, classifica-se os alunos por notas e rendimentos, expõe-se a individualidade de alunos e professores citando-lhes como exemplo positivo ou negativo. Estes fatores reforçam a competitividade e abafa-se a possibilidade de desenvolver a “unidade do coletivo”.
Lutar contra o individualismo, dentro da escola, assim como na vida social, trata-se de nadar contra a corrente, talvez de uma luta inglória, mas necessária. Qualquer discurso de democratização do ambiente escolar que não de um trato especial a esta questão, estará fadado ao fracasso. É necessário levar isto em conta se, de fato, o desejo é o de empreender um trabalho coletivo. 

DISCIPLINA 

De certa forma, os problemas disciplinares enfrentados por Makarenko não se diferenciam em muito dos problemas que assolam a escola na atualidade. Muitas escolas convivem diuturnamente com o problema do tráfico de entorpecentes, consumo de drogas em seu interior e uso de armas. A escola e os professores conseguem fazer pouco para enfrentar estas questões que são de ordem social e econômica.
 Entretanto, existem conflitos mais amenos que poderiam ser utilizados com fins pedagógicos, agressão física e verbal, desentendimentos entre o coletivo, dentre outros. Quais as possibilidades que a escola teria para utilizar-se destes conflitos para a aprendizagem da vida coletiva? Como a escola poderia se organizar para tal empreitada, sem perder o foco no processo de ensino e aprendizagem que é seu maior objetivo? Que espaços seriam estes? São questões interessantes para se refletir no interior e na concreticidade de cada escola, de acordo com a realidade de cada qual que é diversa. Portanto, as tentativas para democratizar o ambiente escolar, partindo de modelos, de imposições, tentem a frustrar-se, ou ainda a servir apenas para validar questões burocráticas e administrativas centralizadoras. 

REPRESENTATIVIDADE 

Sabe-se que os espaços instituídos oficialmente para a representação da coletividade na escola são os Grêmios Estudantis, os Conselhos Escolares e as Associações de Pais, Mestres e Funcionários. Mas, será que estes espaços, quando são instituídos, levam à participação efetiva da coletividade? Nestes espaços, a participação é representativa,o que, dependendo da forma como é trabalhada, exclui a grande maioria do coletivo, além de serem questionáveis os critérios utilizados para a escolha os representantes. Makarenko também trabalhava com a idéia de representantes eleitos pelo coletivo, pois conforme a colônia ia crescendo surgia a necessidade de outras formas de organização.
Entretanto, os representantes “não tinham nenhum tipo de privilégio, realizavam as mesmas tarefas que todos, inclusive de trabalho” (LUEDEMANN, 2002 p. 161). Estes cargos eram ocupados através de revezamento em períodos de três a seis meses. Makarenko julgava este tempo conveniente para que os representantes da coletividade não se transformassem em espécies de funcionários, para que um grande número pudesse exercer a função e ainda para que esta representação não se tornasse um fardo muito pesado para as crianças já que esta posição compreendia muitas obrigações e era demasiadamente tensa. Isto implica em entender que se a escola deseja trabalhar com a idéia de representatividade os critérios para tal devem ser estabelecidos sempre tendo em vista o princípio da educação da coletividade 

ASSEMBLÉIAS 

Ruiz (2006) apresentou a possibilidade de a escola trabalhar com as Assembléias Escolares, em pesquisa de Mestrado. Esta autora, por não ter contato com as idéias de Makarenko anteriormente, parte dos referenciais de Araújo (2004), porém percebe-se muitas similitudes entre ambas as propostas. Na pesquisa defende que as deliberações na escola deveriam partir de assembléias, nas quais as decisões deveriam ser tomadas sempre se levando em conta o respeito à coletividade. Solidariedade, confiança, responsabilidade coletiva e participação seriam virtudes imprescindíveis que deveriam ser desenvolvidas pelos sujeitos da coletividade, sem as quais a tendência seria a escola tornar um aglomerado de pessoas cada qual interessada em sua individualidade.
Nesta perspectiva, entende-se que a escola precisa buscar outras formas de reunir a coletividade, além daquelas já pensadas. Se uma escola realmente acredita que a educação da coletividade deve ter prioridade à educação do indivíduo, esta precisa internamente, dentro de suas possibilidades concretas, pensar como organizar este tipo de trabalho. Não porque a gestão democrática é prevista por lei, não porque esta lei prevê a organização de conselhos escolares, mas sim porque é o desejo da coletividade da escola, se assim for. 

