por SUELI WOLFF WEBER
A presente dissertação faz um estudo comparativo entre o pensamento de Gramsci e o de Vygotsky. Apresenta um breve retrato da vida, ação e produção de ambos. Faz uma análise a respeito da produção teórica, identificando pontos convergentes e destacando conceitos que podem fundamentar uma política educacional, voltada à formação de homens com capacidade de desencadearem processos de transformação da realidade social; capazes de compreenderem e atuarem em seu meio e com conhecimentos científicos e culturais que lhes possibilitem serem dirigentes de uma nova sociedade. Uma educação, portanto, que não se limita a formar apenas o novo trabalhador, embora isso seja importante, mas que busca o desenvolvimento multilateral do homem, do sujeito histórico-cultural. Uma educação, pois, que resulta não apenas da instituição escola, mas que se efetiva também pela ação do meio sócio-cultural. O trabalho ressalta, ainda, a importância do papel do outro como mediador entre a criança e o conhecimento, entre a sociedade e a escola. Deste modo, destaca a inserção consciente e objetiva do professor nesta realidade, considerando-o como principal agente para o alcance de uma educação pública, democrática, de qualidade, sobremaneira, para as crianças, os jovens e adultos das classes populares. Por fim, todo o texto remete o leitor-educador à reflexão a respeito de temas abordados por Gramsci e Vygotsky com especial ênfase ao pensamento marxista, à relação teoria-prática, homem, sociedade e história, conhecimento, consciência, linguagem, cultura, educação. HISTÓRIA DA VIDA, DE AÇÃO E PRODUÇÃO: GRAMSCI E VYGOTSKY
1.1 ANTÔNIO GRAMSCI
Para muitos críticos, o estudo da obra de um determinado autor não está necessariamente, condicionado ao conhecimento da sua vida. Em outras palavras, chega-se à formação de juízos, pela simples análise da obra. No entanto, com relação a Gramsci, torna-se impossível estabelecer juízos, ou proceder estudos sobre o que produziu, sem levar em conta a sua vida, bem como o tempo em que viveu, para se verificar em que medida ele o formou, inspirou e influenciou e, em que medida, ele o exprimiu, interpretou, repeliu, ou superou.
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Gramsci situa-se num tempo histórico, notadamente, de grande efervescência política, num ambiente em que afloram as discussões econômicas, centradas no capitalismo e as discussões filosóficas, centradas no materialismo. Por isso, no seu caso, vida, tempo e obra se entrelaçam. Nele, parece que a vida supera, por assim dizer, a obra e o tempo. Para ele, era impossível procurar o triunfo das idéias socialistas, comunistas, sem ao mesmo tempo, viver esta busca na ação, ou no desejo da ação.
E, a política se apresenta como o cerne para o alcance de seu objetivo. É nela que busca através das idéias e da militância, abrir caminhos para permitir ao homem, sobretudo, da classe proletária, uma vida digna.
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Nascido em 22 de janeiro de 1891, em Ales, na Sardenha, uma das regiões mais pobres e atrasadas da Itália, Antônio Gramsci, o quarto filho de Francesco Gramsci e de Guisepina Marcias, morreu muito cedo (em 27 de abril de 1937), portanto, aos 46 anos tendo uma vida bastante difícil em função da própria subsistência, motivada pela prisão do pai e da saúde que sempre lhe foi precária.
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Ainda menino, interrompeu seus estudos para trabalhar num cartório e só mais tarde, voltou a estudar, concluindo os cursos – ginasial e secundário – ainda, na Sardenha, onde permaneceu até 1911.
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Nesse mesmo ano, foi para Turim e ingressou na Faculdade de Letras e Filosofia Moderna, mantendo-se graças a uma bolsa, conseguida através de concurso, e a uma pequena ajuda que recebia da família. Turim moldou-lhe a primeira impressão de uma cidade industrial moderna. Ao escrever à família, manifestava seu espanto e ao mesmo tempo sua atração pela cidade. Mostrava-se sensibilizado pelas perspectivas que a revolução industrial e o desenvolvimento tecnológico poderiam oferecer para transformar a Itália atrasada, em uma Itália progressista; acreditava que o desenvolvimento da indústria proporcionaria novos costumes, novas formas de arte, nova linguagem, enfim uma nova visão de mundo. Permitiu-lhe as primeiras observações voltadas à classe trabalhadora, conhecer uma classe operária mais organizada na luta em defesa de seus direitos e muito mais esclarecida do que a dos trabalhadores da Sardenha, sua terra natal.
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Atento à greve dos operários das fábricas de automóveis e às eleições de l913, começou a perceber que os verdadeiros opressores dos camponeses eram as classes proprietárias do Norte, juntamente com os grupos reacionários do Sul, e não, como acreditava, os operários do Norte.
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Turim também forneceu a Gramsci novos elementos que lhe permitiram fazer uma análise mais profunda da Itália, principalmente, quanto à exploração capitalista. Isso faz com que sua bandeira de luta, restrita à independência nacional da Sardenha – o grito "Ao mar os continentais", se estenda a toda a Itália.
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Gramsci busca então compreender essa realidade à luz de uma teoria. É no movimento socialista, liderado por jovens operários, que ele busca respostas para as suas inquietações, especialmente, às relacionadas ao distanciamento entre teoria e prática. Foi este movimento socialista da grande Turim e o contato com a classe operária que lhe permitiu, também, compreender o significado das reflexões de Marx, às quais tivera acesso, em 1911, por "curiosidade intelectual". (In Joll, 1977, p. 34)
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Em 1913, após ter abandonado a Universidade, Gramsci inscreve-se no Partido Socialista Italiano, no qual desenvolve uma significativa atividade política e jornalística. Escreve, inicialmente, sobre temas diversos – da crítica literária e teatral – aos comentários políticos. Em 1917, após a insurreição de Agosto, Gramsci passa a ocupar o cargo de Secretário da Comissão Executiva provisória, da Seção de Turim do PSI e de Diretor de "Il Grido del Popolo", jornal em que publicará anos mais tarde (1919) textos de Lênin, Linoev e outros.
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Em l° de Maio de 1919, com um grupo de amigos, cria e se torna secretário da revista "L'Ordine Nuovo" de circulação semanal e, em seguida, diária, haja vista o impacto causado junto à classe operária.
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Gramsci, ao mesmo tempo em que apresentava suas idéias na revista, envolvia-se de maneira crescente nas decisões políticas e nas atividades revolucionárias. Como jornalista, compreendia e sabia da poderosa influência que a literatura podia exercer, especialmente o teatro, na criação de um novo clima cultural. Assim, como Hegel, entendia que as revoluções políticas são precedidas pela revolução das idéias.
