Caro Ziraldo,
Olho a triste figura de Monteiro Lobato abraçado a uma mulata, estampada nas camisetas do bloco carnavalesco carioca "
Que merda é essa?"   e vejo que foi obra sua. 
Fiquei curiosa para saber se você conhece a   opinião de Lobato sobre os mestiços brasileiros e, de verdade, queria   que não. Eu te respeitava, Ziraldo. Esperava que fosse o seu senso de   humor falando mais alto do que a ignorância dos fatos, e por breves   momentos até me senti vingada. Vingada contra o racismo do 
eugenista Monteiro Lobato que, em 
carta ao amigo Godofredo Rangel, desabafou:
 "(...)Dizem   que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e   dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num   desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que   volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas   as formas e má-formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da   África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se   do português de maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o,   dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui   para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um   desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes   um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi?” “Desastre   na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto   dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou   aqui, na sua inconsciente vingança!..." (em "A barca de Gleyre". São   Paulo: Cia. Editora Nacional, 1944. p.133).
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Ironia das ironias, Ziraldo, o nome do livro de onde foi tirado o  trecho  acima é inspirado em um quadro do pintor suíço Charles Gleyre   (1808-1874), Ilusões Perdidas. Porque foi isso que aconteceu. Porque   lendo uma matéria sobre o bloco e a sua participação, você assim o 
endossa :
  "Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com   uma mulata. Ele tem um conto sobre uma neguinha que é uma maravilha.   Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com   essa brincadeira de achar que a gente é racista". A gente quem,   Ziraldo? Para quem você se (auto) justifica? Quem te disse que racismo   sem ódio, mesmo aquele com o "humor negro" de unir uma mulata a quem   grande ódio teve por ela e pelo que ela representava, não é racismo?   Monteiro Lobato, sempre que se referiu a negros e mulatos, foi com ódio,   com desprezo, com a certeza absoluta da própria superioridade, fazendo   uso do dom que lhe foi dado e pelo qual é admirado e defendido até  hoje.  Em uma das cartas que iam e vinham na barca de Gleyre (nem todas  estão  publicadas no livro, pois a seleção foi feita por Lobato, que as   censurou, claro) com seu amigo Godofredo Rangel, Lobato confessou que   sabia que a escrita 
"é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, 'work' muito mais eficientemente". . 
Lobato estava certo. Certíssimo. 
Até hoje, muitos dos que o leram não   vêem nada de errado em seu processo de chamar negro de burro aqui, de   fedorento ali, de macaco acolá, de urubu mais além. Porque os processos   indiretos, ou seja, sem ódio, fazendo-se passar por gente boa e amiga   das crianças e do Brasil, "work" muito bem. Lobato ficou frustradíssimo   quando seu "processo" sem ódio, só na inteligência, não funcionou com  os  norte-americanos, quando ele tentou em vão encontrar editora que   publicasse o que considerava ser sua obra prima em favor da eugenia e da   eliminação, via esterilização, de todos os negros. Ele falava do livro  
"O presidente negro ou O choque das raças"  que, ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, país daquele   povo que odeia negros, como você diz, Ziraldo, foi publicado no Brasil.   Primeiro em capítulos no jornal carioca A Manhã, do qual Lobato era   colaborador, e logo em seguida em edição da Editora Companhia Nacional,   pertencente a Lobato. Tal livro foi dedicado secretamente ao amigo e 
médico eugenista Renato Kehl, em meio à vasta e duradoura correspondência trocada pelos dois:
  “Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu   Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no   frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. (...) Precisamos   lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só:   póda. É como a vinha".. 