NORMATIZAÇÃO 

Em relação à normatização do ambiente escolar são necessários alguns questionamentos. Na escola quem faz as normas? Elas são estabelecidas verticalmente e arbitrariamente? A comunidade escolar vê sentido nas normas que estão postas? Pode negociá-las? O regimento da escola é posto em discussão coletiva?
Ruiz (2006, p. 215) discute que a escola parte de uma perspectiva de homogeneização de condutas em seu interior, assim “as
ORG & DEMO, Marília, v.9, n.1/2, p. 223-240, jan./dez.,2008
regras são estabelecidas de forma unilateral e arbitrária, sem estimular a participação e reflexão da coletividade sobre a validade das mesmas”.
Considera-se que, estando a comunidade envolvida na tomada de decisão, no estabelecimento de normas e regras, na avaliação de necessidades e reivindicações, a tendência seria uma responsabilidade e um cuidado muito maior no momento de aferir julgamentos, uma vez que o que está em jogo é a própria existência da coletividade. 

CORTESIA 

Em tempos que se observa, cada vez mais, o sucateamento do magistério, refletir sobre a questão da cortesia se faz mister. A profissão docente não tem sido valorizada ultimamente. Isto reflete no baixo salário e nas condições de trabalho dos professores, muitas vezes inapropriadas para se desenvolver um trabalho de qualidade. Com a democratização da educação em termos de vaga para todos e a obrigatoriedade do ensino, as salas de aulas estão atendendo números exorbitante de alunos. Assim, ao invés de a universalização da educação pública ser uma esperança para uma educação melhor, este fato acabou contribuindo para piorar ainda mais a situação para os filhos das classes trabalhadoras “enquanto para as classes média e alta o Estado promove a educação privada” (DAL RI; VIEITEZ, 2008, p. 26).
Tudo isto tem tornado a profissão um tanto quantodesalentadora para aqueles que cursam as licenciaturas. É comum ouvir entre os professores que lecionam nestes cursos que os discentes não almejam seguir a carreira docente. Entretanto, na maioria das vezes, é por onde iniciam suas vidas profissionais.
Some-se ainda o fato do aluno da escola pública, muitas vezes, ser oriundo de situações sociais bastante dificultosas. Muitos passam por toda espécie de privação e convivem diariamente com a marginalidade.
Estes fatores refletem no interior das escolas de educação básica, mas precisamente no humor de toda a equipe e, consequentemente, dificulta um relacionamento cortês ente os membros da coletividade. Entretanto, mesmo considerando todas estas questões é necessário ficar atento à polidez que necessita permear as relações. As questões acima sobre a falta de valorização da profissão docente e da educação precisam ser tratadas em outras instâncias de luta organizada em prol da valorização da profissão e da educação. O que tem sido feito enfadonhamente pela classe dos profissionais da educação.
Em relação à procedência social dos alunos da escola pública, a leitura de Makarenko contribui ao enfatizar que a partir do momento que os alunos chegavam à colônia não havia a preocupação de se fazer um levantamento das suas vidas fora da colônia e sim de tentá-los inserir no coletivo. Desta forma, várias são as passagens de sua obra na qual enfatiza que colonos que tinham um passado assombroso, a partir do momento que se deixava de reforçar apenas a individualidade, conseguiam desenvolver outra história de vida a partir do coletivo.
 Makarenko contribui para que, mesmo diante de tantos dissabores, entenda-se que valorizar o tratamento cortês entre os pares é necessário para a educação da coletividade, além de reforçar o sentimento de pertença a esta coletividade. Esta questão é bastante séria e deve ser levada em consideração no interior da escola.