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Durante a lª Guerra Mundial, Gramsci participa de uma equipe de jornalistas responsáveis por publicações políticas para além das fronteiras da Itália, tecendo considerações quanto às implicações da guerra no Movimento Socialista Internacional. A partir desse momento, passa a ser percebido pelos socialistas de Turim e marca presença entre os mais radicais e entre os representantes do Movimento Socialista Internacional que se colocavam contrários à guerra, em defesa, e ao lado da classe operária.
Terminada a 1ª Guerra Mundial, a Itália entra numa longa crise econômica, política e social, culminando na tomada do poder pelo fascismo, em 1922. Mas, apesar da crise, muitos acreditavam na possibilidade de uma revolução socialista vitoriosa, tal como acontecera na Rússia, em 1917, pois, houvera um expressivo aumento do número de militantes nos sindicatos e maior participação no parlamento. Nas eleições parlamentares de novembro de 1919, o Partido Socialista conseguira eleger 156 deputados.
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Nessa mesma época, inicia-se uma áspera luta entre patrões e trabalhadores em todos os setores industriais italianos, bem como um movimento de camponeses e de trabalhadores sem terra que se organizavam politicamente, reclamando a reforma agrária.
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Com a onda de greves que abalou a economia do país, os industriais e a classe média, alarmados, aliavam-se ao Movimento Fascista de Mussolini. Gramsci, então, tentou colocar em prática os Conselhos de Fábrica e implantar/consolidar o partido revolucionário. Os Conselhos de Fábrica eram para ele uma forma de organização a ser adotada pelo movimento operário turinense, um espaço de exercício da democracia, cujo germe já existia em Turim – a Comissão Interna. Criada em 1906, tinha como objetivo garantir e defender os direitos dos trabalhadores, sendo seus dirigentes eleitos pelos operários sindicalizados. Os conselhos não tiveram êxito uma vez que ficaram restritos a Turim. Foram rejeitados pelos dirigentes dos sindicatos e recusados pelos industriais que não os reconheciam como fórum de tratativas, bem como pela posição contrária de membros do Partido Socialista, como Serrati e Bordiga. Este último entendia os Conselhos apenas como órgãos técnicos-econômicos, cujo objetivo era o controle da produção. Serrati por sua vez, era contrário ao direito de voto permitido aos não sindicalizados, por acreditar que isto levaria à perda do controle dos novos organismos pelo partido e sindicatos.
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Gramsci, ao analisar o fracasso do Movimento dos Conselhos, concluiu que a classe trabalhadora – operários e camponeses – não era coesa, não formava um conjunto do proletariado italiano, portanto, não estava ainda preparada para a luta revolucionária, e que os Conselhos haviam limitado suas ações ao espaço da fábrica. Fazia-se então necessário ampliar o movimento a toda a nação. Daí, a necessidade de um novo partido – diferente –, efetivamente comunista, revolucionário e nacional, capaz de articular a classe operária e de prepará-la para ser dirigente.
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Em novembro de 1920, o Partido Socialista se fraciona, dando origem, em Janeiro de l921, ao Partido Comunista da Itália – seção da III Internacional, tendo na Direção Fortichiari, Grieco, Repossi, Terracini e Bordiga como líder.
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Embora Gramsci tenha sido eleito membro do Comitê Central com a responsabilidade de administrar “L´Ordine Nuovo”, órgão oficial de divulgação do novo Partido, mostrava-se cético quanto ao futuro Partido, já que a sua Direção estava nas mãos de líderes com os quais divergia.
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Os anos de 1921 e 1922 foram bastante difíceis para Gramsci, que encontra-se com a saúde bastante abalada – muito nervoso em função do desgaste físico, conseqüência da tensão dos movimentos da campanha pelos Conselhos de Fábrica pelo falecimento de sua irmã e pela adesão de um dos seus irmãos ao movimento fascista. Por outro lado, o partido fascista avançava, o estado liberal ia se fortalecendo e não se vislumbrava a substituição por um Estado Socialista. Mesmo assim, continua a escrever e a batalhar por um partido do proletariado revolucionário que lute pelo advento de uma sociedade comunista por meio do estado dos trabalhadores, um partido homogêneo, com sua própria doutrina, sua tática própria.
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No IIº Congresso do PCI, em Roma, em Março de 1922, Gramsci é designado representante do partido na Executiva da Internacional Comunista e vai para Moscou, onde conhece Júlia, mãe de seus filhos, Délio e Juliano. Deixava a Itália num momento em que esta passava por uma crise de ordem política e econômica, sem precedentes. Com a conhecida "Marcha sobre Roma" – Outubro de 1922 – Mussolini é designado pelo Rei, para assumir o governo, começando para os italianos um longo período de dificuldades – miséria, violência, perseguição, corrupção e insensibilidade para com os graves problemas do povo. Com o fascismo, as atividades partidárias e políticas dos socialistas e comunistas tornam-se cada vez mais difíceis.
Em 1923, Bordiga, então principal dirigente do PCI, é preso, juntamente com outros, que embora soltos mais tarde, não escondiam as dificuldades de qualquer ação contrária ao fascismo. Durante esse período, Gramsci aprofunda suas relações com outros partidos comunistas europeus e com os dirigentes da Internacional, em Moscou, o que lhe proporciona melhor compreensão acerca dos princípios essenciais do leninismo. Motivado pelas idéias de Lênin, de Moscou, escreve a Togliati e a seus velhos companheiros da "L'Ordine Nuovo" para comunicá-los de sua adesão às "teses frentistas" e ao mesmo tempo para persuadi-los a fazer o mesmo. Na carta aos amigos, menciona que
é preciso criar no interior do Partido um núcleo, que não seja uma fração, de camaradas que tenham o máximo de homogeneidade ideológica e, portanto, sejam capazes de imprimir à ação prática um máximo de unidade de direção. Nós do velho grupo de Turim, cometemos muitos erros nesse campo (...). Por termos repelido em 1919-1920 a idéia de criar uma fração, ficamos isolados, simples indivíduos ou quase, ao passo que no outro grupo, o abstencionista (bordiguiano), a tradição de fração e de trabalho em comum deixou marcas profundas que ainda hoje têm reflexos ideológicos e práticos muito consideráveis na vida do Partido. (In Coutinho, 1989, p. 30-31)
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Em maio de 1924, quando regressa à Itália, encontra o Partido Comunista numa situação muito difícil. Continuava sendo um grupo pequeno e isolado, sem o apoio das massas, constantemente ameaçado pelo fascismo. Inicia, então, sua luta para ampliar a base do Partido Comunista.
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Nessa mesma época, na primeira Conferência Nacional do Partido, em Como, Gramsci explica sua tese de tornar o Partido organicamente ligado às massas, responsável pela realização da hegemonia do proletariado através da aliança entre operários e camponeses. Entra para o Comitê Executivo, tornando-se, em agosto, o Secretário Geral do Partido. É neste período que surge o "L'Unitá" – órgão de imprensa do partido, proposta de Gramsci, e a III série de "L' Ordine Nuovo", que encerrado em 1922, totalmente destruído pelos fascistas, voltava agora em edição quinzenal e também a sua eleição para deputado e dirigente do Partido, que o leva a transferir-se para Roma.