Impossibilitado de colher os frutos dessa poda nos EUA, Lobato desabafou com Godofredo Rangel:
   "Meu romance não encontra editor. [...]. Acham-no ofensivo à dignidade   americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso  moral  possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo  crime que  sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em  que eles  linchavam os negros." Tempos depois, voltou a se animar: 
"Um   escândalo literário equivale no mínimo a 2.000.000 dólares para o  autor  (...) Esse ovo de escândalo foi recusado por cinco editores   conservadores e amigos de obras bem comportadas, mas acaba de encher de   entusiasmo um editor judeu que quer que eu o refaça e ponha mais  matéria  de exasperação. Penso como ele e estou com idéias de enxertar  um  capítulo no qual conte a guerra donde resultou a conquista pelos  Estados  Unidos do México e toda essa infecção spanish da América  Central. O meu  judeu acha que com isso até uma proibição policial  obteremos - o que  vale um milhão de dólares. Um livro proibido aqui sai  na Inglaterra e  entra boothegued como o whisky e outras implicâncias  dos puritanos". Lobato percebeu, Ziraldo, que talvez devesse apenas  exasperar-se mais,  ser mais claro em suas ideias, explicar melhor seu  ódio e seu racismo,  não importando a quem atingiria e nem por quanto  tempo perduraria, e nem  o quão fundo se instalaria na sociedade  brasileira. Importava o  dinheiro, não a exasperação dos ofendidos.  2.000.000 de dólares, ele  pensava, por um ovo de escândalo. Como também  foi por dinheiro que o 
Jeca Tatu, reabilitado, estampou as propagandas do Biotônico Fontoura.
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Você sabe que isso dá dinheiro, Ziraldo, mesmo que o investimento tenha sido a longo prazo, como ironiza Ivan Lessa: "Ziraldo,   o guerrilheiro do traço, está de parabéns. Finalmente o governo   brasileiro tomou vergonha na cara e acabou de pagar o que devia pelo   passe de Jeremias, o Bom, imortal personagem criado por aquele que   também é conhecido como “o Lamarca do nanquim”. Depois do imenso sucesso   do calunguinha nas páginas de diversas publicações, assim como também   na venda de diversos produtos farmacêuticos, principalmente doenças da   tireóide, nos idos de 70, Ziraldo, cognominado ainda nos meios   esclarecidos como “o subversivo da caneta Pilot”, houve por bem (como   Brutus, Ziraldo é um homem de bem; são todos uns homens de bem – e de   bens também) vender a imagem de Jeremias para a loteca, ou seja, para a   Caixa Econômica Federal (federal como em República Federativa do  Brasil)  durante o governo Médici ou Geisel (os déspotas esclarecidos em  muito  se assemelham, sendo por isso mesmo intercambiáveis)".
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No tempo em que linchavam negros, disse Lobato, como se o linchamento   ainda não fosse desse nosso tempo. 
Lincham-se negros nas ruas, nas   portas dos shoppings e bancos, nas escolas de todos os níveis de ensino,   inclusive o superior. O que é até irônico, porque Lobato nunca poderia   imaginar que chegariam lá. Lincham-se negros, sem violência física, é   claro, sem ódio, nos livros, nos artigos de jornais e revistas, nos   cartoons e nas redes sociais, há muitos e muitos carnavais. Racismo não   nasce do ódio ou amor, Ziraldo, sendo talvez a causa e não a   consequência da presença daquele ou da ausência desse. Racismo nasce da   relação de poder. De poder ter influência ou gerência sobre as vidas de   quem é considerado inferior. 
"Em que estado voltaremos, Rangel," se pergunta Lobato, ao se lembrar do quadro para justificar a escolha do nome do livro de cartas trocadas, "
desta   nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de   Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca   – e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de   velas novas e arrogantes, atadas ao mastro da nossa petulância. São as   nossas ilusões". Ah, Ziraldo, quanta ilusão (ou seria petulância?   arrogância; talvez? sensação de poder?) achar que impor à mulata a   presença de Lobato nessa festa tipicamente negra, vá acabar com a   polêmica e todos poderemos soltar as ancas e cada um que sambe como sabe   e pode. Sem censura. Ou com censura, como querem os quemerdenses.  Mesmo  que nesse do 
Caçadas de Pedrinho a palavra censura não   corresponda à verdade, servindo como mero pretexto para manifestação de   discordância política, sem se importar com a carnavalização de um tema   tão dolorido e tão caro a milhares de brasileiros. E o que torna tudo   ainda mais apelativo é que o bloco aponta censura onde não existe e se   submete, calado, ao pedido da prefeitura para que não use o próprio nome   no desfile. Não foi assim? Você não teve que escrever "M*" porque a 
palavra "merda" foi censurada? Como é que se explica isso, Ziraldo? Mente-se e cala-se quando convém? Coerência é uma 
questão de caráter.
