20/06/2010

Chuvas e Hipocrisia

Enviado por Edson Amaro de Souza - diretor SEPE-SG .

Paulo Alentejano

Nestas horas em que centenas de pessoas morrem ou ficam desabrigadas em função do desabamento de encostas, enchente e transbordamento de rios, proliferam na mídia textos e entrevistas de “especialistas” que buscam apontar as causas “naturais” e “antrópicas” que explicariam tais “tragédias”. Alguns destes textos e entrevistas são mais sérios; outros, mais oportunistas; uns, são mais pontuais; outros, mais abrangentes. Alguns, mais contundentes na crítica aos governantes de plantão; outros, mais benevolentes. Mas, poucos vão fundo na análise do conjunto de questões que estão envolvidos nesta conjuntura problemática.

O que nenhum texto, entrevista ou declaração que circulou nestes últimos dias disse é que tudo isto tem a ver com o modelo de desenvolvimento vigente no Brasil desde meados do século XX, baseado na modernização acelerada, seletiva e conservadora do campo e da cidade. E a raiz do problema está na forma acelerada com que se expulsou do campo brasileiro, no último século, mais de 50 milhões de pessoas.

           
A perpetuação do controle das terras pelo latifúndio e a modernização deste estão na origem da expulsão desta enorme massa de trabalhadores rurais, os quais foram precariamente absorvidos pelas grandes cidades brasileiras. A histórica reivindicação da reforma agrária foi não só negada, como substituída por uma política de incentivo ao desenvolvimento de tecnologias poupadoras de mão-de-obra no campo, levando ao aumento da concentração fundiária, ao desemprego ou ao subemprego generalizado no campo e à consequente expulsão de grandes contingentes de trabalhadores rurais para a cidade.

E para onde foram esses trabalhadores? Para as áreas das grandes cidades que não interessavam ao grande capital imobiliário, por conta dos custos de produção mais elevados: as encostas dos morros e as várzeas dos rios. Não porque inexistam espaços urbanos em melhores condições para a moradia destas pessoas, mas porque estes estão controlados pelo capital imobiliário, aguardando a valorização destas áreas. Da mesma forma, há um sem-número de prédios e apartamentos vagos nas nossas grandes cidades, mas estes não podem ser ocupados por estas pessoas, pois o “sagrado direito de propriedade” garante o direito dos proprietários de mantê-los vazios, mesmo que isto signifique empurrar milhares de pessoas para morar em áreas “de risco”.

Portanto, o que está na raiz das centenas de mortes que se repetem a cada chuva é a propriedade privada! Enquanto o direito à propriedade imperar sobre o direito à vida, estas tragédias se repetirão. Enquanto a reforma agrária não for feita, permitindo que muitos trabalhadores que foram expulsos do campo tenham o direito de para lá retornar, e que outros que ainda lá estão não sejam expulsos, estas tragédias se repetirão. Enquanto a reforma urbana não for feita, colocando à disposição dos trabalhadores os terrenos e as moradias mantidos fechados pelos especuladores urbanos, estas tragédias se repetirão.

É certo que a geografia do Rio de Janeiro favorece a ocorrência de deslizamentos de encostas e transbordamentos de rios, mas não é certo que os trabalhadores só tenham a possibilidade de morar nestes lugares, nem que devam morrer por causa disso. É certo que também desabaram encostas onde havia mansões, mas só morreram os pobres. É certo que todos na cidade sofreram com as chuvas, mas o grau de sofrimento é incomparável.

E, agora, o que vemos se descortinar é mais um exemplo da hipocrisia das nossas elites, através da multiplicação das declarações de políticos e editorias da grande imprensa defendendo a remoção das populações residentes em áreas “de risco”, em nome da “segurança destas próprias pessoas”. Trata-se da retomada de uma das práticas mais autoritárias levadas a cabo na construção do espaço urbano de nossas grandes cidades e que, longe de proteger “os pobres”, acentuou as nossas mazelas sociais. Ou esquecemos que as favelas removidas no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas deram lugar a prédios de alto luxo, enquanto a população que ali residia foi deslocada para lugares como a Cidade de Deus, repleta de problemas de infraestrutura e internacionalmente famosa pela violência?

Se o propósito é realmente o de proteger os trabalhadores que moram nas áreas de risco”, então, vamos destinar imediatamente para moradia as centenas de prédios – alguns inclusive públicos – que se encontram vazios na cidade e no estado do Rio de Janeiro. Podemos começar pelos da região portuária do Rio, onde há inúmeros prédios e terrenos públicos e privados abandonados...

Mas, não, isso não é possível... Afinal, esta área já está destinada para os megaempreendimentos imobiliários voltados para a modernização da região portuária carioca, visando a Copa do Mundo e as Olimpíadas... A hipocrisia das elites brasileiras é incomparável... E inconcebível!

ALENTEJANO, Paulo. In: Opinião Sindical. Ano IX, número 81. Rio de Janeiro: Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, Março/Abril de 2010, pág. 13.



[1] Professor do Departamento de Geografia da FFP/UERJ; integrante da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) e da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA).



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