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À frente do Partido, Gramsci impõe um novo ritmo, participando ativamente de todas as ações e contribuindo com idéias e observações dentro de uma nova concepção de marxismo e de política.
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As observações mais amadurecidas, dentro dessa concepção, ele as expressou em dois trabalhos: na "Carta ao Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética", e na “Questão Meridional”.
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Na carta escrita em nome da secretaria política do PCI chama a atenção para os riscos que uma cisão no interior do Partido Comunista Russo traria para o movimento operário internacional e para o próprio Partido. Sabia que, durante a repressão fascista, o Partido Comunista Italiano necessitava do apoio do Partido Russo, por isso torcia para que a unidade interna fosse mantida tanto a nível internacional, quanto a nível nacional.
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Na "A Questão Meridional" (Outubro de 1926), ele analisa o período de vivência contraditória, marcada pelo progresso do Norte e a miséria no Sul, tendo como base o processo de unificação da Itália, ocorrida na segunda metade do século XIX,
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O Estado italiano, fruto das alianças entre os grupos dominantes industriais e agrários – não tinha um projeto de integração nacional. Assim, a unificação foi apenas territorial e aprofundou cada vez mais as diferenças entre as regiões Sul e Setentrional.
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A política econômica subjugava os interesses da região Sul em favor da indústria setentrional. O Sul foi submetido pela ditadura burguesa ao mais feroz processo de exploração. Excluído dos processos de modernização econômica e política, o Mezzogiorno coloca-se no cenário nacional como território de exploração da burguesia industrial do Norte. Fruto de uma visão reacionária, os meridionais eram considerados biologicamente inferiores, malandros, criminosos, incapazes, portanto, eram os responsáveis pelo atraso no Sul.
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Gramsci denuncia esse modo reacionário de pensar que esconde os antagonismos e contradições do sistema capitalista, e ao denunciar, reforça o potencial da classe operária, destacando-a como classe nacional que não tem necessidade de viver à sombra do poder, nem segundo as suas regras.
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Portanto, “fazendo sua a ‘questão meridional’, a classe operária subtrai-se da esfera da hegemonia burguesa, torna-se por sua vez classe nacional, isto é, capaz assim de exercer sua própria hegemonia sobre a maioria dos trabalhadores". (Coutinho,1989, p. 38).
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Para tornar-se classe nacional, o operariado tinha que aliar-se com camponeses, incluí-los no novo bloco histórico. Sem essa aliança não seria possível fazer frente ao capitalismo e ao Estado burguês.
Os operários fabris e os camponeses pobres – afirmava Gramsci – são duas energias da revolução proletária. Para eles, em especial, o comunismo representa uma necessidade essencial: seu advento significa a vida e a liberdade, enquanto a permanência da propriedade privada significa o perigo iminente do esmagamento, da perda de tudo, até mesmo da vida física.. (Gramsci, 1987, p. 72)
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Gramsci sabia , contudo, que não era fácil articular operários e camponeses, uma vez que os camponeses encontravam-se na condição de subalternos, alijados do processo de construção da nova sociedade e sob a influência da intelectualidade burguesa ou da Igreja Católica, durante décadas, tendo por isso, uma mentalidade atrasada. O camponês era “incapaz de pensar a si mesmo como membro de uma coletividade e de desenvolver uma ação sistemática e permanente no sentido de mudar as relações econômicas e políticas de convivência social”. (Gramsci, 1987, p. 70)
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Era necessário, portanto, superar o modo de pensar atrasado, o corporativismo e organizar o campo, “suscitar instituições de camponeses pobres sobre as quais o Estado Socialista possa se fundar e se desenvolver (...)”. (Gramsci, 1987, p.74)
Em Roma, vive de perto a crise política, provocada pelo bárbaro assassinato de Matteotti – dirigente e deputado socialista –, atribuído a Mussolini que teve, por isso, de enfrentar, no parlamento, a revolta dos partidos oposicionistas que se recusavam a tomar parte nos trabalhos do Congresso, bem como a revolta de seus próprios companheiros que abandonavam o partido. Como parlamentar, Gramsci não hesita em criticar e desmascarar frontalmente a Mussolini.
Apesar de todo o quadro político desfavorável, Gramsci procura dar, à frente da Direção do Partido Comunista, uma nova dinâmica, buscando ampliar sua base, e mais, adaptá-lo às circunstâncias políticas da clandestinidade para fugir da mão do governo fascista. E, é neste afã, sem temor, que enfrenta o governo, denunciando-o, alheio às sugestões dos amigos para que se refugiasse no exterior, até que, em 08 de novembro de 1926, foi preso pela polícia de Mussolini, quando se dirigia para uma reunião clandestina do Comitê Diretivo do Partido, perto de Gênova, e mandado para ilha de Ustica juntamente com outros presos políticos, entre, eles Bordiga. Condenado, mesmo sendo parlamentar, a 20 anos de prisão, ele não se entrega à passividade imposta pelo cárcere, ao contrário, permanece atento à realidade do mundo, contribuindo para modificá-lo. Conforme carta enviada a sua cunhada Tânia, dá mostra de um plano de estudos e de trabalho que compreendia:
– Uma pesquisa sobre formação do espírito público na Itália do século passado, em outras palavras, uma pesquisa sobre os intelectuais italianos, as suas origens, os seus agrupamentos, segundo as correntes da cultura e os seus diversos modos de pensar;
– Um estudo da lingüística comparada;
– Um estudo sobre teatro de Pirandello;
– Um ensaio sobre romance de folhetim e o gosto popular em literatura. (Gramsci, 1987, p. 64-66).
Na prisão, enfrenta as mais variadas formas de opressão impostas pelos fascistas, tendo inclusive sido proibido de escrever. Liberdade está que só lhe é devolvida após um ano de cárcere, assim mesmo, parcialmente, já que as cartas a serem enviadas eram limitadas a um certo número por semana. Mas, apesar disso, conseguiu preencher 33 cadernos, 2350 páginas impressas com idéias sobre História, Filosofia, Política e Literatura e várias cartas à sua família, principalmente, à cunhada Tânia, contando dos sofrimentos na prisão e de suas preocupações intelectuais. Seu isolamento era muito grande e por vezes doloroso. Numa carta à sua mãe escreve que “o tédio é meu pior inimigo, embora eu leia e escreva o dia inteiro; é um tipo especial de tédio que não provem da ociosidade (...) mas da falta de contato com o mundo exterior". (Cfe. Simionatto, 1995, p. 31)
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Pelas cartas, é possível identificar elementos de uma ampla autobiografia, constituindo uma obra histórica que remete à relação da vida pessoal com a realidade concreta. Nos Cadernos do Cárcere as reflexões de Gramsci revelam uma preocupação com a elaboração de uma concepção da realidade, enquanto totalidade, na qual coincidem teoria e prática, e ainda de identificar a política “como a atividade humana que propicia esta coincidência”. (Urbani, 1974). Por isso, deixa claro que é a política o ponto central de onde analisa a totalidade da vida social, os problemas da cultura, da filosofia, e outros. Entre os conceitos gramscianos mais amplos e mais expressivos encontramos o de Hegemonia e Bloco Histórico. Refletir sobre o primeiro implica no entendimento do que seja "intetectual", filosofia e partido político, conceitos estes que lhes dão sustentação teórica. Refletir sobre o segundo, por sua vez implica no entendimento de sociedade civil, sociedade política, estado, estrutura, superestrutura e proletariado. O entendimento destes conceitos, bem como da articulação entre os mesmos nos dá suporte para compreensão da sua teoria política. Por outro lado, constitui-se em suporte para compreensão da realidade social e de como se desenvolvem as relações sociais.