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O   que o MEC solicita não é censura. É respeito aos Direitos Humanos. 
Ao   direito de uma criança negra em uma sala de aula do ensino básico e   público, não se ver representada (sim, porque os processos indiretos,   como Lobato nos ensinou, "work" muito mais eficientemente) em   personagens chamados de macacos, fedidos, burros, feios e outras   indiretas mais. Você conhece os direitos humanos, inclusive foi o   artista escolhido para ilustrar a 
Cartilha de Direitos Humanos  encomendada pela Presidência da República, pelas secretarias Especial   de Direitos Humanos e de Promoção dos Direitos Humanos, pela ONU, a   UNESCO, pelo MEC e por vários outros órgãos. Muitos dos quais você agora   desrespeita ao querer, com a sua ilustração, acabar de vez com a   polêmica causada por gente que estudou e trabalhou com seriedade as   questões de educação e desigualdade racial no Brasil. A adoção do 
Caçadas de Pedrinho  vai contra a lei de Igualdade Racial e o Estatuto da Criança e do   Adolescente, que você conhece e ilustrou tão bem. Na página 25 da sua   Cartilha de Direitos Humanos, está escrito: 
"O único jeito de uma   sociedade melhorar é caprichar nas suas crianças. Por isso, crianças e   adolescentes têm prioridade em tudo que a sociedade faz para garantir os   direitos humanos. Devem ser colocados a salvo de tudo que é violência e   abuso. É como se os direitos humanos formassem um ninho para as   crianças crescerem." Está lá, Ziraldo, leia de novo: "crianças e   adolescentes têm prioridade". Em tudo. Principalmente em situações nas   quais são desrespeitadas, como na leitura de um livro com passagens   racistas, escrito por um escritor racista com finalidades racistas. Mas   você não vê racismo e chama de patrulhamento do politicamente correto e   censura. Você está pensando nas crianças, Ziraldo? Ou com medo de que,   se a moda pega, a "censura" chegue ao seu direito de continuar  brincando  com o assunto? "Acho injusto fazer isso com uma figura da  grandeza de  Lobato", você disse em uma reportagem. E com as crianças, o  público-alvo  que você divide com Lobato, você acha justo? Sim, vocês  dividem o mesmo  público e, inclusive, alguns personagens, como uma  boneca e pano e o  Saci, da sua Turma do Pererê. Medo de censura,  Ziraldo, talvez aos  deslizes, chamemos assim, que podem ser cometidos  apenas porque se  acostuma a eles, a ponto de pensar que não são, de  novo chamemos assim,  deslizes.