PERSPECTIVA 

Percebe-se que, atualmente, falta perspectiva de vida à maioria da população. Não apenas para jovens e adolescentes, mas também às pessoas de idade adulta. A escolarização burguesa que era vista por muitos como meio de ascensão social, deixa de ser, à medida que o capitalismo neoliberal avança, criando um bolsão de desempregados. A falácia é evidenciada. A escola pode contribuir para formar os trabalhadores, mas, por muito que se esforce, não é capaz de criar vagas de trabalho (PARO, 1999).
O desemprego estrutural é um fato, embora a precarização do trabalho contribua para mascarar os índices oficiais, à medida que os trabalhadores tentam sobreviver no mercado informal, abrindo mão dos direitos trabalhistas conquistados o que é fartamente estimulado pela elite econômica, que achincalha proferindo mensagens ideológicas e cínicas que tentam “transformar a desgraça em virtude” (DAL RI; VIEITEZ, 2008, p. 50). O trabalhador é chamado a ser criativo, flexível e empreendedor. Estas questões contribuem para dificultar a possibilidade de se estabelecer perspectivas na escola.
Mesmo tendo isto em vista, como mostra Anton, é possível pensar em estabelecer na escola perspectivas a curto, a médio e a longo prazo. Muitos professores já traçam perspectivas a curto prazo no dia-a-dia de sala de aula, à medida que vinculam a aprendizagem de conteúdos com fatos concretos da vida da criança. Estes professores cuidam de evidenciar de que forma aquilo que está se aprendendo na escola serve para o bem viver coletivo. Auxiliam assim, por exemplo, os alunos a entenderam os problemas locais, de seu bairro, e como proceder para buscar melhorias, coletivamente, reivindicando às autoridades, providências necessárias para saná-los. Muitos professores, não apenas mostram o caminho, como levam de fato seus alunos a participarem de sessões em câmaras de vereadores ou em outras instâncias responsáveis. Esta, dentre muitas outras que poderiam ser citadas, é uma forma de estabelecer perspectivas a curto prazo com os alunos. Professores, cada um em sua disciplina ou de forma interdisciplinar, podem levar a questão da perspectiva em conta na execução dos planos de trabalho.
Perspectiva a longo prazo, também, podem ser traçadas com os alunos filhos das classes trabalhadoras para que eles entendam que podem contribuir individualmente e coletivamente para a superação do sistema. Tendo em vista que a história não é imutável, como apontam Boron (2004) e Therborn (2004) e que se pode estar, quem sabe, em época de transição como acredita Mészáros (2005). 

APONTAMENTOS FINAIS 

Os investimentos pedagógicos que Makarenko faz em sua colônia é recompensado. Esta afirmação procede tendo em vista o processo educacional pelo qual passa seus colonos e os resultados que obtém, transformando a vida de crianças e adolescentes que, sem interferência educativa, estariam fadados à criminalidade. Entretanto, suas idéias são bastante ousadas e polêmicas até mesmo para o contexto no qual viveu. Isto provoca muitas contendas entre as autoridades da época. Makarenko acaba por se afastar do trabalho na colônia em 1935, dedicando-se à publicação e à divulgação de suas concepções pedagógicas.
Atualmente, suas idéias continuam sendo polêmicas, o que é notório ao analisar o caso das escolas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que busca uma educação diferenciada para suas crianças, a fim de romper com a estrutura de classes. Muitos encaminhamentos antidemocráticos e inconstitucionais vêm sendo efetivados pelas autoridades no sul do Brasil para reprimir a ofensiva deste Movimento. Dentre estes, propõe-se medidas intervencionista nas escolas do Movimento para “readequá-las à legalidade”. Para tal empreendimento, foi criada uma lista de livros “proibidos” para estas escolas. Assim, tenta-se coibir a leitura de teóricos como Florestan Fernandes, Paulo Freire, Chico Mendes, José Martí e Che Guevara. Some-se a esta lista, Makarenko, considerado “um perigoso pedagogo soviético” (LUEDEMANN, 2008).
Dá então para entender porque Makarenko é pouco difundido entre o público leigo e também nos cursos de formação de professores, apesar de ser uma contribuição muito valiosa para se repensar a educação contemporânea.
Neste texto, tem-se a consciência que a escola é uma instituição que se coloca a serviço do Estado, trabalhando para reforçar a hegemonia dominante. Entretanto, defende-se que esta mesma escola é composta de vidas e isto torna o processo educativo dialético, dinâmico,conflituoso e, de certa forma, imprevisível. É diante desta imprevisibilidade que os profissionais da educação encontram ânimo para estar ainda nesta instituição, esperançosos de que se há um projeto novo a se construir a escola poderá participar dele. Neste ensejo, buscam unir forças com movimentos que acreditam em um mundo melhor, que lutam contra a exploração, contra a dominação, que lutam também por uma escola melhor para os filhos das classes trabalhadoras, mesmo diante de tanta precariedade.
Em vista deste entendimento, coloca-se o ideário deste pedagogo revolucionário para apreciação. Conclui-se na expectativa de que os princípios pedagógicos makarenkianos, a luta pela superação do individualismo, a busca pela coletividade, o estímulo à perspectivas futuras, os debates nas assembléias e o tratamento cortês, possam aventar novo ânimo para se repensar a escola, e fortalecer práticas verdadeiramente coletivas em seu interior. Práticas estas que não sirvam apenas para o falseamento do consenso. 

RUIZ, M. J. F. Collective work in public  schools: Anton Semionovitch Makarenko´s pedagogical contributions. Revista ORG & DEMO (Marília), v. 9, n.1/2, p. 223-240, jan./dez., 2008.

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