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Deve-se ressaltar ainda os estudos de Gramsci elaborados com relação a Educação e a Cultura, considerados como de fundamental importância para a concretização da hegemonia da classe trabalhadora. Educação e Cultura são temas abordados numa perspectiva bastante ampla, não se limitando, portanto, a Educação Escolar. Assim, embora tenha se preocupado em elaborar uma proposta de “Escola Única” sua concepção de Educação abrange desde os espaços sociais em geral até as instituições específicas: a Escola, a Família, a Fábrica, o Partido, o Sindicato, a Associação de Cultura, a Escola de “L´Ordine Nuovo”, a Escola por Correspondência e outras. Por isso, nosso interesse em conhecer melhor este líder marxista, pois, entendemos, também, que algumas das questões teóricas abordadas por Gramsci nos auxiliarão, efetivamente, na reflexão/compreensão da prática social que estamos vivenciando neste final de século.
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Assim sendo, passaremos a abordar, ainda que resumidamente, as questões ora expostas. Antes, porém, sem perder a perspectiva da aproximação, importa conhecer a história da vida, de ação e produção de Vygotsky, outro pensador marxista, que esteve preocupado com a consolidação do socialismo na ex-União Soviética e que, para isso, propôs uma nova psicologia, da qual pretendemos extrair elementos para subsidiar uma proposta política para a educação.
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1.2 LEO SEMYNOVITCH VYGOTSKY
Vygotsky, comparado a Gramsci, teve uma vida bem diferente quanto à sua caminhada histórica.
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Basicamente, se a Gramsci coube abrir caminhos para a implantação de uma nova sociedade em bases igualitárias, socialista, a Vygotsky coube, para esse tipo de sociedade, já instalada na Rússia, oferecer suportes para a sua consolidação.
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As contribuições de Vygotsky vão se dar, principalmente, na psicologia para a qual buscou, dentro do materialismo dialético, respostas diferentes àquelas dadas pelas concepções idealista e mecanicista. Dentro dessa ciência, Vygotsky deixou mais hipóteses do que resultados ou produtos acabados. Uma contribuição de extrema importância está relacionada à questão metodológica. Ele foi um dos primeiros autores que se levanta contra o uso da filosofia marxista como doutrina. Sua primeira ação, quando chega à Psicologia é, portanto, a luta ideológica, filosófica.
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Suas contribuições manifestam-se expressivas e inovadoras quando aborda a relação aprendizagem e desenvolvimento; pensamento e linguagem; a formação de conceitos, o papel da instrução no desenvolvimento e a cultura, as quais remetem à reflexão sobre temas de grande significado para, principalmente, aqueles que trabalham na área educacional. Tal como Gramsci, Vygotsky teve uma vida muito curta, mas uma carreira brilhante e produtiva como demonstram as suas obras.
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Léo Semynovitch Vygotsky nasceu em Orska, um pequeno lugar da Rússia Ocidental, em 05 de novembro de 1896. Um ano após o seu nascimento, sua família mudou-se para Gomel, uma cidadezinha localizada no sudeste da Bielorussia, perto da república da Ucrânia e dentro do Pale, território onde os judeus eram confinados na Rússia czarista.
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O pai de Vygotsky era um executivo do Banco Unido de Gomel, e após a Revolução de Outubro de 1917 ocupou, no Banco Comercial de Moscou, a função de chefe de uma seção. Sua mãe era professora licenciada. Ambos, interessados pela cultura, desenvolveram um ambiente familiar intelectualizado, o que transformou a família numa das mais cultas da cidade. Vygotsky era o segundo filho, numa família de oito irmãos. Educado no judaísmo tradicional, realizou a educação elementar em casa, sob a orientação de um professor particular – Salmon Ashfiz – grande conhecedor de várias matérias, embora formado em matemática, e um grande admirador de Hegel, o que provavelmente influiu para suas leituras no campo filosófico. Após ter realizado seus exames de nível primário, ingressou num ginásio público, mas concluiu os dois últimos anos numa escola judia particular, de melhor nível acadêmico.
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Aos 15 anos de idade, era chamado o “pequeno professor”, porque, juntamente com seus amigos, promovia discussões sobre os mais diferentes temas. Nessa mesma época, presidiu um círculo de estudos sobre a história judaica, tema de suma importância para ele, uma vez que era judeu.
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Em 1913, aos 17 anos, concluiu o curso secundário num colégio privado, em Gomel, recebendo medalha de ouro pelo seu excelente desempenho. Nesse momento, Vygotsky já demonstrava um grande interesse pela lingüística e a literatura, pelas línguas clássicas, pela crítica e filosofia. Como nos revela Riviére (1985) “Vygotsky foi sempre e muito fundamentalmente, um filósofo e semiólogo”. (Riviére, 1985, p. 15)
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Seu interesse pelos problemas lingüísticos, pela semiologia, pela poesia e pelo teatro era compartilhado com seu primo David, lingüista, e seu mentor intelectual nesse período de sua vida, segundo nos revela Riviére. Outra forte influência intelectual foi a do lingüista ucraniano do século XIX, Alexandre Potebnya, que fez chegar à Rússia as idéias filológicas e humanistas do pensador alemão Wilhelm Von Humboldt, através do livro “Pensamento e Língua”. Foi com a leitura deste livro que, pela primeira vez, Vygotsky voltou sua atenção para a relação entre o pensamento e a linguagem. Todos os interesses vygotskianos – semiologia, literatura, arte – foram estudados, tendo por base uma orientação filosófica mais ampla. Bacon, Descartes, Spinoza, Hegel, Fuerbach, Marx e Engels foram intensamente estudados e contribuíram para o desenvolvimento de seu pensamento teórico. Para alguns críticos, Hegel era provavelmente seu filósofo preferido, haja vista sua preocupação, desde jovem, em encontrar respostas para o entendimento do que seria história e para o papel do indivíduo na história. Spinoza era um outro filósofo preferido. Afirmam alguns estudiosos de Vygotsky que este considerava seu modo próprio de pensar profundamente relacionado ao de Spinoza. Vygotsky, portanto, antes de ingressar no ensino superior, já havia desenvolvido uma sólida formação humanística.
