Assim, ele sai de casa todas as manhãs úteis, escoltado pela avó que com ele atravessa a rua e ainda fica um tempinho a olhá-lo, do lado de cá do portão gradeado, enlevada por ver como o seu netinho está a ficar um homem. A vida de uma avó é muito feita de momentos destes, como toda a gente sabe ou fica a saber a partir de certa idade.
Por outro lado, também a vida de um neto é muito feita pela distraída percepção de que todas as manhãs os olhos protectores de uma avó ficam uns instantes a seguir-lhe os passos e os gestos, e disso é que poucos se lembram excepto, talvez, quando um dia chegam por seu turno a serem avós.
O João tinha, pois, uma escola. Mas já não tem, e por isso está triste. Já não tem a sua escola, ou melhor, vai deixar de tê-la. Foi pela televisão que lá em casa primeiro se percebeu o que ia acontecer, e por isso o João quase começou a ter medo de ver e ouvir a TV. Explicaram-lhe que uns senhores ou umas senhoras que se chamam «O Ministério» resolveram que a escola dele, do João, não presta porque andam lá poucos meninos, e por isso vão dar cabo dela, quer dizer, vão fechá-la.
Ao João, tal como ao Quim, ao Rui e mais à mão-cheia de putos que andam na escola do João, vão metê-los todas as manhãs numa camioneta e nela vão andar uma hora ou mais até à Vila que é sede do concelho e onde, dizem, uma escola grande, porreiríssima, que há-de ficar a abarrotar de malta para que assim fique aproveitadinho todo o seu espaço, estará à espera deles e de muitos mais.
Vai ser uma viagem que o assusta um bocado: está convencido de que vai enjoar, ficar o tempo todo com medo de vomitar, ele bem sabe que a estrada a percorrer é toda cheia de curvas e contracurvas. E, é claro, vai ter de estar todo aquele tempo não apenas sentado mas também apertado com o cinto de segurança com que muito embirra, embora isso seja o menos.
E ao fim do tempo das aulas vai ser a mesma dose no percurso inverso, de tal modo que, feitas as contas, são pelo menos duas horas diárias que lhe roubam ao tempo de brincadeira no tal terreiro das traseiras. Se calhar é mesmo esse tempo todo. O João sente confusamente que não há direito que lhe façam uma coisa destas.
E o Quim também sente o mesmo. E o Rui. Não se sabe se alguma vez, mesmo que nunca cheguem a ter clara consciência disso, perdoarão esta grande maldade que lhes vão fazer.
Também a avó está triste: vai ficar sem aquela pequenina felicidade de levar o neto até ao portão da escola como se o fosse acompanhar até ao limiar de uma vida adulta, ou quase.
E os pais estão não apenas tristes mas também preocupados com o filho, decerto, mas também com as condições de vida naquela terra onde moram e onde nasceram eles, e os seus pais, e os seus avós.
Era uma terra que tinha uma estação dos Correios e agora já não tem. Que tinha uma farmácia e agora já não tem. Por onde passavam várias carreiras de autocarros e agora já não passam. Que fica agora sem escola. Olham à volta e descobrem que pouco ou nada mais há que lhes possam tirar, que aquilo está a transformar-se numa espécie de deserto com casas, pois que as casas que ficam vazias são cada vez em maior número. É que as pessoas vão partindo a pouco e pouco atrás da farmácia, da estação dos Correios, das carreiras de autocarros que sejam mais frequentes que uma passagem de manhã e uma outra em sentido inverso já por alturas do sol-posto.
Como o João, os pais estão tristes com a notícia que primeiro lhes chegou pela televisão, ainda que com escasso complemento de razões, e depois outros caminhos confirmaram.
Estão tristes e, como o João, assustados.
* Correia da Fonseca é amigo e colaborador de odiario.info
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