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A gente se acostuma, Ziraldo.  Como o seu 
menino marrom se acostumou com as sandálias de dedo:
  "O menino marrom estava tão acostumado com aquelas sandálias que era   capaz de jogar futebol com elas, apostar corridas, saltar obstáculos sem   que as sandálias desgrudassem de seus pés. Vai ver, elas já faziam   parte dele" (ZIRALDO, 1986,p. 06, em O Menino Marrom). O menino   marrom, embora seja a figura simpática e esperta e bonita que você   descreve, estava acostumado e fadado a ser pé-de-chinelo, em comparação   ao seu amigo menino cor-de-rosa, porque 
"(...) um já está quase   formado e o outro não estuda mais (...). Um já conseguiu um emprego, o   outro foi despedido do quinto que conseguiu. Um passa seus dias lendo   (...), um não lê coisa alguma, deixa tudo pra depois (...). Um pode ser   diplomata ou chofer de caminhão. O outro vai ser poeta ou viver na   contramão (...). Um adora um som moderno e o outro – Como é que pode? –   se amarra é num pagode. (...) Um é um cara ótimo e o outro, sem  qualquer  duvida, é um sujeito muito bom. Um já não é mais rosado e o  outro está  mais marrom" (ZIRALDO, 1986, p.31). O menino marrom, ao crescer, talvez virasse marginal, fado de muito negro, como você nos mostra aqui: 
"(...)   o menino cor-de-rosa resolveu perguntar: por que você vem todo o dia   ver a velhinha atravessar a rua? E o menino marrom respondeu: Eu quero   ver ela ser atropelada" (ZIRALDO, 1986, p.24), porque a própria   professora tinha ensinado para ele a diferença e a (não) mistura das   cores. Então ele pensou que 
"Ficar sozinho, às vezes, é bom: você   começa a refletir, a pensar muito e consegue descobrir coisas lindas.   Nessa de saber de cor e de luz (...) o menino marrom começou a entender   porque é que o branco dava uma idéia de paz, de pureza e de alegria. E   porque razão o preto simbolizava a angústia, a solidão, a tristeza. Ele   pensava: o preto é a escuridão, o olho fechado; você não vê nada. O   branco é o olho aberto, é a luz!" (ZIRALDO, 1986, p.29), e que   deveria se conformar com isso e não se revoltar, não ter ódio nenhum ao   ser ensinado que, daquela beleza, pureza e alegria que havia na cor   branca, ele não tinha nada. O seu texto nos ensina que é assim, sem   ódio, que se doma e se educa para que cada um saiba o seu lugar, com   docilidade e resignação: 
"Meu querido amigo: Eu andava muito triste   ultimamente, pois estava sentindo muito sua falta. Agora estou mais   contente porque acabo de descobrir uma coisa importante: preto é,   apenas, a ausência  do branco" (ZIRALDO, 1986, p.30).
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Olha que interessante, Ziraldo: nós que sabemos do racismo confesso   de Lobato e conseguimos vê-lo em sua obra, somos acusados por você de   "macaquear" (olha o termo aí) os Estados Unidos, vendo racismo em tudo.   "Macaqueando" um pouco mais, será que eu poderia também acusá-lo de   estar "macaqueando" Lobato, em trechos como os citados acima? Sem saber,   é claro, mas como fruto da introjeção de um "processo" que ele provou   que "work" com grande eficiência e ao qual podemos estar todos  sujeitos,  depois de sermos submetidos a ele na infância e crescermos em  uma  sociedade na qual não é combatido. Afinal, há quem diga que não  somos  racistas. Que quem vê o racismo, na maioria os negros, que o  sofrem,  estão apenas "macaqueando". Deveriam ficar calados e deixar  dessa  bobagem. Deveriam se inspirar no menino marrom e se resignarem.  Como não  fazem muitos meninos e meninas pretos e marrons, aqueles que  são a  ausência do branco, que se chateiam, que se ofendem, que sofrem   preconceito nas ruas e nas escolas e ficam doídos, pensando nisso o   tempo inteiro, pensando tanto nisso que perdem a vontade de ir à escola,   
começam a tirar notas baixas  porque ficam matutando, ressentindo, a atenção guardadinha lá debaixo   da dor. E como chegam à conclusão de que aquilo não vai mudar, que não   vão dar em nada mesmo, que serão sempre pés-de-chinelo, saem por aí   especializando-se na arte de esperar pelo atropelamento de velhinhas.