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Mesmo tendo sido um brilhante aluno no curso secundário, sua origem judaica dificultou-lhe o acesso ao ensino superior e, também, a opção pelo curso de sua preferência, pois, às minorias raciais eram destinadas apenas 3% das vagas na universidade, e assim mesmo, preenchidas através de sorteio. Como os judeus não tinham acesso a todos os cursos, entre esses história e filosofia, cursos que Vygotsky pretendia freqüentar, matriculou-se no curso de Medicina da Universidade de Moscou, sem contudo, concluí-lo. Transferiu-se para o curso de Direito e Literatura e, paralelo a esses cursos, freqüentou a Universidade Popular de Shanyavskii, uma instituição particular, de caráter liberal e progressista, local onde se reuniam estudantes cultos de Moscou e onde trabalhavam professores contrários ao regime czarista, expulsos das universidades oficiais, por motivos políticos. Nessa universidade freqüentou cursos de História e Filosofia, seus preferidos.
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Nesta época, já eram evidentes os sinais de uma Rússia decadente e opressora. A discriminação para com as minorias raciais, a perseguição política a professores contrários ao governo czarista, as grandes dificuldades pelas quais passavam o povo, são indicativos da situação da Rússia nos anos que precederam a revolução, conforme nos mostra a história desse período. Constituída por povos de diferentes nacionalidades, representando 57% de toda a população, que além de lutarem pela igualdade e dignidade nacionais, tinham que lutar, também, pela liberdade social, a Rússia pré-revolucionária enfrentava graves problemas econômicos, políticos e sociais, levando-a, num período de apenas 12 anos, à três revoluções. A primeira, ocorrida em 1905, causou a morte de milhares de mulheres e crianças massacradas pelos soldados do exército russo (Domingo Sangrento), fazendo com que o Czar Nicolau II realizasse algumas reformas, contudo, estas não proporcionaram mudanças significativas. Com a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial, a situação agrava-se. A Czarina Alexandra, tão despótica quanto o Czar, assume o comando da Nação, tornando ainda mais difícil a vida do povo russo.
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Em 1917, o povo sai novamente às ruas em protesto – contra a guerra e contra o regime monárquico. Em conseqüência do movimento, no dia 15 de março de 1917, o Czar abdica em favor de seu irmão, Mikhail Romanov, que também abdicou no dia seguinte. Era o fim da dinastia dos Romanov e do regime monárquico russo. Assume então um Governo Provisório sob o comando dos mencheviques, de tendências burguesas e, que nada fazem em favor dos operários que continuavam privados de seus direitos. O governo dos mencheviques continuou participando da guerra, enviando milhares de homens para o front, dos quais muitos tornaram-se desertores, aumentando os problemas sociais, pois, estes saqueavam o comércio em todo o país, interrompiam o tráfego ferroviário, espalhando o terror em todo o território russo.
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A situação caótica em que viviam, mais o descontentamento pelo fato das reformas democráticas solicitadas não serem atendidas, leva novamente o povo às ruas, agora, liderados pelos bolcheviques.
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No dia 25 de outubro, o governo antipopular é derrubado e o II Congresso dos Sovietes – porta-voz da vontade dos trabalhadores – legaliza a vitória da Revolução.
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Assumindo o governo, os bolcheviques liderados por Lênin, tomaram medidas urgentes para atender as necessidades da população. Foram criados órgãos democráticos e populares de poder – os Sovietes de Deputados Operários, Camponeses e Soldados. A partir de novembro de 1917, os operários, por decisão do governo soviético, passam a ter o controle de todas as empresas.
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A todos os povos da Rússia, foi outorgada a igualdade de direito, assegurada pela “Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia”. Operários e camponeses dos pequenos e grandes povos da Rússia iniciam a formação de Repúblicas Socialistas Soviéticas, sem distinção nos direitos.
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A revolução tinha sido vitoriosa, contudo, a URSS apresentava muitos problemas para serem resolvidos como: a falta de colaboração da antiga classe dominante; a falta de compreensão dos camponeses que haviam recebido terras, mas não queriam repartir a produção com o Estado; a falta de ânimo dos trabalhadores que passavam por tempos difíceis; o descontentamento que se verificava no próprio Exército; o elevado índice de analfabetismo, que nessa época girava em torno de aproximadamente 30%, sendo que, em algumas regiões, não havia pessoas alfabetizadas. Além disso, o novo aparelho de Estado, formado com base nos Sovietes, teve que enfrentar a guerra civil, desencadeada pela burguesia, ferida nos seus privilégios; os anarquistas; os mancheviques e ainda, as potências capitalistas européias que viam no sistema socialista soviético – único país do mundo governado por operários e camponeses – uma ameaça ao mundo capitalista. .
Com a intervenção estrangeira, a guerra civil assumiu um caráter particularmente “duro e tenaz”, com o Estado Soviético sofrendo enormes prejuízos. Lênin, percebendo todo este quadro, inicia em março de 1921, uma nova política econômica – NEP – que embora tenha tido um grande sucesso (aumentou a produção agrícola, impulsionou o comércio, diminuiu os preços agrícolas e outros), proporcionaram benefícios apenas à alguns grupos sociais – camponeses e negociantes – o que não era condizente com o projeto socialista do Estado. Junto à política econômica, Lênin também desencadeou a luta contra o analfabetismo. Em 26 de dezembro de 1919, assina o decreto
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“sobre a liquidação do analfabetismo entre a população da República Federativa Soviética Russa” (Moll, 1996, p. 63). Apoiado por sua mulher Krupskaia e outros líderes, mobilizou quatrocentos mil voluntários para atuarem como alfabetizadores, ocupando como espaço educativo, os mais diferentes ambientes – fábricas, alojamentos – atingindo até as tribos nômades que migraram pela Ásia Central.
