A partir da vivência nos acampamentos rurais ficou evidente que a luta pela reforma agrária está diretamente relacionada com o acesso à educação. Um marco fundamental para o movimento de educação no campo foi o primeiro Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária (ENERA), realizado em julho de 1997, na Universidade de Brasília (UnB).
Na ocasião, organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento das Mulheres Camponesa (MMC), entre outras, lançaram um Manifesto das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária ao Povo Brasileiro.
O manifesto defende uma “identidade própria” nas escolas rurais, além de “um projeto político-pedagógico que fortaleça novas turmas de desenvolvimento no campo, baseadas na justiça social, na cooperação agrícola, no respeito ao meio ambiente e na valorização da cultura camponesa”. A partir da luta unificada dos movimentos rurais, houve alguns avanços na educação, porém os números ainda são alarmantes.
Por isso, Cristina Vargas, do setor de educação do MST, relembra que, desde a década de 80, quando surge o MST, sempre houve muita demanda para a educação nas áreas rurais. “A educação que nós queremos para o campo não é somente uma educação básica, queremos toda a educação, desde a educação infantil até a universidade, com todas as possibilidades que isso possa vir a trazer”.
Campo e cidade
Um avanço na educação rural é o acesso ao Ensino Superior por parte dos camponeses. Através de parcerias dos movimentos sociais com universidades, foram criadas turmas especiais, destinadas a trabalhadores rurais que vivem em assentamentos ou acampamentos. A parceria é financiada pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
O programa também abrange a Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA), Ensino Fundamental e Médio, além dos cursos Técnicos e Superiores. Segundo Clarice dos Santos, coordenadora nacional do Pronera, o programa atendeu mais de 500 mil alunos, desde a alfabetização até o ensino superior, em seus primeiros 10 anos de existência (1998-2008). Clarice avalia que ocorreram mudanças na estrutura do trabalho rural, aumentando a complexidade e cobrando dos camponeses um maior conhecimento. Para Juvelino Strozake, advogado do MST, “uma das principais razões da miséria em nosso campo é a ausência de um ensino qualificado”.
Segundo o documento Panorama da Educação do Campo, publicado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a escolaridade média da população de 15 anos ou mais que vive na área rural é de 4 anos. O levantamento mostra que a mesma média, em áreas urbanas, é de 7,3 anos.
Os dados relativos ao analfabetismo também expõem a grande disparidade entre cidade e campo: em 2004, 29,8% da população acima de 15 anos, da zona rural era analfabeta. Já na zona urbana, a taxa era de 8,7%. “O analfabetismo é muito grande, então os cursos de graduação proporcionam aos assentados ferramentas que vão ajudar na administração das cooperativas e associações. Sem o acesso ao conhecimento é impossível fazer andar um bom programa de reforma agrária”, complementa Strozake.
Demanda concreta
Fundado em 1984 com a proposta de organizar os trabalhadores rurais em torno da luta pelo direito à terra, hoje o MST pode ser considerado o movimento rural mais importante do mundo.
Para o professor Bernardo Mançano Fernandes, coordenador do curso de Geografia para assentados na Unesp, “o MST está entre os movimentos camponeses que mais lutam pela terra e pelo território. É um dos responsáveis pelo desenvolvimento da agricultura camponesa no Brasil. O MST é fundamental para o desenvolvimento de nosso país”.
Além disso, durante sua trajetória, o MST sempre utilizou a educação para alcançar a reforma agrária e a justiça social.
A coordenadora do Pronera conta que o movimento sempre teve uma preocupação muito grande com a educação das crianças nos assentamentos. “E mesmo não tendo escolas públicas, desde o início eles foram organizando suas escolas, juntando aqueles que tinham mais estudos para ensinar quem tinha menos”.
Cristina Vargas, do setor de educação, conta que foi a demanda concreta que motivou a discussão sobre o tema no movimento. “Se a luta é feita pelas famílias, as crianças também estão no acampamento. Não faz sentido que a criança tenha que morar em casa de parentes para frequentar a escola”, completa.
A partir do questionamento “Que educação queremos?”, a organização iniciou a formulação de um processo educativo que respeitasse a vivência dessas crianças em suas comunidades, já que nas escolas tradicionais a luta pela terra era renegada, o que frequentemente desmotivava os alunos.
O aprofundamento do debate sobre educação popular resultou em uma maior organicidade do setor de educação do MST. Assim, o movimento passou a trabalhar com três frentes, a educação infantil, o ensino fundamental e médio
e a educação para jovens e adultos.
Com a construção de um processo de educação popular, uma nova demanda surgiu: a formação de professores e educadores para atuar nesse processo, abrangendo também uma formação mais técnica na área da agricultura.
Na universidade
Porém, para que a demanda fosse atendida foi preciso muita luta e pressão política. O Pronera, que possibilita as parcerias dos movimentos com as universidades, foi criado em 1998 por um pressionado governo Fernando Henrique Cardoso.
Em 1997, o MST organizou a “Marcha Nacional pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça”, com mais de cem mil pessoas, que chegou à Brasília no dia 17 de abril, em referência ao Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido um ano antes. E foi nesse contexto que os movimentos exigiram do governo um programa destinado à educação rural.
A primeira parceria aconteceu em 1998, com um curso de Pedagogia da Terra, na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Atualmente, funcionam cursos de história, geografia, agronomia, administração, medicina veterinária, direito, entre outros, em diversas regiões do país.