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Racismo é um dos principais fatores responsáveis pela limitada   participação do negro no sistema escolar, Ziraldo, porque desvia o foco,   porque baixa a auto-estima, porque desvia o foco das atividades,  porque  a criança fica o tempo todo tendo que pensar em como não sofrer  mais  humilhações, e o material didático, em muitos casos, 
não facilita nada a vida delas.   E quando alguma dessas crianças encontra um jeito de fugir a esse   destino, mesmo que não tenha sido através da educação, fica insuportável   e merece o linchamento público e exemplar, como o sofrido por Wilson   Simonal. Como exemplo, temos a sua opinião sobre ele:
 "Era tolo, se achava o rei da cocada preta, coitado. E era mesmo. Era metido, insuportável".  Sabe, Ziraldo, é por causa da perpetuação de estereótipos como esses   que às vezes a gente nem percebe que eles estão ali, reproduzidos a   partir de preconceitos 
adquiridos na infância, que a SEPPIR pediu que o MEC reavaliasse a adoção de 
Caçadas de Pedrinho.   Não a censura, mas a reavaliação. Uma nota, talvez, para ser colocada   junto com as outras notas que já estão lá para proteger os direitos das   onças de não serem caçadas e o da ortografia, de evoluir. Já estão lá  no  livro essas duas notas e a SEPPIR pede mais uma apenas, para que as   crianças e os adolescentes sejam "colocados a salvo de tudo que é   violência e abuso", como está na cartilha que você ilustrou. Isso é um   direito delas, como seres humanos. É por isso que tem gente lutando,   como você também já lutou por direitos humanos e por reparação. É isso   que a SEPPIR pede: reparação pelos danos causados pela escravidão e pelo   racismo.
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Assim você 
se defendeu de quem o atacou na época em que conseguiu fazer valer os seus direitos: "
(…)   Espero apenas que os leitores (que o criticam) não tenham sua casa   invadida e, diante de seus filhos, sejam seqüestrados por componentes do   exército brasileiro pelo fato de exercerem o direito de emitir sua   corajosa opinião a meu respeito, eu, uma figura tão poderosa”. Ziraldo, você tem noção do que aconteceu com os, citando Lobato,  
"negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão",   e do que acontece todos os dias com seus descendentes em um país que   naturalizou e, paradoxalmente, nega o seu racismo? De quantos já   morreram e ainda morrem todos os dias porque tem gente que não os leva a   sério? Por causa do racismo é bem difícil que essa gente fadada a ser   pé-de-chinelo a vida inteira, essas pessoas dos subúrbios, que  perpassam  todas as degenerescências, todas as formas e má-formas  humanas – todas,  menos a normal, - porque nelas está a ausência do  branco, esse povo  todo representado pela mulata dócil que você faz  sorrir nos braços de um  dos escritores mais racistas e perversos e  interesseiros que o Brasil  já teve, aquele que soube como ninguém que  um país (racista) também de  faz de homens e livros (racistas), por  causa disso tudo, Ziraldo, é que  eu ia dizendo ser quase impossível  para essa gente marrom, herdeira  dessa gente de cor que simboliza a  angústia, a solidão, a tristeza,  gerar pessoas tão importantes quanto  você, dignas da reparação (que nem é  financeira, no caso) que o Brasil  também lhes deve: respeito. Respeito  que precisou ser ancorado em lei  para que tivesse validade, e cuja  aplicação você chama de censura.
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Junto com outros grandes nomes da literatura infantil brasileira, como 
Ana Maria Machado e 
Ruth Rocha, você assinou uma carta que, em defesa de Lobato e contra a censura inventada pela imprensa, diz: 
"Suas   criações têm formado, ao longo dos anos, gerações e gerações dos   melhores escritores deste país que, a partir da leitura de suas obras,   viram despertar sua vocação e sentiram-se destinados, cada um a seu   modo, a repetir seu destino. (...) A maravilhosa obra de Monteiro Lobato   faz parte do patrimônio cultural de todos nós – crianças, adultos,   alunos, professores – brasileiros de todos os credos e raças. Nenhum de   nós, nem os mais vividos, têm conhecimento de que os livros de Lobato   nos tenham tornado pessoas desagregadas, intolerantes ou racistas. Pelo   contrário: com ele aprendemos a amar imensamente este país e a  alimentar  esperança em seu futuro. Ela inaugura, nos albores do século  passado,  nossa confiança nos destinos do Brasil e é um dos pilares das  nossas  melhores conquistas culturais e sociais." É isso. Nos  livros de  Lobato está o racismo do racista, que ninguém vê, que vocês  acham que  não é problema, que é alicerce, que é necessário à formação  das nossas  futuras gerações, do nosso futuro. E é exatamente isso.  Alicerce de uma  sociedade que traz o racismo tão arraigado em sua  formação que não  consegue manter a necessária distância do foco, a  necessário distância  para enxergá-lo. Perpetuar isso parece ser  patriótico, esse racismo que
 "faz parte do patrimônio cultural de  todos nós – crianças, adultos,  alunos, professores – brasileiros de  todos os credos e raças." Sabe  o que Lobato disse em carta ao seu  amigo Poti, nos albores do século  passado, em 1905? Ele chamava de  patriota o brasileiro que se casasse  com uma italiana ou alemã, para  apurar esse povo, para acabar com essa  raça degenerada que você, em sua  ilustração, lhe entrega de braços  abertos e sorridente. Perpetuar isso  parece alimentar posições de  pessoas que, mesmo não sendo ou mesmo não  se achando racistas, não se  percebem cometendo a atitude racista que  você ilustrou tão bem: entregar  essas crianças negras nos braços de  quem nem queria que elas nascessem.  