Embora fossem muitas as dificuldades a serem enfrentadas pela destruição provocada pela Primeira Guerra Mundial e, mais ainda, pela Guerra Civil, havia um grande entusiasmo com relação às possibilidades de implantação da sociedade socialista não apenas entre o povo, mas, também, nos meios intelectuais. Expressando esse entusiasmo, escreve Lúria:
A Revolução nos libertou – especialmente a geração mais jovem – para discussão de novas idéias, novas filosofias e sistemas sociais [...] Fomos arrebatados por um grande movimento histórico. Nossos interesses pessoais foram consumidos em favor das metas mais amplas de uma nova sociedade coletiva. A atmosfera que se seguiu imediatamente à revolução proporcionou a energia para muitos empreendimentos ambiciosos. (Lúria, 1992, p. 24-25)
Vygotsky nessa época (1917) – quando estourou a Revolução – estava concluindo sua formação universitária em Moscou e, assim como os demais intelectuais, estava entusiasmado com as possibilidades de melhoria da situação de vida para todos, na Rússia. Como judeu que havia sofrido um processo de discriminação racial que interferiu na sua formação e vida profissional, tinha razões suficientes para se articular ao projeto revolucionário de construção de uma nova sociedade, uma vez que a revolução apontava para o fim de todas as formas de discriminação por motivos de nacionalidade. “Por isso, uma de suas lutas relacionava-se com o direito das minorias raciais conservarem a própria ultura.” (Mecacci, 1990, p. 6). Por outro lado, como assinala Blanck (1984, p. 25),
Vygotsky era deputado do Soviete Regional dos Trabalhadores de Fruntze e deputado
do Exército Vermelho, o que significava, já, um compromisso com as idéias revolucionárias. Além disso, como intelectual, não poderia estar ausente da construção dasociedade socialista, por isso, junta-se, àqueles que lutavam pela implantação da nova sociedade. Sua maior contribuição dar-se-á na área da Psicologia e, em decorrência, na Educação.
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Nessa época, na Rússia, em conseqüência do grande entusiasmo provocado
pela Revolução de Octubre, toda a ciência deveria ser coerente com a base filosófica da
nova sociedade recém implantada, a filosofia marxista. Ocorre que, não havia na URSS
um amplo conhecimento do marxismo, contavam os cientistas, apenas, com algumas
“prescrições teóricas genéricas extraídas das formulações de filósofos marxistas”.
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Hubner citado por Moll (1996), retrata a situação da nova ciência soviética como:
uma mutação gigante, cujo significado variava em função da atitude que os diversos grupos de cientistas mantinham em relação a ciência. Em alguns casos a filosofia marxista guiou a prática científica de grupos de pesquisadores que acreditavam no potencial do novo sistema, muito embora pudesse se mostrar inicialmente difícil, reconciliar o estado do conhecimento daquela ciência com o instrumental teórico derivado da filosofia marxista. Em outras instâncias a mutação foi ignorada no trabalho científico conduzido pelos pesquisadores, embora sob risco de ataque por parte das esferas oficiais de influência. Ou, ainda, em outros casos, os novos termos e as citações correspondentes eram incorporados em sistemas teóricos que tinham pouco a ver com a filosofia de que eram supostamente, derivados, tornando-se apenas uma verbosidade que nada acrescentava aos sistemas científicos preexistentes. Em suma, a prática científica dos pesquisadores dependia dos objetivos que eles esperavam alcançar por meio de suas ações, conduzindo a diferentes maneiras de desenvolvimento de sistemas científicos influenciados, de uma forma ou de outra, pelo pensamento marxista. (Moll, 1996, p.70)
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A situação da ciência psicológica não era diferente. Tendo como as demais que redefinir todos os postulados teóricos e metodológicos a partir da ideologia marxista-leninista oficial, a ciência psicológica não contava com psicólogos que tivessem um conhecimento aprofundado do marxismo. Por isso, as tentativas de aplicá-lo à psicologia não foram bem sucedidas e receberam de Vygotsky severas críticas, uma vez que ele era profundo conhecedor da filosofia marxista. Foi, portanto, com a chegada de Vygotsky em Moscou, mais precisamente no Instituto de Psicologia, que se construiu uma ciência psicológica fundamentada nos pressupostos filosóficos do Materialismo Histórico e Dialético. Como bem diz Siguan (1985):
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A obra de Vygotsky constitui, uma das primeiras tentativas frutíferas na história da ciência psicológica de se construir uma psicologia fundamentada no materialismo histórico e dialético. Se constitui numa das aplicações mais frutíferas do pensamento marxista ao problema das origens e evolução dos processos psíquicos superiores. (Siguan, 1985, p. 25)
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Por que a Psicologia, se Vygotsky não era psicólogo? Vygotsky procurava respostas para os processos de criação e percepção estética, já, que a arte e a literatura eram seus interesses maiores. Para ele, a arte não significava unicamente expressão de sentimentos, mas envolvia, também, o pensamento, sendo ambos determinantes da criação humana. A arte significava, pois, um trabalho, um produto da atividade humana. Explica Vygotsky que, embora cada indivíduo reaja de uma maneira particular diante de uma obra artística, na própria mensagem, há uma estrutura básica, unindo estas reações individuais. Entendia que a arte desempenharia um importante papel na construção de um novo homem, o que justificava sua necessidade de compreender os processos de criação e percepção estética. Isto, só seria possível com o estudo da consciência. Daí, seu interesse pela ciência psicológica.
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A Psicologia lhe possibilitaria compreender os complexos mecanismos da criação artística através do estudo da gênese e natureza das funções psíquicas superiores e da consciência. Contudo, após ter investigado profundamente as tendências psicológicas da sua época, tanto as objetivas, como as subjetivas, Vygotsky percebeu que não encontraria as respostas que procurava para as questões que fizera sobre o que era a consciência, qual a relação entre a estrutura de símbolos e signos. A Psicologia existente era uma psicologia que tratava das funções psíquicas elementares, derivadas da bagagem hereditária da espécie, da maturação biológica e da experiência individual da criança, nas quais não havia ainda consciência. Diante dessa situação, empreendeu um grande esforço no sentido de elaborar uma nova psicologia, já, que esta era a chave da compreensão dos mecanismos da Arte e da sua função na vida da sociedade e do homem, considerado como um ser histórico e social.
Como nos fala Leontiev:
A idéia de Vygotsky de unir o estudo da arte com a psicologia pressupunha, de acordo com sua percepção inicial, a reforma radical da psicologia; sua transformação de subjetiva em objetiva, de individual em social. São dignos de atenção sua intenção de enfocar de um modo novo o problema da ‘personalidade e a cultura’ superar as concepções de quem calculava resolvê-la mantendo-se no terreno da interpretação idealista da inclusão do indivíduo no mundo de sua criações. (Leontiev, 1991, p.453)
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Um outro interesse de Vygotsky pela Psicologia estava relacionado à Educação, considerada não apenas como campo essencial de observação e operacionalização da psicologia científica, mas pela própria função que exercia na formação do sujeito. Embora Vygotsky se dedique mais intensamente à ciência psicológica, principalmente, nos últimos anos de sua vida, não deixa de lado a arte e a literatura. Isto se observa na intensa atividade que desenvolve em Gomel, quando retorna de Moscou após ter concluído seus estudos superiores, em Moscou. São atividades relacionadas à psicologia, à pedagogia, à literatura e ao teatro, desenvolvidas em circunstâncias bastante difíceis em função dos graves problemas econômicos e sociais decorrentes da guerra, cujos reflexos se faziam sentir na vida do povo russo, inclusive, em sua família. Estas dificuldades eram ainda maiores face à tuberculose que atingiu alguns de seus familiares, e o próprio Vygotsky. A doença deixa-o extremamente abalado, atormentando-o durante toda a vida. Contudo, Vygotsky não para de produzir e trabalhar. Como professor, leciona em vários institutos entre os quais a Escola Trabalhista Soviética, Colégio Pedagógico de Gomel e a Escola Noturna para Trabalhadores Adultos, a Rabfak, uma escola preparatória para ingresso na universidade; foi também professor nos Cursos Preparatórios para Pedagogo. Nestas aulas, os temas abordados eram referentes a psicologia, pedagogia, ensino da literatura e língua russa. Constantemente proferia palestras sobre vários temas, como por exemplo, estética, história da arte, etc.; foi um dos organizadores das “segundas-feiras literárias”, onde eram apresentadas e discutidas as obras de poetas e de escritores modernos e clássicos (Shakespeare, Goethe, Pushkin, Tchejov, Maiakovski e Esenin), bem como, assuntos polêmicos da época (a teoria da relatividade de Einstein, por exemplo); foi, também, um dos fundadores da editora “Eras e Dias”, da revista literária “Urze”, chefiou a seção de teatro do Departamento de Educação Popular de Gomel, editou a seção de Teatro do Jornal local “Polesskaja Pravola”.