Para viabilizar uma parceria, o movimento social e a universidade enviam um projeto pedagógico à coordenação do Pronera. Se aprovado, o Incra concede bolsas para o coordenador do curso, além de sua equipe. “Eles recebem bolsas, já que é bastante trabalhoso fazer um curso adicional”, explica Clarice dos Santos.
A coordenadora do Pronera também destaca que os camponeses estudam com todas as condições asseguradas: “não é preciso arrumar um emprego na cidade para conseguir estudar. O Incra financia o curso, além de transporte, alimentação e hospedagem”.
Na opinião de Cristina Vargas, do MST, essa procura pela universidade “se dá por uma necessidade concreta de atender a educação formal e não formal que existe nos assentamentos. Além disso, faz parte do debate sobre educação no campo, idealizado por um conjunto de organizações”.
Teoria e prática
Outra característica inovadora dos cursos de camponeses é o uso do regime de tempos alternados, retirado da pedagogia da alternância, onde os estudantes dividem seu tempo entre período universidade e período comunidade. Geralmente, por semestre, o estudante passa dois meses na universidade e, em seguida, dois meses na comunidade, podendo variar o período de acordo com as especificidades dos cursos.
“O maior benefício é a aliança entre teoria e prática. Isso permite ver as contradições na prática, diferente de somente trabalhar após passar quatro anos estudando, ou então trabalhar em uma área diferente daquela que é estudada”, sintetiza Cristina Vargas.
No dia 4 de novembro de 2010, o então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou o decreto nº 7.352/2010, que “dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – Pronera”.
O documento transforma o programa em uma política pública permanente, vinculada formalmente ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Na avaliação de Clarice dos Santos, coordenadora nacional do Pronera, a gestão de Lula foi benéfica para o programa, pois em 2003, o orçamento do Pronera, que vinha ainda do governo FHC era 9 milhões. Já no fim de 2010, o orçamento é de 70 milhões. “Além disso, houve uma dinâmica muito maior, uma participação maior das universidades.”
Ataques conservadores
Ameaçados com a presença dos sem terra nas universidades, as forças conservadoras não demoraram a reagir, usando seus instrumentos habituais: a grande mídia e o poder judiciário.
Para Clarice, o que move esses ataques é preconceito. “A universidade sempre foi um lugar de formação da elite brasileira. Com a expansão das universidades privadas, as universidades públicas são, cada vez mais, território das elites. Então, hoje, o pobre estuda em escola pública e na universidade é obrigado a pagar pelo ensino. Já a elite, estuda em escola particular boa para poder entrar na universidade pública”.
O advogado do MST, Juvelino Strozake, relembra que quando foi anunciada a parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG) para a turma de direito, “sofremos um ataque muito forte por parte da grande mídia”. O editorial do jornal O Estado de S. Paulo, intitulado “Bacharéis sem-terra” do dia 7 de setembro de 2007 evidencia a preocupação sobre a possível ascensão de um trabalhador sem terra a um cargo de destaque no judiciário: “Um advogado que tenha por origem o MST haverá de aprofundar-se na ciência do Direito e buscar no texto legal aquilo que sirva à defesa dos interesses dos sem-terra. Muito bem. E se ele prestar concurso para o Ministério Público e virar procurador ou promotor de Justiça? E se ele prestar concurso para a magistratura e tornar-se juiz? Imaginam os ‘emessetistas’ (SIC) que, da mesma forma, ele pautará suas interpretações da lei e suas decisões de acordo com sua própria origem?”.
Os convênios também sofreram ataques na esfera jurídica. Um dos casos ocorreu na turma de medicina veterinária, na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Em 2008, antes do início das aulas, o Ministério Público Federal de Pelotas entrou com uma liminar para barrar a matrícula dos estudantes. A sentença, expedida em novembro de 2010, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), deu parecer favorável à realização do curso, que inicia as aulas em 2011.
O ataque mais recente ocorreu com o convênio firmado com a UFG para a implementação da turma de Direito. A ação civil pública que foi proposta pelo Ministério Público Federal de Goiás já foi julgada em primeira instância e o juiz entendeu que o convênio é inconstitucional e ordenou a paralisação da turma.
O INCRA e a UFG apelaram contra a decisão e o Tribunal Regional Federal deu efeito suspensivo na apelação, ou seja, a sentença não tem mais validade nesse momento e o caso ainda será julgado pelo TRF.
Domínio da elite
Porém, a situação mais preocupante ocorreu em 2008, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) estabeleceu o Acórdão 2653/2008, proibindo que o Pronera firme convênios com as universidades. A motivação foi uma denúncia de corrupção no convênio com a Universidade do Estado de Mato Grosso, no curso de Agronomia.
No documento, o TCU determina que os convênios não sejam mais realizados através de parcerias, mas por licitações. Após uma grande pressão, no dia 1º de dezembro de 2010, o TCU mudou sua decisão e voltou a autorizar as parcerias. Segundo a coordenadora do Pronera, a paralisação foi bastante prejudicial, deixando cerca 50 projetos, já aprovados, em espera.
Nesse período, cerca de 50 mil estudantes aprovados nos projetos, desde educação infantil à graduação, ficaram sem aulas.“Existem algumas áreas que são de domínio absoluto das elites, como por exemplo, as ciências agrárias, as ciências jurídicas e as ciências médicas”, esclarece Clarice.
Bernardo Mançano, coordenador do curso de Geografia na Unesp, também exalta a troca de experiências entre os camponeses e as universidades: “A experiência foi desafiadora. Desde que começamos esta experiência nós mudamos e o MST mudou. Eles conheceram melhor a universidade e nós conhecemos melhor o MST”.
Da Caros Amigos*
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