Cada um a seu modo, a repetir seu destino. Quem é poderoso, que cobre, muito bem cobrado, seus direitos; quem não é, que sorria, entre na roda e aprenda a sambar.
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Peguei-o para bode expiatório, Ziraldo? Sim, sempre tem que ter   algum. E, sem ódio, espero que você não queira que eu morra por te   criticar. Como faziam os racistas nos tempos em quem ainda linchavam   negros.
 Esses abusados que não mais se calam e apelam para a lei ao   serem chamados de "macaco", "carvão", "fedorento", "ladrão",   "vagabundo", "coisa", "burro", e que agora querem ser tratados como   gente, no concerto dos povos. Esses que, ao denunciarem e quererem se   livrar do que lhes dói, tantos problemas criam aqui, nesse país do   futuro. Em uma matéria do Correio Braziliense você 
disse que
  "Os americanos odeiam os negros, mas aqui nunca houve uma organização   como a Ku Klux Klan. No Brasil, onde branco rico entra, preto rico   também entra. Pelé nunca foi alvo de uma manifestação de ódio racial. O   racismo brasileiro é de outra natureza. Nós somos afetuosos”. Se   dependesse de Monteiro Lobato, o Brasil teria tido sua Ku-Klux-Klan,   Ziraldo. Leia só o que ele disse em carta ao amigo Arthur Neiva, enviada   de Nova Iorque em 1928, querendo macaquear os brancos  norte-americanos:  
"Diversos amigos me dizem: Por que não escreve  suas impressões? E  eu respondo: Porque é inútil e seria cair no  ridículo. Escrever é  aparecer no tablado de um circo muito mambembe,  chamado imprensa, e  exibir-se diante de uma assistência de moleques  feeble-minded e despidos  da menos noção de seriedade. Mulatada, em  suma. País de mestiços onde o  branco não tem força para organizar uma  Kux-Klan é país perdido para  altos destinos. André Siegfred resume numa  frase as duas atitudes. "Nós  defendemos o front da raça branca - diz o  sul - e é graças a nós que os  Estados Unidos não se tornaram um  segundo Brasil". Um dia se fará  justiça ao Kux-Klan; tivéssemos aí uma  defesa dessa ordem, que mantém o  negro no seu lugar, e estaríamos hoje  livres da peste da imprensa  carioca - mulatinho fazendo o jogo do  galego, e sempre demolidor porque a  mestiçagem do negro destroem (sic) a  capacidade construtiva." Fosse  feita a vontade de Lobato,  Ziraldo, talvez não tivéssemos a imprensa  carioca, talvez não  tivéssemos você. Mas temos, porque, como você também  diz,
 "o racismo brasileiro é de outra natureza. Nós somos afetuosos."  Como, para acabar com a polêmica, você nos ilustra com o desenho para o   bloco quemerdense. Olho para o rosto sorridente da mulata nos braços  de  Monteiro Lobato e quase posso ouvi-la dizer: "
Só dói quando eu rio".
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Com pesar, e em retribuição ao seu afeto,
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Ana Maria Gonçalves
Negra, escritora, autora de Um defeito de cor.
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