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Em 1923, Vygotsky participa, na URSS, do Segundo Congresso Psiconeurológico, no qual apresenta um relatório de investigações realizadas em Gomel. Profere uma palestra sobre “A metodologia da investigação reflexológica e psicológica” na qual assinalava a “relação entre reflexos condicionados e comportamento consciente”. Deixa claro na sua fala, sua oposição à “reflexologia” e a “reactologia”, enquanto tentativas de aplicação da filosofia marxista, bem como explicita a sua idéia sobre a gênese social da consciência.
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A impressão que causou nos participantes do Congresso, resultou no convite para fazer parte do Instituto de Psicologia de Moscou. Sua ida para Moscou, após o seu casamento com Rosa Smekhova (com quem teve duas filhas), marca o início de uma nova trajetória na sua vida que se caracteriza também por uma intensa atividade profissional e cultural e por uma situação extremamente difícil, causada pelas dificuldades financeiras, pelo agravamento de seu estado de saúde, provocado pela tuberculose, que o obrigou a tratamentos longos e dolorosos, com permanentes internações em hospitais e sanatórios superlotados. Foi, contudo, numa dessas internações que Vygotsky concluiu seu estudo “A Psicologia da Arte”, sua tese de doutorado que não pôde defender, devido às suas precárias condições de saúde.
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Paralelamente às suas atividades voltadas para construção da nova psicologia, Vygotsky continuou seu trabalho como professor, como palestrante, como orientador na criação de novos laboratórios e como pesquisador de temas relacionados a ciência psicológica. Nessa época, aprofunda seus estudos sobre temas relacionados à pedologia (ciência do desenvolvimento infantil), à pedagogia e sobre problemas de defectologia (ciência que estudava crianças com vários tipos de problemas), dedicando-se, na prática, ao estudo de crianças com deficiência auditiva, com atraso mental e com problemas de aprendizagem.
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Em 19 de outubro de 1924, Vygotsky inicia seu trabalho em conjunto com Lúria e Leontiev, que eram membros do Instituto de Moscou e dedica-se a escrever o livro: “Os problemas da educação das crianças cegas, surdas-mudas e com retardo mental”. Em 1925, começou a organizar o Laboratório de Psicologia para a Infância Anormal de Moscou, que passou a ser chamado depois (1929) de Instituto de Defectologia Experimental de Narkompros (Comissariado de Educação) e após sua morte, Instituto Científico de Investigação de Defectologia da Academia de Ciências Pedagógicas.
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No ano de 1926, Vygotsky publica o livro a “Pedologia Pedagógica e a Escrita” de A. Bychovskky e, em 1928, o livro de sua autoria “Pedologia da idade escolar”. Escreve vários artigos para a Grande Enciclopédia Médica Soviética, o que o divulgará como um grande pedólogo. É catedrático em pedologia em Moscou, membro da redação das revistas “Pedologia e deficientes físicos e mentais”. Em 1929, viaja por vários meses para Tashkent, uma pequena cidade localizada na parte asiática da URSS para treinar professores e psicólogos na Primeira Universidade Estatal da Ásia Central. Juntamente com Lúria, envia ao IX Congresso Internacional de Psicologia a New Haven, nos Estados Unidos, um artigo sobre o tema “The function and the fate egocentric spech”, que analisa criticamente a teoria da linguagem egocêntrica de autoria do psicólogo suíço Jean Piaget. Publica, nesse mesmo ano, um ensaio sobre o desenvolvimento da atenção na criança e um artigo no jornal intitulado “Journal of Genetic Pychology” no qual apresenta sua teoria sobre o desenvolvimento cultural da criança que mais tarde se tornará a teoria histórico-cultural.
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Apaixonado como era pela arte, não a abandonou, mesmo com toda dedicação à construção da nova psicologia. Nesse momento pronunciou várias conferências sobre arte no Teatro de Câmara de Moscou. Co-dirigiu com Lúria, o diretor de cinema Eisenstein e o lingüista Nicolai Marr, um seminário no campo da arte. Com Eisenstein, Vygotsky encontrava-se freqüentemente para discutir “como as idéias abstratas do materialismo histórico poderiam ser representadas em imagens de cinema”. Em 1930, Vygotsky publica o livro “Imaginação e Criatividade na idade infantil” e o livro: “Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança”, este, escrito juntamente com Lúria. Além disso cuida da tradução para o russo das obras de K. Bühler W. Kohler, e na Academia Comunista profere a conferência “Psicotécnica e Pedologia”. Motivado para conhecer as mudanças nos processos mentais superiores do homem nas diferentes culturas, planejou uma pesquisa transcultural no Uzbequistão em 1931 e 1932, mas seu precário estado de saúde não permitiu que participasse das expedições que foram então, lideradas por Lúria. Estas pesquisas visavam a obter informações acerca da origem e da organização do funcionamento intelectual do homem, comparando-se a atividade intelectual em diferentes culturas. Explica Lúria que a escolha da Uzbequistão, como local de investigação, ocorreu em função das grandes discrepâncias entre as formas culturais, haja vista a existência de várias aldeias e campos nômades.
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Vygotsky participou ainda do Conselho Científico Estatal, da Sociedade de Neuropsicólogos Materialistas, do Presidium da Academia Krupskaya, bem como de reuniões e congressos sobre educação pública. Entre 1929 e 1931, publica-se a 1a parte do livro “Psicologia do Adolescente”, um volume de 496 páginas, proibido mais tarde (1936) pelo Partido Comunista.
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Entre 1931 e 1934, escreveu para compilação, artigos e livros a um ritmo cada vez mais acelerado. Editou e escreveu uma grande introdução para a tradução no idioma russo, da obra de Piaget "A Linguagem e o Pensamento da Criança" (1932). Escreveu muitos outros trabalhos, entre eles se incluem: Diagnóstico evolutivo e clínica pedagógica para crianças com dificuldades (1931 a); O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores (1931 b); Leituras de psicologia(1932); A problemática da instrução e o desenvolvimento cognitivo na idade escolar(1934 b); Pensamento e Esquizofrenia (1934 c), bem como, uma infinidade de notas críticas e introduções às obras de Bühler, Köhler, Gesell, Koffka e Freud. Neste ano (1931), volta para a Faculdade de Medicina dado seus estudos sobre distúrbios neurológicos do pensamento e da linguagem, mas completou apenas três anos de estudos em função, também, das suas condições de saúde. Em 1932, promove um curso de psicologia no Instituto de Herszen, em Leningrado incluído em “Lições de Psicologia”, inédito até 1960. Publica um ensaio sobre a psicologia da esquizofrenia e cuida da tradução russa dos livros de A. Gesell e J. Piaget. 1933, é o ano em que escreve um ensaio sobre “O jogo no desenvolvimento psíquico da criança”(inédito até 1966) e o livro “Teoria das Emoções”, dedicado a Spinoza que permanece inédito até 1984. Em 1934, juntamente com outros autores, publica “Fascismo em psiconeurologia” que se refere às teorias eugenéticas raciais. Também escreve importantes ensaios sobre as etapas do desenvolvimento infantil, relação entre desenvolvimento, instrução e aprendizagem, sobre o retardo mental e sobre a localização cerebral das funções psíquicas. Muito doente, acamado, dita o último capítulo de Pensamento e Linguagem. Veio a falecer em 11 de junho desse mesmo ano.
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Suas obras passam a ser proibidas por ordem de Stalin, o sucessor de Lenin, proibição esta que se estenderá durante vinte anos. Isto porque Vygotsky não aceitou e nem se submeteu ao estalinismo.
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Stalin, assumindo o poder russo, implantou uma máquina estatal sem igual no que toca ao controle da vida social, econômica e política, acompanhada de todas as técnicas de repressão e de terror necessárias para assegurar o governo. Esse controle se estenderá à área da ciência e cultura em geral, passando o Partido Comunista a controlar toda a produção científica e cultural na URSS.
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O marxismo, na visão estalinista, portanto, como doutrina, determinava todas as esferas da atividade humana, transformando o espaço dos debates nas diversas ciências num espaço repressor e uniformizador. A repressão ideológica era tão grande que os pesquisadores tinham que se declarar leais ao Partido, do contrário, eram combatidos em eventos públicos, organizados com o objetivo de demolir a posição científica do pesquisador. Sua teoria é acusada de ter caráter abstrato e idealista, eclética e de influência ocidental.
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Ao contrário do que pensavam seus opositores, Vygotsky jamais abandonou a filosofia marxista, cujo conhecimento profundo foi construído a partir da leitura dos textos de Marx e Engel quando ainda era jovem. Como bem explica Kozulin (1990, p.230) “Vygotsky considerou Marx seriamente, não como um ídolo, mas como um pensador de carne e osso, pertencente à tradição cultural européia. O Marx de Vygotsky era uma das vozes do pensamento europeu, ao mesmo nível que Dilthey, Durkhein, os neokantianos e outros”. (Kozulin, 1990, P.230). Vygotsky, pois, transgredia uma regra fundamental da ideologia estalinista ao incluir o marxismo no pensamento europeu além de buscar numa série de tendências teóricas e filosóficas, no trabalho de seu predecessores europeus, elementos para a psicologia histórico–cultural.
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Posicionando-se dessa forma, contrariava não apenas a política de Stalin, mas a todos seus colegas que acreditavam que o marxismo implicava em romper com a tradição européia. Por isso, o distanciamento de alguns “fiéis colaboradores”, antes mesmo de sua morte, o silêncio sobre suas obras, a eliminação das referências a Freud, a Sapin, aos pedólogos, a Blonsky, a Marx e a Engels e a Lênin, apresentadas muito tempo depois na Rússia (1956) e em 1962 pela primeira vez, no Ocidente.
Por isso, acaba sendo visto no Ocidente apenas como escritor de crítica literária, como um pseudo–marxista, e não como “um pedagogo respeitoso do direito das minorias raciais a conservar a própria cultura, o reabilitador de crianças cegas e surdo-mudas” (Mecacci, 1990, p.6), o grande estudioso da psicologia e que se tornou um grande psicólogo. E é Mecacci (1990) que nos afirma que nos dias de hoje, infelizmente, a imagem que surge ainda é aquela do grande teórico de psicologia e não a do protagonista das lutas sociais e culturais dos anos 20 e 30. E que ainda, não ocorreu a restauração dos seus textos originais. .
Ao invés disso, ainda permanece o medo das palavras: são suprimidas várias palavras, são acrescidas novas, se rescrevem frase inteiras, se usa o indicativo onde Vygotsky usa o condicional, são ainda tabu Freud, Sapin, Blonsky, se faz de conta que a pedologia não existiu nunca, se evita a compreensão que Vygotsky lia e usava outros textos considerados tabu como as obras de Bachtin – Volosinov –, se introduziam e suprimiam a seu bel-prazer as vírgulas nas citações feitas por Vygotsky de outros autores, colocavam o cursivo onde queriam. (Mecacci, 1990, p. 8)
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O verdadeiro Vygotsky, portanto, precisa ser descoberto o que exige um estudo aprofundado e cuidadoso de sua produção teórica, dada a importância que ela demonstra ter para a compreensão da mente humana, hoje. Por isso, mesmo considerando sua obra inacabada, com idéias ainda pouco exploradas, não podemos deixar de reconhecer no seu trabalho um desafio para todos aqueles estudiosos que buscam uma melhor compreensão do desenvolvimento do ser humano.
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Daí, nosso interesse em conhecer mais profundamente suas idéias, na certeza de que elas poderão nos auxiliar na construção de uma nova Educação que contribua para a transformar essa sociedade capitalista em uma sociedade em que todas as pessoas, independente de classe social, tenham seus direitos de cidadão garantidos.
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As reflexões teóricas que até aqui fizemos sobre a vida de Gramsci e de Vygotsky nos permitem ver que Gramsci e Vygotsky trabalharam no sentido de fazer realidade o sonho da autêntica liberdade e da fraternidade dos povos de todas as raças e nações. Suas teorias, portanto, trazem a marca do momento histórico em que viveram e traços de unidade. Elas apontam para a construção de um novo homem e, de uma nova sociedade. Resta-nos então, conhecer a produção teórica gramsciana e vygotskyana para que possamos verificar em que aspectos elas são coincidentes para que possamos colher os subsídios para uma política educacional transformadora da educação brasileira. São pois, algumas questões teóricas que passaremos a ver no próximo capítulo.
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